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Matar ou Correr (1954): Paródia de "High Noon" feita por Carlos Manga mostra a visão dos brasileiros sobre os ideais errôneos do faroeste americano



Comédia western mostra a figura de Kid Bolha (Oscarito) e Ciscocada (Grande Otelo), dois cowboys palhaços que foram confundidos enquanto passavam por uma velha cidade do Velho Oeste, chamada de Citydown, ou como entenderam errado como "sit down". Depois desse encontro com o bandido local, por engano, um deles vira xerife após ganhar de Jesse Gordon (José Lewgoy), um violento pistoleiro de Citytown que acabou preso pela nossa dupla bonachona. Filme da antiga produtora Atlântida Cinematográfica, e o elenco conta com Grande Otelo, Oscarito, José Lewgoy, John Herbert e Inalda de Carvalho, Wilson Grey e Marlene Renato Restier. Uma sátira ao herói individualista de Matar ou Morrer (1952), conta-se que o diretor Carlos Manga teria assistido 5 vezes o filme estrelado por Gary Cooper para conseguir acertar o tom


Não apenas Howard Hawks quis fazer alguma coisa ao assistir Matar ou Morrer, ou mesmo John Wayne que ficaram com raiva do filme individualista do alemão Fred Zinnemann. O brasileiro Carlos Manga também quis brincar em cima dessa questão nesse filme que conta com a presença de dois grandes atores do cinema nacional: Grande Otelo e Oscarito. O par romântico inicial do filme é de John Hebert e a "miss Cinelândia". 



Vemos a Citytown, uma cidade típica dos westerns clássicos. Kid Bolha, enquanto brincalhão e medroso se afasta do tipo do xerife Will Kane do filme original. 






O modelo das chanchadas seria uma forma de aderir ao modelo norte-americano de cinema em cima da questão da precariedade material para fazer o cinema nacional.  Esse foi o lugar da sátira, ao entender os vínculos que o cinema faz serem vínculos filosóficos, como na questão dos filmes de grandes teses tradicionais, fizemos o modelo da sátira e das chanchadas para esconder a precariedade do nosso cinema em termos financeiros.  


No filme, a semiótica da apreensão que todos ficam é notada e marcada pelo frame de relógios no original e na paródia brasileira. Esses relógios marcam no original o tempo corrido literal da história em relação ao filme. Talvez isso seja pior no original, pois é com objetivo de fazer o público querer matar o Frank Miller (o bandido local) junto com o xerife, em tempo real. Diferente do filme de Zinnemann, a cidade de faroeste é largada e suja, mais parecida com o que seria na vida real. 



Outro elemento cénico importante lembrar que no filme original Matar ou Morrer, nada do cenário denotava subdesenvolvimento, foi feito para parecer associar o western com a visão de um mundo antigo vitoriano e perfeitamente ordenado, como no século XIX, tudo absolutamente impecável e no lugar. 


Nesse sentido é que mora a genialidade das chanchadas brasileiras, em pegarem emprestados elementos clássicos de debate do western, como por exemplo a cultura da violência bang bang, ou a moral individual do herói foi possível como fez Matar ou Morrer fazer um cinema popular e das massas, com com ideologias e intuitos muito diferenciados. A brincadeira do filme brasileiro diz algo muito profundo sobre interior e cidade. Se o faroeste é essencialmente o sub desenvolvimento e o não civilizado, a visão vitoriana e quaker de uma américa moralizadora e civilista seria ridicularizada pelo cinema brasileiro que geraria depois o típico do cinema nacional com a Embrafilmes.



Contexto da época, bastidores e história por trás do filme


A chanchada mostrava o modelo cotidiano de uma classe média, normalmente vinda do Rio de Janeiro, da zona sul carioca, em busca de um modelo de espelho para o estilo do "american dream" tão característico dos anos de 1950. O elemento da malandragem seria o que nós teríamos de original e que foi devolvido em filmes americanos como O Rei do Laço ou 'Pardners'(1956), com Dean Martin; que usam mais do humor e da desconstrução dos arquétipos de herói tradicionais, indagando, como em Matar ou Correr, por qual motivo do mundo alguém gostaria de ser xerife? Carlos Manga além de assistir 5 vezes a versão do filme de Zinnemann, também pediu para Cajado Filho construir uma cidade de velho west em Jacarepaguá. 


