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Terra em Transe (1967): Glauber Rocha trouxe a poesia para o mundo da política, representando o Brasil como o Eldorado do autoritarismo pós golpe de 1964



Do diretor Glauber Rocha. Com o título em inglês, Land in Anguish, foi aclamado como a tentativa mais direta, narrativa e comercial do cineasta do cinema novo. O filme conta a história do golpe militar, dado com ajuda dos Estados Unidos, através das lentes do intelectual e jornalista Paulo Martins (Jardel Filho), que apoiou no passado o político o conservador Porfírio Diaz (Paulo Autran), e que tinha um caso com Silvia, esposa desse político. Paulo e Sara (Glauce Rocha) são militantes de esquerda e Sara é secretária do governador Felipe Vieira, ela é realista e ele sonhador, eles se lembram de uma época onde João Goulart governava, desde 1961, e o país já tinha passado por um golpe que Brizola havia impedido antes com a "rede da legalidade"), mas o clima de El Dorado (Brasil) é de desesperança e de fechamento democrático. O Brasil pegou uma febre e demorou 21 anos para o transe passar. Glauber Rocha, um nordestino, baiano, recebeu por Terra em Transe em Cannes o prêmio Luis Buñuel e Fipresci, e Melhor Filme no Festival de Cinema de Havana. O cineasta soube passar o sentimento de surrealismo autoritário da política brasileira, mostrando nosso país como uma distopia populista, o "eldorado" das elites. 

Você pode assistir no Youtube, mas também está no Globo Play e Telecine

Paulo e Sara são militantes de esquerda e namorados, e lembram de uma época de esperança (quando João Goulart governava, desde 1961, e já havia passado por um golpe que Brizola havia impedido antes), mas o clima de Eldorado (Brasil) é  de desesperança e de fechamento democrático. Enquanto Sara é o modelo de militante clássica ortodoxa que não quer briga (como no PCB), e Paulo quer segurar uma arma sozinho no deserto (como era a ideologia do PCdoB, os maoístas e ligados a Cuba e a luta armada). 


Na república de Eldorado, quando Diaz é eleito senador, Paulo Martins é um jornalista idealista que quer coincidir arte e política em seus escritos. Sara, sua namorada e secretária de Felipe Vieira, político que aceita o golpe militar sem fazer nada em nome de não se manchar com o sangue do povo. 


Sara havia dito que a "culpa não é do povo", e Paulo responde "Mas o povo sai correndo atrás do primeiro que acena com uma espada ou uma cruz". 


Eles cobram de Vieira tomar uma atitude e Paulo joga uma arma nele e ele recusa. Eles saem do encontro com Felipe Vieira e entram no carro, Sara diz para Paulo "Quando todos pegarem em armas, se todos pegarem em armas", evidenciando que para Sara não adianta nada resistir, seria apenas um banho de sangue. 




Felipe Vieira (José Lewgoy), político de centro-esquerda concorre a reeleição para governador e já havia prometido mundos e fundos aos mais pobres em troca de apoio político junto a Paulo.  


Depois de uma discussão com Vieira, seu aliado de tempos e tempos, Paulo sai acompanhado de Sara (uma militante comunista), e foge do palácio do governador e é ferido pela polícia. Sara fala para ele que eles não precisavam de heróis, mas ele fala para ela que eles precisam resistir, e que ele também precisa cantar.



 4 anos antes, ele fora protegido de Diaz, depois de largar ele para perseguir sua carreira de poeta. Na reunião com Porfírio Diaz, ele pergunta para ele se ele poderia perseguir as "ideias políticas", como complementado por ele próprio com certa repugnância. Mas Diaz lhe diz não. Paulo dança com Silvia, que é a mulher de Paulo, que ele quer passar, e inclusive brinca que Paulo poderá se casar com ela. 

 


Ele escreve um livro para contar sobre os malfeitos da vida de Diaz.  Ele vai até Alecrim (Rio de Janeiro, Estado da Guanabara) para trabalhar com Sara após abandonar Diaz, indo até o governador (que é considerado um político populista liberal na visão estrangeira, ou apenas de centro-esquerda (MDB) para a lógica brasileira). Em parte do filme, Sara mostra para Paulo fotos de crianças escravizadas, instigando Paulo a fazer alguma coisa. 



