O Pagador de Promessas (1962): Completando 60 anos, veja as diferenças entre a peça de Dias Gomes e o filme de Anselmo Duarte que trouxe o Cannes para o Brasil
Completando 60 anos, Pagador de Promessas ("The Given Word"), foi inspirado na peça homônima de Dias Gomes, encenada pela primeira vez em 1960 em São Paulo. Estrelando Leonardo Villar no papel de Zé do Burro, um roceiro dono de um sítio que havia feito uma promessa para Santa Bárbara para curar seu burrinho de estimação. A promessa feita por Zé do Burro foi para trazer a cruz de Santa Bárbara até da procissão anual carregando uma cruz, desde seu sítio no interior até a igreja em Salvador, assim como havia sido feita para Iansã no terreiro, o que representa o sincretismo religioso. Assim que o padre conservador local sabe disso, não deixa Zé do Burro entrar com sua cruz pois ele acha que Iansã é um demônio. Começa a saga do herói que lembra a teodiceia dos primeiros cristãos. O elenco ainda conta com Glória Menezes, Norma Bengell e Antônio Pitanga. O roteiro do filme foi feito em parceria de Anselmo Duarte e o próprio Dias Gomes. O filme ganhou o prêmio da Palma de Ouro de Cannes, como também foi indicado do Brasil ao Oscar
Disponível no Globoplay mas também no Youtube
O Pagador de Promessas acabou sendo nosso primeiro "bendito fruto" que agradou crítica e mercado em sua maioria, um filme que realmente convenceu o mundo com uma tentativa de estética simples de montagem, como no teatro mesmo, com um significado profundo escondido por traz, um carácter humanista sobre um tema de religião. Sendo um dos filmes mais poderosos sobre liberdade de culto e intolerância religiosa. Quando o padre descobre a natureza sincrética da promessa feita por Zé no terreiro. Como também conta a história da ambição pessoal de alguns que seriam responsáveis pela perseguição ao roceiro.
Sua esposa Rosa se envolve com o Bonitão (Geraldo Del Rey), cafetão e malandro local que desperta assim o ódio de Marli, uma de suas garotas. O padre continua insistindo que Zé do Burro fez promessa pro diabo e que ele precisa de arrepender e desistir da palavra empenhada pelo sincretismo da promessa feita.
Zé pede para Rosa não deixar para ir ver o Bonitão, mas ela não quer. Depois disso, Marli envergonha Rosa e briga com ela na frente de todo mundo. Por fim, começam a desconfiar da saga do herói, da cruz, das chagas, denunciam Zé do burro e por fim, quando ele seria preso pela polícia por suspeita de subversão, o povo intervém em seu favor e não deixa levarem ele preso. Depois, ajudam Zé do Burro a carregar a cruz e entregar sua promessa.
Os jornalistas que tentam vender o Zé do Burro como um revolucionário, nada querem mais do que vender jornal. Também é em tom crítico que tentam vender o "ABC da Mulata Esmeralda" de Dedé Cospe-Rima para Zé do Burro, mas ele recusa, o que seria como o romance do momento lido pelas esquinas, ao estilo Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.
Sua perseguição é motivada pelo culto da entidade altamente cultuada por parte do povo mais popular, negro e mestiço do lugar. Então proibir isso como "bruxaria" seria comprar uma briga com o povo em si.
Quando Zé do Burro faz uma promessa antes da procissão anual de Santa Bárbara para entrar com uma cruz que carregava de casa, de um sítio no interior da Bahia. Santa Bárbara de acordo com os registros de hagiografia originalmente era filha de um homem pagão chamado Dioscorus. Em 1969 ela foi tirada do calendário católico romano oficial.
Contexto histórico e social do filme e de sua produção
A produção do filme foi acompanhada também por Glauber Rocha. Sendo uma equipe de filmes de São Paulo, eles filmaram na Bahia. O local de gravação foi na igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, no Centro Histórico de Salvador, local que ficou anos fechado recentemente.
O Pagador de Promessas ganhou o filme do ano em um dos maiores prêmios do cinema. A temática da intolerância religiosa e do sincretismo e do preconceito racial com o ritos não canônicos vindos da cultura popular, essa temática ganhou o mundo e dá pra entender o porquê. Desbancando nomes como Luis Buñel, Michelangelo Antonioni, Otto Preminger e Robert Bresson, competindo com 27 países, no dia 21 de maio de 1962, um feito notável, antes feito apenas por Lima Barreto em O Cangaceiro (1953). Anselmo Duarte teria então um tipo de direção influenciada pela sua experiência como ator, como filmes de William E. Wellman. Também foi o indicado do Brasil ao Oscar de 1962.
