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Adeus, Minha Concubina (1993): Épico de Chen Kaige debate cultura, nacionalismo e sexualidade na China



Fairwell My Concubine é um filme chinês com parceria de Hong Kong, do gênero histórico, dirigido pelo grande diretor Chen Kaige. O filme passa por todo século XX na China, e percebe através da história de três personagens que se encontram em diferentes momentos ao longo dos processos históricos da China. É adaptação da novela de Lilian Lee, e faz parte da quinta geração do cinema de Hong Kong, de profissionais que se formaram na China na época dos anos 1980. Além de ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1993



A trama retrata com genialidade o íntimo das famosas companhias de Opera Cantonesa e a tradição milenar e sua marca na cultura nacional da China. Passando pelos primeiros dias da República, até os dias da Revolução Cultural. Mostrando a vida de Cheng Dieyi (Cheung) e Duan Xiaolou (Zhang), e de sua esposa Juxian.  


É considerado um dos maiores clássicos do cinema chinês da quinta geração com temáticas históricas, políticas  e sociais, ganhou prêmios muito importantes, como a Palma de Ouro, se tornando o primeiro filme em chinês a alcançar isso, ganhou melhor filme estrangeiro no Golden Globe, e também o Bafta por melhor filme não em inglês.


O diretor Chen Kaige nascei em Beijing em 1952, famoso por Terra Amarela tinha apenas três anos quando ocorreu a República Popular, sendo um adolescente quando a Revolução Cultural ocorreu. A explosão de violência no período marcou o diretor. O termo Revolução Cultural se refere a campanha contra arte reacionária e anti revolucionária, ocorrida em 1966-68. Quando ele resolveu fazer o filme, achava que o livro de Lilian pecava por não ter um entendimento muito profundo sobre os fenômenos correspondentes a Revolução Cultural, contratando um escritor para revisar seu screenplay do filme para dar um contexto histórico mais correto possível e não ser apenas mais uma peça de produto cultural de protesto anti comunista feito por Hong Kong, esse filme ficaria mais especial que isso. Demonstrando uma diferença na visão dos dois. 


O filme demonstra isso quando em 1977 eles fazem sua última apresentação. Quando a campanha de denúncia revolucionária já havia acabado por volta de 1978. A mulher de Mao Tze Tung, Jiang Qing foi colocada como encarregada de "revolucionar" a Opera de Beijing em 1963. Ocasionando em censura pesada contra os antigos membros das trupes, que eram associados com atos considerados "amorais", como o cross dressing. 


O livro é uma história de ciúmes e paixão com contexto histórico de grande épico de Lilian Lee, que também fez a screenplay do filme, junto com Lu Wei, uma autora muito conhecida da China, ela escreveu o livro ao estilo das óperas clássicas. Se passando nos anos de 1920-1930 aborda a ocupação japonesa. 




O enredo do filme: 




No inverno de 1924, um garoto com traços femininos é entregue pela mãe para uma trupe de teatro de meninos da opera de Beijing, supervisionados pelo mestre Guan. No início Douzi tem um dedo extra, e por isso é rejeitado pelo mestre para entrar na trupe. Pouco tempo depois, a mãe de Douzi corta seu dedo com a faca e o entregue para a trupe de teatro, o abandonando. 





É aí que começa a amizade com Shitou, outro aluno da trupe. Douzi começa então a se adaptar a viver junto com a trupe de teatro e outros vários meninos na mesma situação, "adotados pela trupe". 





O filme aborda um momento onde era possível ainda esse tipo de tradição graças ao governo nacionalista do Kuomitang, e o filme vai demonstrando a sequência de traumas nacionais, como a dominação japonesa que fortaleceram no seio da sociedade chinesa uma vontade de  superação de dominação. 




O que explica o sucesso da empreitada. Uma trupe de teatro que utiliza de castigos físicos não poderia ter lugar no novo governo. Mas isso significa renunciar algumas formas de arte que passaram a ser consideradas burguesas, ou liberais demais.  




Em 1932, o agora adolescente Douzi é treinado na arte do dan (uso de papeis femininos). Enquanto praticava a peça "Dreaming of the World Outside the Nunnery", Douzi acidentalmente substitui uma das falas e : "Sou por natureza uma garota e não um garoto", trocando para  "Sou por natureza um garoto, não uma garota", sendo disciplinado pelos seus superiores por isso. Depois de assistir uma encenação da peça, Douzi decide ficar e não fugir por se encantar com a tradição da peça, se sentindo parte da história por interpretar um personagem tão icônico para a cultura chinesa.