Paulo abandona Sara e corre atrás de Silvia de novo. Depois de ganhar a eleição. Vieira é controlado pelas forças tradicionais que financiaram sua eleição, e já diz que não pode mais fazer nada pelo povo. Se aproxima então de Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), o maior empresário de Eldorado (Brasil) e que planeja ajudar em campanhas eleitorais em troca de apoio pra suas políticas. Para Paulo enquanto ao fundo do cenário do povo pobre tocava na cabeça de Paulo música clássica enquanto é selado o pacto do centro político com povo.

  




Diaz disputa a presidência apoiado por Fernandes, e Paulo pega seu tempo de televisão e ataca Diaz como golpista da causa. Paulo e Vieira se unem na campanha para presidente, e Fuentes trai ambos, para depois fazer um acordo com Diaz. Depois do golpe, Paulo quer partir sozinho para a luta armada, mas Vieira e os outros não.


Enquanto Paulo morre ele elucubra sobre os limites de sua potência e sobre a falha de seus projetos. 



Minha Leitura do Filme


Primeiro, quero dizer que esse é, pessoalmente meu filme favorito de todos os tempos, o filme parece para mim um sonho, um espelho de reflexões entre a existência, a potência e a política como objeto de ação oriundo do processo de conscientização progressivo das massas. 


Terra em Transe é um recital auto reflexivo, estipulado por um narrador, que como Brás Cubas (Machado de Assis) reflete seu fracasso e derrocada pessoal de trás para frente. Sem cair na ideia da idealização dos protagonistas, e sem ter uma visão crítica maniqueísta do debate abordado. 


Comparado com Barravento, primeiro longa de Glauber, filme mais utópico e socialista de Glauber, e Deus e o Diabo, que era mais nacionalista, épico e dramático; Terra em Transe representa o derrotismo acompanhado amadurecimento máximo das experiências políticas e das técnicas cinematográficas de Glauber. Por um lado seu filme soa mais derrotista que os demais, afinal havia tido um golpe militar, mas em termos de técnica, de maneira contraditória, Glauber chega ao auge da sua linguagem cinematográfica. Ele parece finalmente conjugar completamente suas técnicas de improviso teatral, linguagem de câmera fluida e livre, raccords sugestivos e explícitos, improvisos e edições de som e montagem ultra galopante.   


Acredito que o filme "Democracia em Vertigem" de Petra Costa tenha pego o conceito parecido com o de "Terra em Transe" para também refletir sobre o espaço inebriante e febril do fazer político. 


A ideia de ilustração é que o calor tropical que percorre a existência do brasileiro, sempre travado na ideia de subdesenvolvimento e caos político e institucional, como  a ideia de liberalismo nos trópicos é comentada também por alguns autores como "uma ideia fora do lugar" uma tentativa econômica "para inglês ver"; o filme vem carregado de significados e de detalhes específicos, como a ideia do Eldorado como um país perdido. Por isso que seríamos a "república das bananas" por estar no hemisfério ocidental, porém no sul do mundo, então beberíamos a água do gosto, e ficaríamos com os efeitos das condições telúricas do viver tropical, na ideia de Glauber, isso influencia a forma como fazemos arte, política e principalmente Cinema. 


A América Latina seria então como a famosa lenda do El Dorado, explicando os motivos edênicos que colonizaram o Brasil, sendo nosso país considerado um "paraíso tropical", é fácil entender a falta de compromisso e a visão dos "lançados" sobre o Brasil e sobre o litoral, isso faz o Brasil ser dentro de uma ordem mundial subjugados a interesses de outros países, principalmente os Estados Unidos. Sérgio Buarque de Holanda em "Visão do Paraíso" explica que os projetos de subdesenvolvimento econômico estão ligados com o mito do paraíso perdido, como a questão do desenvolvimento internacional das economias nacionais como um processo combinado e desigual, o nome disso seria o colonialismo típico de países que mandam e outros que obedecem. 