Sendo uma referência aqui a possível crítica ao Cinema Novo e seu pessoal. Acontece que para as plateias gringas que vibraram com o O Pagador de Promessas isso não importava, eles entenderam como um filme do cinema novo, contraditoriamente. Mas a briga é mais uma briga de pontos de vista. Ao ser perguntado diretamente sobre os filmes de Glauber, Anselmo responderia que gostava deles, e que a crítica de Glauber Rocha era unilateral.
Em O Pagador de Promessas, esse conflito também tem uma dimensão do som, por conta da capoeira e também por conta do berimbau ser um instrumento de cultura afro brasileira que ia contra "os sinos da igreja católica" no filme, isso foi muito estudado como detalhe presente. As músicas da trilha sonora de O Pagador de Promessas eram incríveis, como Exaltação Á Bahia de Vicente Paiva e Chianca de Garcia, como também Cisne Branco de Antonio M. E Santo e Benedito X. de Macedo. Já a música Dorinha Meu Amor foi composta por José Francisco de Freitas.
Apesar disso, Anselmo Duarte criticava os imitadores de Glauber Rocha, vendo que a estética da fome de Glauber virava sensacionalismo nas mãos do pessoal que vendeu depois a ideia de "estética da boca do lixo", que nada tinha a ver com Glauber, porém foi associada a ele. Anselmo Duarte não veio do meio da classe média como os outros, tinha sido bem pobre no início da vida.
O herói em O Pagador de Promessa é inocente, isso significa "sem consciência" para o esquerdista padrão retratado na figura dos jornalistas que querem tirar a ideologia do roceiro a todo custo. Aqui jaz um debate que percorreu a esquerda e o centro nas artes no Brasil. Apesar do que é dito pela maioria, esse debate é menos técnico e muito mais ideológico. A crítica técnica de Glauber era devido ao mise en scene do filme (mimeses) que era exagerado demais. Aqui pode ser uma diferença, porque Anselmo Duarte estava adaptando uma peça do importante Dias Gomes, por isso o carácter teatral acentuado, ele queria muito ganhar Cannes. Foi para a Europa e voltou obcecado com a ideia de ganhar o prêmio internacional. Dias Gomes era um baiano de Salvador, capital. Sua primeira obra foi A Comédia dos Moralistas que escreveu aos 15 anos e já ganhou com ela um prêmio do Serviço Nacional de Teatro.
Na cena final da peça o trovão irradia sob a igreja, assim que observarmos a entrega da cruz com a ajuda e intervenção popular, quando entram na igreja com a oferenda, o céu fecha e cai um trovão no céu inteiro, simbolizando que a oferenda foi 'entregue' para a santa. Assim termina a peça. O filme não tem esse carácter da peça, sendo apenas Rosa subindo as escadarias sozinha, depois da cena que equiparam Zé do Burro a Jesus Cristo, com o povo colocando o corpo de Zé na cruz e entrando a força na igreja com ele.
A rixa entre o grupo político representado por Glauber Rocha e aqueles mais centralistas, considerados burgueses e de direita por escolherem como principal mote temas que podiam se aproximar do mercado internacional. Glauber esteve nas gravações de O Pagador de Promessas, ele no livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, aponta que não gosta de O Cangaceiro, como também não gostou da alienação presente no O Pagador de Promessas.
Anselmo Duarte acreditava que a ideia de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", era na verdade "uma câmera na mão, uma ideia na cabeça, e uma merda na tela", dando noção da rixa entre os grupos, mas sendo um comentário mais sobre os copiadores de Glauber do que propriamente uma crítica direta. Anselmo Duarte era considerado um antigo galã de filmes simples, feitos para agradar povo. Já o pessoal mais neutro de Anselmo Duarte acusava o cinema novo de fazer um cinema de bolha. Anselmo Duarte apesar dos filmes simples e de comédia que fazia enquanto ator no começo da carreira, tinha um passado humilde, sendo engraxate aos 10 anos de idade, quando começou aos 14 anos a trabalhar em um cinema como "molhador", conseguindo assim assistir os filmes de graça.
Minha leitura do filme
A diferença do contexto da peça é que Zé do Burro é um roceiro dono de um pequeno sítio no interior da Bahia, e de lá ele teria feito uma pequena "reforma agrária" em seu sítio em saber o nome com os trabalhadores e outros moradores locais, ou seja era como um político regional, sendo gostado por todos, e por lá é dito que queriam fazer dele vereador. Fato que difere da abordagem do filme que retrata Zé do Burro como alguém mais popular ainda do que na peça, menos política e bem mais poética.