Laizi que tentara antes fugir, foi pego e espancado brutalmente, depois disso, Laizi se enforca. Um agente vem para prover financiamento para novos talentos. Quando Douzi repete o mesmo erro. Shitou pede que ele comece de novo. Dessa vez Douzi não erra nada e entrega o monólogo inteiro.







A companhia é levada a fazer uma apresentação para o eunuco Zhang. Depois disso Douzi adota um bebê órfão e ele depois fica sob os cuidados de mestre Guan para treinamento. Em 1937 houve o incidente de Marco Polo Bridge, quando chineses e japoneses batalhavam as primeiras batalhas na Segunda Guerra. 





Assim, Dieyi interpreta a concubina e Shitou, o herói Xiang Yu. Na situação de ocupação japonesa, Dieyi conhece Yuan Shiqing, alguém poderoso que está gostando de Dieyi. Em uma das cenas, Yuan Shiqing dá uma espada para Dieyi, que não sabe se retribui os seus sentimentos. 






Dieyi nutria um amor não completamente correspondido por Xiaolou, que se casa com uma cortesã da alta classe. O filme gira em torno desse "triângulo amoroso. A metáfora aqui é sobre a história da China no século XX, como também os três personagens são uma janela para o entendimento de uma história contínua e em movimento.


Quando morre o mestre Guan, Dieyi começa a treinar o antigo bebê, agora Xiao Si para um nova geração de dans. Depois que os comunistas ganham, Xiao Si se torna um ávido seguidor do novo governo. Enquanto Dieyi sucumbe ao vício em ópio, depois se reabilitando com a ajuda de Xiaolou e Juxian. Siao Si tem ressentimentos com Dieyi por conta de sua rígida disciplina, que aprendeu com as trupes de teatro que utilizavam de castigos físicos. Nessa parte, é interessante o debate sobre rigidez e arte. 



A tradição milenar da opera e a tradição de monarquias e servidão tornava possível os castigos. Vemos Dieyi fazendo com Xiao Si o que fizeram contigo desde a infância. Em nome da perfeição da forma da arte. Devastado com a tradição, Dieyi se isola do mundo e se reconcilia com Xiaolou. 






Enquanto ocorre a Revolução Cultural ao fundo. Toda a trupe de teatro é colocada em aviso pela Guarda Vermelha. Dieyi e Xiaolou são acusados de atos anti revolucionários, ou seja, acusados de burguesíssimos. Com isso, Dieyi acusa Juxian de ter sido prostituta. Todos se delatam e se traem. Quando Xiaolou nega Juxian por ter sido prostituta, ela se mata com o coração partido. 




Músicas foram escritas no nome da concubina, isso durante a dinastia Ming (1368-1644). Seu suicídio imaginado foi dramatizado já na peça Um milhão de pedaços de ouro, em um episódio chamado "Desejando adeus para a concubina", dizendo para o rei que ela continuaria fiel a ele. Dando sua esposa, ela se mata cortando sua garganta. 


A cena final do suicídio ficou marcada por agora focar no suicídio da mulher, da concubina, do que centrado na figura do rei. Em 1921, a Beijing Opera exibiu a performance com o famoso ator Mei Lanfang (1894-1961), que viajou o mundo conhecido como o intérprete do papel den da concubina. Diferentemente do filme, Mei Lanfang possuía esposa e filhos na vida real, mas era famoso no mundo inteiro em apresentações feitas pelo papel da consorte do rei durante os anos de 1930-40. O personagem de Cheng Dieyi é inspirado em parte nesse ator. Intelectuais como Bertolt Brecht, Sergei Eisenstein e George Barnard Shaws citam Mei como grande inspiração. 


Xiang Yu é cercado pelas forças de Liu Bang em direção a derrota total, então ele chama por seu cavalo e implora para ele fugir para salvar sua vida. O cavalo recusa, contra sua vontade, ele chama sua esposa Consort Yu, ela implora para ele deixar ela morrer junto, mas ele nega. Enquanto ele fica distraído, Yu se mata com a espada de Xiang Yu. Em Beijing de 1977, alguns funcionários da Opera fazem uma performance Cheng Dieye e Duan Xiaolou se reuniram no palco 11 anos depois deles terem sido separados no meio da Revolução Cultural. 