A dupla do roteiro e palavra,  do texto e subtexto, excede os limites do culturalismo se prova acima da banalidade como um texto ético, bruto e original que reflete a consciência, a política e a arte , em uma dimensão épica e teatral, como um texto shakespeariano. Como o próprio Paulo, um personagem dúbio e indeciso, ele não sabe se ele se alinha com Diaz (político conservador) ou com Felipe Vieira (um político de centro "liberal").  


A temática de usar nomes da iconografia populista latina, como Porfírio Diaz marcou a estética de distopia, também a utilização de nomes, o Brasil é o Eldorado, Alecrim é como o Rio de Janeiro (onde o governador tenta convencer o povo durante a época das eleições, sempre foi assim e sempre será). 


 Exatamente por ter uma coragem aberta de discutir arte, filosofia e principalmente a política, não apenas um filme, Terra em Transe é um estudo sobre política e autoritarismo e estética que não perde em nada para Orson Welles (esse é o filme que mais parece com ele, por conta da questão do estranhamento de teatro que o filme possui), como também pela utilização de técnicas de reportagem dentro do próprio filme. Terra em Transe completou 50 anos em 2017 e continua mais atual do que nunca, sobre arte e política, o filme cita poeta/filósofo Mário Faustino, grande poeta, versava sobre o carácter filosófico e existencial da poesia, e foi primeiramente influenciado por Francisco Paulo Mendes, um importante filósofo mineiro.  


No filme seu poema, um "Epitáfio de um poeta" demonstra a dualidade oposta de forças que se atraem e se repelem, que dizia: "Não consegui firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura, da violência e ternura, política e poesia". Essa parte foi usada na na cena onde Paulo está no deserto, apontando uma arma para o vazio. 



O filme aborda a intensidade dos acontecimentos que removeram o presidente João Goulart, que tinha sido democraticamente eleito e era considerado um político do aspecto progressista. Porém foi removido do poder em um golpe de Estado que envolve os militares, esferas empresariais e parte de civis coniventes.


Ocorreu no Chile com a deposição de Allende, e em toda América Latina (cone sul), vivemos um período oblíquo, no Brasil a ditadura durou 21 anos, sem eleições diretas e sem liberdade pluripartidária! A ideia de ditadura civil-militar é muito presente no filme por focar na atitude de aceitação e submissão que a grande população passa em momentos históricos de profundo fechamento político e democrático. Terra em Transe foi lançado no ano 1967, ano que Artur da Costa e Silva toma pose, e entra em vigor a famigerada Lei de Segurança Nacional tornava qualquer vizinho um inimigo em potencial, com a figura do "inimigo interno". 


A conversão do político populista em "candidato do povo" mostra um pouco sobre essa opinião sobre o populismo, até mesmo da chamada pelos americanos de "esquerda liberal". Mas aqui no Brasil esse conceito é complexo demais. Já que liberal para os americanos significa o político com ideais de esquerda, como o Partido Democrata, e para o Brasil, por exemplo, Bolsonaro atualmente está filiado a um "Partido Liberal", que se chama assim, mas não possui muitas políticas liberais para além do plano da economia com Paulo Guedes (liberalismo no sentido ao contrário do que é ensinado no Brasil, o liberalismo de Franklin Delano Roosevelt seria visto como populismo, mas é reinterpretado como uma necessária de sobrevivência política.  


O truque de Bolsonaro ao se filiar ao Partido Liberal é sabendo dessa contradição, o que dificulta explica sua ideologia e estratagema de governo na história. Ele foi eleito com a ideia do "Social Liberal (foco apenas em saúde, educação e principalmente forças de segurança", e depois foi para o "Partido Liberal" quando foi obrigado a fazer políticas econômicas heterodoxas para não cair e manter sua aprovação, isso ocorre pois o liberalismo nas Américas não é uma que representa liberalização nas pautas de costume, como é o caso do conceito de "político liberal" americano. Quando Bolsonaro coloca o chapéu de cangaceiro ele está imitando esse tipo de político. 