A questão da parceria, dupla é uma forma de construção de tropos (ideias opostas e ao mesmo tempo parecidas) que ajudam nos roteiros e nas elucidações das histórias. A dupla que pensamos ser apenas de amigos se revela um casal no final do filme com um beijo gay entre Oscarito e Grande Otelo. Uma forma de dizer que a relação entre Frank Miller (bandido e temido local) e Will Kane é que era a grande questão do filme Matar ou Morrer original. Uma boa forma de brincar com o ideal do cowboy americano. Também é interessante notar a questão do debate sobre masculinidade. No filme Matar ou Morrer, o ideal do machão que tem que matar o bandido é ridicularizada na paródia brasileira de maneira genial.







Essa era a época do começo da hegemonia da cultura da cidade em relação campo, do uso do rádio enquanto cotidiano e também propaganda política e ideológica. Isso porque toda a briga ideológica envolvia a perspectiva de não deixar a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas ) chegar ao campo. Esse foi o principal racha entre os setores mais a direita ligados com a UDN rural que não queriam a chegada da CLT no campo. Esse é um dos principais motivos do racha político da época, a questão do campo. As rádios eram pioneiras como clubes privados e formas de sociedades com o objetivo de integrar culturalmente a nação. Era uma coisa mais sobre textos e músicas eruditas. 


O governo de Getúlio Vargas possuía uma forma de pacto progressista ao estilo de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos, o que era ligado por uma intensa cultura cotidiana através do rádio, com o Decreto lei no 21.111, Vargas autorizava a veiculação de propaganda no rádio e com a criação das pioneiras rádios Tupy de âmbito nacional, em 1935, o rádio começa a ser parte fundamental para a formação da identidade nacional e formador de um certo imaginário político nacional. 


Muitos dos atores que ficaram famosos depois pelo cinema e por empresas como a Vera Cruz, a Atlântida e a Cinédia (fundada por Adhemar Gonzaga em 1930), e outros  vieram da tradição do rádio e que eram especializados em humor, como Oscarito, Grande Otelo, Ankito e Zé Trindade. Matar ou Correr acabou sendo o último filme que Oscarito fizeram juntos.


Após 1941 o papel fundamental das radionovelas dividiam espaço com os famosos programas musicais humorísticos. Ao longo de 1940-50 os programas segmentaram-se em um sistema nos moldes cinematográficos hollywoodiano que lançaria nomes como Lamartine Babo, Noel Rosa, Ari Barroso, Francisco Alves, Mário Reis e Carmem Miranda, uma espécie de "star system" brasileiro estimulado também pelo governo.


Em termos de refinamento e crítica, os intelectuais buscam virar o rosto para as paródias brasileiras, consideradas "incivilizadas" como colocaria Robert Stam, como uma atitude derivada do elitismo dominante na crítica especializada brasileira, como a definição de Renato Ortiz em Mundialização das Culturas fala sobre os faroestes que não eram produzidos nos Estados Unidos, eles seriam todos ruins por não possuírem o mesmo conteúdo histórico folclórico dos textos originais. Naquela época, o Brasil vivia grandes rachas ideológicos entre a esquerda e a direita. Esse filme também pode ter sido influenciado por toda essa sequência de eventos dramáticos que o Brasil viveu em 1954, ano de lançamento do filme. O Brasil vivia grande e drásticas mudanças de época. 


O maior e mais traumático de todos os eventos: o suicídio de Getúlio Vargas, antes disso, o atentado na rua Tonelero que foi ligado ao membro da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, associando ele ao evento, isso 8 de Agosto, dia 12 de Agosto, Carlos Lacerda pede aos militares pela renúncia de Getúlio Vargas de dentro do jornal A Tribuna da Impressa, 24 de Agosto militares exigem a renúncia de Getúlio assinando o Manifesto dos Generais, onde 19 generais pedem sua renúncia. No mesmo dia, no Palácio do Catete, Getúlio Vargas se matava com um tiro no coração. 


Seu vice, Café Filho se torna presidente. No Brasil daquela época, ninguém imaginava tamanha comoção popular, no dia do enterro, 25 de Agosto. Pela primeira vez, em um país cínico e sempre tão individualista como o Brasil, alguém se matava para manter o pacto popular-burguês que continha CLT, férias, benefícios diversos previdenciários. 


A ideia tanto em Rio Bravo, ou El Dorado, e em Matar ou Correr, ao contrário de Matar ou Morrer (High Noon), era indagar que também sobre o debate de tratar crimes leves, ou contravenções como apenas transgressão leve ligada ao que seria uma "vadiagem", ou como formas socialmente aceitas de ludibriar o trabalho formal.