Vemos então um flashback de quando eles primeiro se encontraram: 1924. Dieyi, que tinha o apelido de Douzi é vendido por sua mãe para a trupe de teatro do Master Guan, eles queriam treinar novos membros para a companhia, se especializando no papel feminino para Douzi. Xiaolou que tinha o apelido de Xiao Shitou interpreta o papel masculino da Opera. Os garotos se tornam muito amigos durante os anos e cuidam um do outro, em um contexto de trupes teatrais onde para chegar até o ponto de perfeição havia espancamentos para disciplinar os funcionários no dia a dia. 


Shitou estreia no palco na residência antiga imperial dos eunucos, onde eles apreciam sua apresentação, e Douzi é forçado a fazer serviços sexuais para seu patrão. Na mesma noite, Xiao Douzi encontra uma criança abandonada, que vai ser criada também pelas trupes de teatro. Em torno de 1937, os dois garotos cresceram e se tornaram famosos em Beijing.  Enquanto Dieyi começa a se envolver com Master Yuan que começa a lhe dar presentes caros. 


Enquanto isso, Xiaolou apenas tem olhos para Juxian, uma prostituta que está determinada a deixar o bordel, depois disso ela busca se casar com Xiaolou. Enquanto sabe que seu amor por Xiaolou era impossível, Dieyi com ciúmes de Xiaolou, acaba se envolvendo com Master Yuan por companhia. 



Depois disso, Beijing é ocupado pelo exército Japonês, e Xiaolou é preso por insultar um soldado japonês do alto comando militar, Aoki, um fã antigo de Dieyi, através de sua interseção, ele manda soltar Xiaolou, com a condição de que Dieyi cantasse para ele no quartel do exército. Depois da vitória dos comunistas, eles prendem quem antes estava no poder na região. O governo nacionalista os acusa de traição por associação com os japoneses ao fim da guerra. 



O filme brinca com o compasso de anacronismo na vida das pessoas e como seus valores e profissões podem não sobreviver por conta de uma mudança de regime. Como o exemplo das trupes de teatro, na época de governo republicano.  




Depois que a ocupação acaba, Dieyi é preso pelo governo nacionalista por traição. Juxian chantageia Master Yuan para salvar Dieyi, o que faz Dieyi querer ou a prisão ou a morte. 


Dieyi é salvo pois um membro do alto escalão do Partido Nacionalista (Kuomitang) que queriam que ele fizesse a performance clássica da Opera cantonesa. Juxian engravida e perde o bebê no meio de um riot. No meio da vitória dos comunistas em 1949, tudo parecia festa para Dieyi, mas logo eles percebem que se sentem estranhos nessa nova sociedade, por agora serem identificados como parte de tradições ocidentais, como o teatro.  




O clima se volta contra a Opera de Beijing e seus artistas clássicos, sendo considerada agora uma arte reacionária e burguesa. Dieyi e Xiao voltam a ser perseguidos.  Em 1966, o bebê que foi resgatado por Dieyi juntou os radicais da Guarda Vermelha. Acusando Xiaolou de crimes contra revolucionários e estimula ele a denunciar tanto Juxian quanto Dieyi. 




Na China dos anos 1930, a opera de Beijing eram entretenimento para uma classe privilegiada, mas eram as crianças das famílias mais pobres que eram mandadas para virarem atores famosos. Douzi tinha apenas 9 anos quando foi abandonado e acabou virando ator. Demonstrando como o sofrimento era calculado como forma de aprendizado por parte daqueles que treinavam as novas gerações de atores em papeis antigos e milenar


Depois da sessão pública de julgamento, onde todos se traem, Juxian comete suicídio. Em 1977, ao fim da Era Mao, eles ensaiam a mesma peça de novo. Dieyi se mata no palco com uma espada contra o peito. É a metáfora suprema do fim de um ciclo de um século de processo revolucionário contínuo na China.



As pessoas mudaram seus hábitos, tentando se livrar da mentalidade antiga, e para muitos, isso envolvia a censura ao teatro e ao modelo análoga de escravidão das trupes de teatro. Em uma das cenas, eles queimam as provas e lembranças do passado tentando se adequar a nova realidade. Queimando iconografias e qualquer coisa que lembrasse do passado da República Popular. 