O liberal-conservadorismo no Brasil é um fenômeno que explica a variação da ideologia dos políticos em relação ao fato de ser eleito e de governar. O político populista apenas aparece na época de eleição para evitar que seja cobrada suas promessas. Mas tem uma contradição forte aqui. O político de centro-esquerda como Felipe Vieira, como os políticos tradicionais do MDB estão preocupados com o "movimento", a roda da história, esse tipo de coisa, então são eles os mais acusados de ser "populista" por ser a oposição consentida na figura nova da chamada de "política dos governadores". 


Enquanto o regime de direita de homens como Diaz perdiam feio em nível estadual, os políticos ligados ao Estado como Chagas Freitas (o chaguismo) no Rio de Janeiro eram do MDB e apoiadores da ditadura igual os outros, pois ele já tinha sido tanto do PSP (Partido Social Progressista) e da UDN (o partido da ditadura), inventando um tipo de política chamada da "bica d'água", que utilizavam o voto direto do povo nas favelas e da influência de parecer um "cara do povo" para ganhar votos instantâneos ao ser conhecido pelo povo. Um dos caras modernos que fez isso junto com as fake news foi Wilson Witzel que herdou votos do PSC (Partido Social Cristão),  que também já sofreu impeachment.  


Uma força contumaz e representa o Estado fraturado que não preserva os projetos políticos das forças de oposição. A iconografia de um carnaval político é a expressão mais desenhada com a estética de Terra em Transe, em uma forma de recitação cínica que representa a proximidade absurda entre os grupos políticos aparentemente antagônicos. 




Afinal, o que seria o populismo do que um fenômeno ocorrido dentro do mesmo espectro democrático. A articulação política com as forças possíveis torna o movimento da política viciado em formas que chegam a ser cíclicas de poder. Um político de centro-esquerda é apoiado pelo povo, é eleito com o dinheiro de empresários, e logo depois da eleição se fecha para o povo. Mas isso gera uma incógnita, dependendo do tempo político amigos e inimigos mudam, mas o arrependimento pelo clientelismo e por enganado é um dos principais fatores que explica o divórcio de certa parte da população com a política. 


No filme, o golpe é dado pelo político conservador Porfírio Diaz, interpretado magistralmente por Paulo Audran, e que dá um golpe em Eldorado tirando as esperanças de todos. Diaz (Paulo Autran) é um parlamentar de extrema-direita, ultraconservador associado a um grupo religioso, que aparece repetindo bordões como “a família é sagrada”. Vieira (José Lewgoy) é o líder associado à esquerda, reformista, mas também paternalista, e dotado de um pragmatismo descarado em nome da “governabilidade”. 



O filme foi marcante para um ano como 1967, ano que antecede o período descrito como "anos de chumbo",  o período mais autoritário da ditadura militar, mas que ao mesmo tempo viu florescer com força o movimento estudantil (como visto no filme "Uma Noite em 67", a cultura dos festivais de musicais aumentou, os anos de chumbo começaram oficialmente um ano depois do lançamento do filme, com o AI-5 em 1968, um ato institucional que intensificou a perseguição na ditadura militar. O filme é explosivo em sua mensagem e arrojado em seu formato e conseguiu prever o clima político de fechamento e de piora das condições da democracia. Ou o que alguns setores chamam de dentro da ditadura militar ocorreu um "golpe dentro do golpe" que tornou a ditadura mais coercitiva ainda. 


O filme foi inicialmente recebido pelas audiências como uma apologia ao universo do comunismo de guerrilha, de Cuba, Che Guevara e Fidel Castro, mas depois foram feitas análises sobre a profundidade um pouco maior que Terra em Transe possui. Quando o intelectual Paulo escuta música clássica na reunião do povo com Felipe Vieira, ele por sua vez fica enfurecido uma vez que o povo começa a criticar a coligação com Vieira e então Paulo cala o homem do povo. 




Toda a leitura aqui é cínica e possui dois significados. Paulo pode ser Glauber, como pode ser os amigos de Glauber. Glauber Rocha foi um dos maiores gênios (e também era cineasta importante) que o Brasil já teve. 