A diferença é marcante. Enquanto a peça enfatiza o carácter político e a comparação com os primeiros cristãos, o filme faz essa comparação de maneira bem simples, mostrando que se Jesus voltasse naquele contexto os ensinamentos dos primórdios do cristianismo estariam perdidos, isso só é palpável se entendemos a história do cristianismo primitivo anterior a Roma. O roceiro no filme seria sem maldade nenhum, um ser puro, que sofreria como Jesus através da provação e da quase mendicância para manter a promessa feito ao santo. Uma reflexão profunda seria que o cristianismo embora tenha se tornado hegemônico, era no começo um clamor dos fracos e oprimidos, como os judeus eram em relação a Roma.
No filme não há referência nenhuma de intenção e consciência. Em certa parte da peça, o padre fala para Zé do Burro que ele está tentando imitar a cristo, em uma referência ao texto clássico "A imitação de Cristo" de Tomás de Kempis, escrito por volta de 1441. Já no filme, tem uma parte que Zé do Burro inicialmente mostra as feridas de ter carregado a cruz, e o padre em resposta fecha a igreja e proíbe que entregue a cruz quando ele conta que a promessa originalmente foi feita em um terreiro.
O tom agradou a audiência internacional que entendeu a mensagem religiosa e iconoclasta contida na mensagem direta do filme. O tema da intolerância religiosa e o debate sobre cultura, política e autoritarismo percorre o filme, que não nega o tom regionalista, do típico brasileirismo, similar a Machado de Assis, ou Nelson Rodrigues. Dias Gomes foi um pioneiro em sua forma de abordar a temática da intolerância religiosa. Era vinculado com o PCB (Partido Comunista Brasileiro), e isso influenciava sua forma de fazer teatro, rádio e novela também. Era um dos poucos "comunistas da globo".
Essa disputa se deve ao fato de Anselmo Duarte nunca ter se encaixado com o pessoal do "cinema novo", mas de ter feito sucesso lá fora de qualquer maneira, Glauber falou que gostou mesmo de Absolutamente Certo (1957), filme com a comediante Dercy Gonçalves, ele próprio esteve no set de filmagem e não gostou do que viu. Anselmo Duarte era um galã das chanchadas antigas, do ciclo de cinema de São Paulo ligado com a antiga Vera Cruz e também nos estúdios da Atlântida Cinematográfica, lá Anselmo Duarte fez uma carreira como grande galã dos filmes ao estilo americanos feitos em São Paulo.
Isso se reproduzia em seu cinema, sendo um filme feito de São Paulo sobre a Bahia. Mas Glauber Rocha acabou sendo conhecido nos textos de antropologia do cinema nos Estados Unidos pelo carácter do som nos filmes. Glauber Rocha teria invertido a tradição de utilizar de sons europeus para descrever uma situação sobre uma uma temática progressista específica, por exemplo, a vila de pescadores que Glauber Rocha retratou em Barravento, por exemplo.
A questão do cinema novo ter ganho um canto na intelectualidade, nas faculdades, não reproduziu essa hegemonia para fora da intelligentsia, e por coincidência, esse é um assunto que percorre a própria ideologia do O Pagador de Promessas. Anselmo Duarte também falou que Glauber Rocha tirou a ideia de Deus e o Diabo na Terra do Sol na pela Vereda da Salvação de Jorge de Andrade, mas não se sabe até que ponto essas trocas de acusação foram a ferro e fogo. Ilusões industriais como falavam a esquerda norteavam o cinema daqueles que miravam a audiência do grande público, por sua vez, o cinema de grande público falhava em transmitir uma ideia de "política de autor" em seu trabalho, como fazia o cinema mais engajado e político.
Em aspectos técnicos, a direção de Anselmo não é genial mas muito técnica e eficiente em contar uma história. Só destoa da direção dos grandes filmes da época. Entretanto, a fotografia e a teatralidade do filme são épicas. Esse é um filme de atores, onde a expressividade, os movimentos e as falas são épicas e mudam todo o sentido do filme. É esse nível de sinceridade da atuação que muitos produtos audiovisuais hoje em dia não possuem, principalmente as séries. Algo tão teatral que segurava a trama por completo. A edição da imagem é simples, mas a edição do som é épica. O berimbau do final do filme ecoa em nossa mente mesmo anos após assistir o filme.
Disponível no Globo Play
Comentários
Postar um comentário