A última cena do filme é uma cena onde Dieyi interpretando novamente a concubina Yu se mata de verdade no ensaio. Os olhos de Xiaolou são a última imagem demonstrando que a identidade da concubina e de Dieyi eram a mesma, ele se confundia assim em pleno anacronismo com o papel nacionalista e emocional. 







Essas contradições de época são o pano de fundo que movimenta as relações. Nesse filme, a sociedade  e a história são fatos sociais exteriores aos personagens e as tradições. Dando uma sensação de que tudo pode acontecer, dependendo de quem está no governo e de sua ideologia. 





Dieyi incorpora o espírito de lealdade da concubina e por fim, temos a impressão de os papeis se confundindo na realidade e na arte eram a pura essência do tipo de opera épica que o filme é baseado. 


O sentimentalismo presente da lealdade da concubina Yu demonstra que por cultura e percepção de tradições, a figura da concubina ficou mítica por demonstrar a fidelidade como forma final da existência, sendo parte do mito fundador tradicional da China, que aos poucos foi eternizado como foco a personalidade feminina. Dentro da metáfora da sexualidade presente no filme, concubina Yu é transformada em um ícone queer através de Dieyi que confunde sua própria história desde pequeno que era Douzi com a personalidade histórica da fiel concubina. Esse trecho elucida debates em torno da temática da Revolução Cultural e seu impacto na vida e na transformação dos costumes e valores. 


A ópera clássica e as reapropriações da história da personagem da concubina Yu:


Nas palavras do grande historiador da dinastia Han, Sima Qian, a história se situabrevemente no fim de uma batalha que fundou uma grande dinastia. No ano de 202, o antigo poderoso Império Qin se enfraqueceu e se desintegrou em diversos poderios e feudos locais, cujos líderes enfraqueceram e passar a  disputar poder. Já o personagem do rei Xiang Yu of Chu era um arrogante guerreiro de valor não correspondente no mundo antigo. Passou diversos anos e finalmente, Liu Bang conseguiu derrotar todos os aliados de Xiang Yu, levando suas tropas para acampar no inferno esperando ele sucumbir.


O livro e o filme são inspirados na clássica opera Bà Wáng Bié Jī, ou (O Rei Hegemon dá adeus a sua senhora) The hegemon-king birds His Lady Farewell), Adeus, Minha Concubina, uma tradicional obra que faz parte da cultura chinesa. Contando a história de Xiang Yu, que se nomeou como rei do oeste Chu da China junto com Liu Bang para unificar o país. Contando a vida do fundador da dinastia Han  (206 a.c até 220 d.c).


Ao pesquisar sobre a verossimilhança do filme, observamos que o problema para Dieyi é a recusa de escolher entre a personalidade da vida real e de fora do palco, sendo essa a grande tragédia do filme. Podemos pensar que Dieyi entende a profundidade e o significado histórico do personagem da concubina Yu, mais que um personagem de uma história, é talvez a mais famosa personagem chinesa sobrevivente não apenas da Opera de Beijing, mas também nas artes, em forma de poesia, pinturas, peças de teatro, lendas populares e contos domésticos. Fruto do meio de Hong Kong, sofria influência direta da administração britânica, também quando houve a divisão entre a República Popular da China (PRC) da Republica da China, de Taiwan.

  

O governo colonial, por exemplo limitava a liberdade de expressão e formação empresarial da cidade. Criando esse polo de "modernização" independente dentro da China que se transformaria durante o século XX, mesmo mantendo boa parte de sua visão tradicional, formando uma continuidade na visão do homem popular e do valor da ancestralidade de costumes. O crime de sodomia (buggery), por exemplo, era como era classificado a conduta homossexual masculina em Hong Kong em 1842, seguindo uma lei Inglesa.  O guerreiro protagonista perdeu seu posto de personagem principal durante a dinastia Tang (618-907), quando a concubina Yu, inspirada em modelos de conhecidos como "Dan" papeis femininos. 


Considerado um clássico pelo ocidente, o filme é mal visto na China pela crítica ao radicalismo revolucionário que se coloca contra a cultura por oportunismo. Dieyi, Douzi era um menino filho de uma prostituta que foi vendido para o teatro, por ele ter traços femininos e em torno do comprometimento ao papel, ele cada vez mais passa por processos para se tornar feminino. A lógica dessa Opera. Na época, o tratamento dado aos meninos era horrível, com pancadas diárias, mas eles faziam parte de algo milenar.




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