Sua fala poética e sua linguagem complexa vinda em parte de sua experiência como aluno de direito (embora tenha sido reprovado em tudo), sua visão teatral do fenômeno do direito está em potencial total em Terra em Transe, o filme mais "feminista" de Glauber por possuir Sara, um importante personagem, figura da "mulher centralista" que também tem ideias, mas tem medo do autoritarismo dos tempos e dos devaneios de Paulo, nosso protagonista orador. Além de ser cineasta, militante e gênio das letras, ele foi um profícuo crítico científico de cinema ao escrever "Revolução Do Cinema Novo" e seu trabalho mais acadêmico que é "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro". 


A ideia do teatro brechtiano é que o estranhamento produz uma forma de beleza através da distância do público em relação a perspectiva do personagem e da trama, isso ajuda a questiona o texto e o subtexto dos filmes para além de uma primeira análise mais óbvia. A ideia de populismo enquanto referência ao passado oligárquico no Brasil, no México e na Argentina é nítida com a referência ao político Porfírio Diaz, presidente do México por 30 anos. Figura controverso na História do México. 


O governo do Diaz real no México, terminou em grande tumulto social, apesar de obter certo índice de crescimento junto ao grupo tecnocrata, ele empregou os chamados "Científicos" (scientists) que sustentavam as políticas dos fazendeiros (os hacendados) que tiravam a terra do povo rural. Suas políticas ajudaram aos estrangeiros americanos transformarem o México no quintal dos Estados Unidos. Em 1910, ele queria se manter por mais um termo, mesmo com 80 anos de idade. Aconteceu o conflito entre os Científicos e os seguidores do General Bernardo Reys, aliado junto perímetro militar nas regiões mexicanas, o tumulto junto a revolta de antigos aliados gerou o estopim das Revolução Mexicana de 1910. 


O problema do México e do populismo em geral é que ele possui recortes diversos. O primeiro deles, se observamos nos estudos de Octávio Ianni é o Populismo oligárquico da elite latina, que corresponde ao fim do século XX, (na ideia de Hobsbawm ao período chamado "Era dos Impérios, de 1875 e 1914). O México teve essa Revolução, aconteceu no mundo inteiro no começo do século XX, que ficou conhecido como o "século das revoluções", principalmente no início do século, mas depois se converteu em pesado pessimismo, principalmente no cone sul, América Latina. O processo das duas guerras mundiais parecerem querer assentar, acender e criar o espírito nacional de um mundo onde "tudo era sólido desmanchava no ar".


O filme mostra um golpe conservador, apoiado pelos valores da "marcha da família com Deus". Mas o que parece é que o filme busca indagar e questionar, se questionar sobre o carácter liberal que resulta em um processo de reformismo dos setores da classe média que apoiaram ou se calaram perante o golpe de 1964, que aprofundou o processo já latente de  desigualdade entre o povo como um tempo, mas principalmente entre o trabalhador rural (que não conseguia se valer de suas prerrogativas trabalhistas), e faz com que ele não veja que o grupo inimigo possa ser pior. Mas o que Terra em Transe carrega é a possibilidade da análise da política como um "jogo de cartas marcadas", onde as ideias de esquerda são travadas pela própria estrutura de governo e eleição. 


Quando Paulo apoia o governador, sua política de revolucionário se torna reformista. Demonstrando aqui que o movimento do bipartidarismo forçado no Brasil criou a "oposição consentida" na figura dos políticos do MDB, então eles ganhavam os Estados com um discurso leve de oposição a ditadura, na figura do partido MDB (Movimento Democrático Brasileiro). O que precisamos entender que por ser a única oposição consentida o MDB era um balaio de gatos de ideologias diversas, era um guarda-chuva para os comunistas mais nacionalistas, como também para direitistas reformistas populistas em geral. Esse era o MDB clássico, entre a oposição a ditadura e o consentimento dentro dela. 


A ideia do filósofo/poeta versus a figura do político (governante) é uma chave de entendimento do filme, além do verso de Mário Faustino, o filme demonstra contradições presentes dentro do próprio Glauber, afinal ele fez um filme de propaganda para Sarney, quando gravou sua posse, intitulada Maranhão 66. Sarney é chamado por alguns de "Sir ney" uma referência ao tipo de poder que sempre teve no Maranhão (ele era um cacique local que apoiou a ditadura, como Felipe Vieira, mas que era conhecido por políticas populares e populistas), foi também depois disso, o primeiro presidente dentro da ordem "democrática", já que ele assumiu após a morte do eleito Tancredo Neves.  