Nessa época as chanchadas e filmes satíricos, como por exemplo Alô Alô Carnaval (1936), eram muito comum ao gosto popular, sendo o típico cinema brasileiro dos primórdios. A dupla Grande Otelo e Oscarito faziam muito sucesso. Filmes como Carnaval no fogo, Aviso aos navegantes, Três vagabundos, como Matar e Correr. Fizeram ao todo nove longas desde o fim dos anos 1940 até a data de 1954.  A técnica simples da Atlântica contava com uma grande precariedade e também improvisação com a produção. Confundindo-se as funções de direção, roteiro, cenário, tudo isso para conseguir um custo mínimo na produção de filmes e um lucro máximo.


As comédias carnavalescas eram moda entre o público brasileiro, animado com a perspectiva do nacional desenvolvimento, da visão sobre os 'anos dourados'. A Atlântica se constituiu enquanto uma empresa de sociedade anônima, se distanciava do cinema nacionalista, o tipo de Humberto Mauro, como em Descobrimento do Brasil (1936), essa distância trouce aspectos de estética internacional para o tipo de cinema feito para as "massas" no Brasil. No primeiro ciclo, os filmes musicais  enfatizavam as festas populares como o carnaval e eram parte de uma forma de fazer cinema mais musical, enquanto em uma segunda fase, o enfoque mudou mais para a sátiro e o humor e Matar ou Correr faz parte dessa segunda leva. 


Diferente da bandeira nacional como as comédias da empresa Cinédia, que vinha desde os anos de 1930, os estúdios buscaram se moldar por um outro viés comunicacional, buscando inspiração no rádio, teatro de revista, indústria fonográfica e na imprensa. Por isso o improviso e o uso da voz e da dublagem era altamente utilizado para superar os obstáculos tecnológicos. Após 1946 esse carácter empresarial das empresas se tornou mais explícito. 


Isso vale para diretores geniais e simples como Carlos Manga, de grandes filmes como Matar ou Correr, ou comédias como O Homem de Sputnik (1959) genial sátira política sobre a Guerra-Fria, de alguns anos depois. Era considerada a Metro Goldwin Mayer brasileira e mais simples, quando MGM decaiu deprimiu profundamente. Era uma forma de imitar os estúdios americanos que acabou gerando uma fórmula de uma comédia própria nacional. Nesse sentido, as chanchadas eram o ápice dessa hibridização cultural. 


Apesar da crítica não gostar do pessoal da chanchada e dos faroestes brasileiros, o elemento do humor. O jornalista Sérgio Cabral atenta para a biografia de Carlos Manga, um dos personagens que ajudar uma  construir a mitologia do cinema nacional, teve um começo humilde varrendo o chão do estúdio de gravação, depois aprendeu a mexer com os equipamentos e fez contatos profissionais sobre isso. Quando veio o cinema novo e os anos de 1960 ele foi mais esquecido no cinema pela modernidade cultural que buscava algo meio imitativo dos meios gringos representado pelo cinema novo que tinha uma outra ideologia e pegada. Depois disso ele passou para o universo da televisão e da publicidade. 


Quando ele começou a fazer chanchadas atingiu um grande público, e na televisão seus programas conquistavam a liderança de audiência. Teve uma passagem de 15 anos pela publicidade. Carlos Manga nunca fez um curso profissional na área. Ele foi o cara conhecido por colocar uma fórmula de tv para o cinema, sinalizando que aos poucos o cinema ia perder espaço de audiência para a televisão. 


Segundo Sérgio Cabral, quando Carlos Manga tinha 2 anos, pegou uma caxumba braba e como seu pai temia pela saúde do único filho homem pediu para um médico que tinha feito especialização em pediatria nos Estados Unidos dar uma olhada no pequeno Carlos Manga. Ele quis aplicar um método de extrair o inchaço, o que agravou o problema e a cara do menino ficou horrível. Por conta disso, o senhor Américo Rodrigues Manga colocou uma arma na cara do médico de raiva. Isso explica a personalidade "western" de Carlos Manga. 


Esse espírito malandro ajudava a ver o brasileiro como aquele que driblaria as desvantagens econômicas impostas pelos padrões estéticos estrangeiros.  Além de parodiar Matar ou Morrer que é um filme muito amado pelos críticos por seu porte técnico e científico de montagem, fazer exagero em cima das ideias originais dos westerns seria uma forma de construir um gênero intermediário revisado. Outro filme parodiado nosso sobre o cinema americano foi Sansão e Dalila (1949) com o filme Nem Sansão nem Dalila (1953). Ambos foram com a atuação da dupla Oscarito/Grande Otelo e de direção de Carlos Manga, pensando que ele teve uma grande influência posterior na televisão brasileira e na publicidade. 


Disponível no Youtube


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