Aqui a ideia de consciência e de que o "povo seria burro" é a principal crítica ao jornalista e poeta Paulo. Ele dizia no filme que talvez poesia e política eram demais para um homem só, isso também era em parte os debates internos que Glauber Rocha travava ao observar as travações até mesmo da personalidade do revolucionário radical (como ele mesmo, que possuía acima de tudo, uma linguagem radical e brutalmente honesta). 


Lembrando os filmes políticos de Costa-Gavras, Julio Pontecorvo, e Godard em filmes como "A Gaia Ciência (1969)" e "Wind From the East (1970)" de Godard, (que o próprio Glauber participa "indicando" o rumo do cinema latino e do terceiro mundo). 


A ideia da causa, do quixotismo enquanto lógica sistêmica de de desencantamento da crença no mundo recitado como um poema aberto internacional contra o autoritarismo na política. Como também inova em apontar críticas do romantismo revolucionário individualista, e da ação revolucionária como a própria expressão  aparece como uma crítica em si, para si, refletindo o lugar da arrogância tradicional do intelectual perante o povo. Quando Paulo se envolve com Silvia, Diaz e outras mulheres em inferninhos, ele está traindo com seu lado conservador e corrupto, quando ele se envolve com Sara, ele está com seu reformista e romântico. Dessa contradição é que nasce a personalidade de Paulo. 



Paulo fala tanto no prólogo quanto na epílogo e versa sobre suas esperanças políticas perdidas, primeiro com Diaz, o político conservador que vivia em farras e por isso encontrava em Paulo a paridade do cinismo do político conservador que cai na farra longe dos holofotes da imprensa. Mas que para o público expressa seus valores de "Deus, Pátria e Família". Paulo também ficou decepcionado com o político Felipe Vieira, "Está vendo, Sara? Nosso líder" em referência a Felipe Vieira e sua traição depois da eleição para presidente. 



Ou também quando aponta Paulo que Diaz havia o abandonado. Paulo fala para o povo que não acreditam mais em líderes, como o camponês Felício, que reclama da vida dura do camponês no latifúndio, chega a apoiar Vieira, mas depois rompe, e é culpado por Paulo por sua "falta de consciência", Felício acaba sendo morto por conta de conflitos de terra. Um dos principais motivos da deposição de João Goulart foi para que ele não assinasse a proposta de Reforma Agrária anunciada por ele no comício que propôs as reformas de base para o país. 






Quando Paulo tenta dissuadir Vieira de usar a polícia nos camponeses, ouvimos a recitação de um poema de Castro Alves. Glauber, como os poetas condoreiros, foram correspondesses a segunda fase do Romantismo, temas como o nacionalismo e o ufanismo andavam de mãos dadas as primeiras ideias socialistas, republicanas e abolicionistas,  como o poeta inglês Percy Bysshe Shelley.  




Outro fator importante para a crítica é entender um erro comum cometido pela análise do grande crítico Robert Stam, e que já foi de certa maneira apontado por Ismail Xavier. Stam qualificou Glauber Rocha e Terra em Transe como um filme da "estética do lixo" que não é exatamente mesmo o que Glauber fazia, principalmente, não era como queria ser conhecido de maneira alguma, mas apenas as cenas de Silvia são metáforas disso que chamamos de "estética do lixo" e da diversão, etc, como na chanchada tradicional, uma galera parecida com ele, mas que não era a mesma escola de Glauber Rocha. Composta por nomes como Rogério Sganzerla, Ruy Guerra e Julio Bressane. Stam confundiu Glauber Rocha pelos seus "inimigos" de disputa de espaço, que faziam um cinema mais preocupado em chocar do que falar em ideias filosófica se políticas como ele. 


Glauber Rocha estava influenciado pela questão do debate da fome, então fazia em seu filme uma "estética da fome", em Terra em Transe, essa estética está presente no debate de identidade nacional e de povo, já tão presentes na obra de Glauber. Perfeito







Produção e bastidores do filme



Terra em Transe começou a ser filmado em novembro de 1965.
Antes de ser exibido no Rio de Janeiro, foi exibido em Cannes e causou furor junto a audiência. Apesar do Itamaraty dar a indicação de filme para Cannes o filme que estrelava a atriz de Niterói (cidade nossa aqui do blog), Leila Diniz, "Todas as Mulheres do Mundo (1966)" de Domingos de Oliveira (marido de Leila), mas Terra em Transe conseguiu concorrer mesmo assim. Em 1968, a película de Glauber Rocha foi exibida no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa).


As alocações de filmagem foram em sua maioria no Complexo do Parque Lage (localizado no jardim botânico do Rio de Janeiro), o mesmo lugar onde Snoop Dogg  e Pharrell Williams gravaram a música "Beautiful", ou o filme americano "Os Mercenários(2010)". O Parque Lage tem uma história muito interessante, sendo um palacete construído ao estilo da arquitetura romana. O espaço foi construído a mando de Henrique Lage, que adquiriu a propriedade para sua esposa Gabriela Besanzoni (uma famosa cantora da Itália). 






O elenco demorou para conseguir ser definido, Fernanda Montenegro era para interpretar Sara, mas devido a incompatibilidade de agenda, escolheram a atriz Glauce Rocha. Foi produzido por Zelito Viana, fotografia de Luiz Carlos Barreto e a câmera de Dib Luft, e montagem (edição) de Eduardo Escorel, era uma equipe ímpar para fazer um filme A sobre Brasil e identidade nacional. 


A equipe de som era do famoso estúdio Hebert Richers e o laboratório de revelação líder cinematográfica. Assistência de montagem Mair Tavares, assistência de câmera José Ventura. Assistência de direção Moises Kendler e Antonio Calmom e supervisão artística de Paulo Gil Soares. Os produtores associados do filme eram Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues e Raymundo Vanderlei. 


Glauber tinha um certo método para tirar o máximo dos atores, ele os irritava demais para que eles tivessem o melhor desempenho. Isso ele disse em uma entrevista, mas a realidade segundo contam os próprios atores é que ele era muito legal de se trabalhar junto. 

 
A trilha sonora é mais uma vez do gênio Sérgio Ricardo com a sua canção melódica "Olá", como também a música de abertura, que é um cântico de candomblé clássico ao ritmo de bateria marcial.  A música do filme além de Sérgio Ricardo, contou com Carlos Gomes "O Guarani", inspirado na primeira ópera brasileira, mas que foi apresentada em língua italiana, e que estrelou em 1870 em Milão, no Teatro Ala Scalla, na Itália. Também contou com a música do incrível Heitor Villa Lobos, Bachianas Brasileiras No. 6. e No 3. Como também a música Otello, de overtune, de Giusepe Verdi, um importante música italiano que como Wagner, era ligado ao movimento do romantismo. 










A cena do comício ganhou dois prêmios no Festival de Cannes, o Luis Buñuel e o Fipresc em 1967. Dizem que Glauber queria colocar o título Earth in Transis, dizendo ser mais próximo do que ele queria fazer, mas os produtores preferiram Land in Anguish para lançar no mercado internacional, quando não traduzido literalmente "Earth in Entrance", que dá um sentido geral de movimento de translação, em relação ao movimento geográfico que a terra faz em torno de si, e em torno do sistema solar. 


Essa "confusão" é comum, tudo soa parecido ao ouvido estrangeiro. Na mesma maneira aconteceu com o "O Pagador de Promessas" que foi chamado de "cinema novo" sem ser. Apesar de ser um radical, Glauber contava com amigos de centro e até de direita que também eram geniais e que o ajudavam, talvez em Terra em Transe ele conseguiu encontrar o seu lugar crítico não apenas como um esquerdista, mas um crítico dos possíveis desvios que o populismo de esquerda político pode tomar.  

















Este filme é tão cultural e patrimônio nacional, que acredito que ele está em domínio público e você pode assistir ele no Youtube:








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