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Uma Noite em 67 (2010): Significados, contradições e nostalgias do festival que antecedeu os Anos de Chumbo da ditadura


No dia 21 de outubro de 1967, foi realizado o Terceiro Festival da Tv Record, no Teatro Paramount (atual Teatro Renault), em São Paulo. Uma Noite em 1967, de realização de Renato Terra (inspirado em seu TCC) e Ricardo Calil fornece o clima dos bastidores que marcaram o evento.  Utilizando de imagens de arquivo da antiga Rede Record, e contando com depoimentos novos de Chico Buarque, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Marília Medalha, Grupo MPB-4, entre outros. O documentário conta a história do 3º Festival de Música Popular Brasileira, que alcançou em grande visualização nas cinco semanas que esteve em cartaz, sendo o documentário mais visto do ano de 2010 aqui no Brasil, com um público de 80 mil pessoas que foram ao cinema para ver o documentário. O evento de 1967 teve direção de Solano Ribeiro (que importou a fórmula do Festival italiano de San Remo), e apresentação de Cidinha Campos, Sônia Ribeiro, Randal Juliano e Blota Jr



Minha Crítica do Filme


A Tv Record registrou um índice de audiência de 55% na época, era a mania nacional dos festivais e contagiava todo mundo, mais a esquerda, sedenta por novidades, mas grande parte de uma certa direita liberal que começava a se afastar dos ideários da ditadura militar.  Com 97 pontos no Ibope, quase todos assistiam ao festival na época. O filme retrata o final do III Festival de Música Popular Brasileira, ocorrido dia 21 de outubro de 1967. O documentário de Renato Terra e Ricardo Calil de 2010 foi tão visto que apareceu em uma questão do Enem de 2017. A chamada "Era dos Festivais" foi de grande importância para a diversificação do tipo de público e audiência. 


Em um país como o Brasil, apenas a TV Globo conseguia um impacto de audiência amplo, e sua visão correspondia apenas ao que as elites do Rio de Janeiro pensavam, uma visão que excluía até mesmo a poderosa São Paulo, que sempre participou de tudo com certa hegemonia extrema até a Revolução de 1930 que tirou o poder dos paulistas e mineiros do jogo republicano.  Os festivais eram uma vitrine do "melhor do Brasil", daquilo que dava orgulho. Afinal, o que é uma Elis Regina? Um tipo de cantora de poucos países possuem.


No Festival de 1966, ano anterior, Chico Buarque disputava com A Banda, que seria primeiro colocada, mas ele próprio ele pedido ao diretor da Record para que Disparada, de Geraldo Vandré empatasse com A Banda, sob interpretação de Jair Rodrigues. Mesmo com o gesto de "empate" entre os grupos considerados novistas (embora Chico Buarque fosse o radical e o purista ao mesmo tempo), e os puristas da "melhor música possível" do grupo de Jair Rodrigues e Elis Regina. Não era uma briga de facas, mas eram perspectivas diferentes de arte popular brasileira. 


Registrando também o berço do movimento da Tropicália e envolvendo também o debate sobre a originalidade da cultura e da música brasileira. Parte da intelectualidade ligada ao antigo PCB clássico, entre outros grupos que acreditavam no purismo da música brasileira tinha feito uma manifestação, chamada também de "Manifestação da MPB (Música Popular Brasileira)". A esquerda brasileira tentava negociar com a censura e o resultado entristecia alguns e animada outros. 


Apesar de parte da esquerda ter sido acusado de "pegar leve", parte da aderência aos escritórios de censura passava em fazer uma bonita letra. Podia ser música de amor, de amizade, eram sempre essencialmente, tentativas de músicas de política, por testar a censura em todos os níveis. Os Anos de Chumbo estavam batendo a porta, e junto com eles a grande insatisfação da juventude mundial com o fim dos anos de 1960, em transição aos anos de 1970. 


O AI-5 de 1968, marcou o fim da possibilidade de "resistência cultural" leve que os festivais conseguiam carregar. O festival de 1967, marcava o fim da juventude pacífica e reformista e o começo tácito de grandes mudanças culturais e políticas. Se antes era legal dialogar com a censura ao estilo "mano a mano", letra por letra, agora para os artistas considerados mais radicais a solução podia ser apenas o exílio. Antes disso, houve uma passeata no centro de São Paulo, no dia 17 de julho de 1967. Era um ano antes do Maio de 1968, Primavera de Praga, todos esses movimentos "jovens". Em 1969, houve também a versão americana desse tipo de rebeldia, revolução musical, ocorrendo o Festival Woodstock, em São Francisco, Califórnia.


No Brasil, a juventude ainda não estava tão visceral e e anarquista, como os jovens de Woodstock, em 1969. Mas esse processo de evolução da mentalidade da juventude demonstra como em apenas alguns anos os movimentos culturais podem se tornar mais críticos, assim como a própria juventude. 


Passeata contra guitarra elétrica


A condição de centralização dos governos e o autoritarismo da "falta de opção", junto com o declínio na crença e nos políticos, frustração com o imperialismo americano de guerras quentes e frias. Como a Guerra do Vietnã, que era um conflito direto que fez a juventude questionar o domínio e continuidade desse guerra junto ao ideário republicano.

 

Um dos membros do festival, Roberto Carlos era um queridinho da Globo, o que explica parte de suas vaias, mas seu tipo de músico é aquele que finge que nem está sendo vaiado. Cantou Maria, Carnaval Cinzas, uma música de autoria de Luiz Carlos Paraná. Apesar de ser vaiado, se saiu bem com a música, que era um pouco dramática demais para o ídolo da Tv Globo. 



Isso explica o contexto externo. O interno é um pouco mais cínico e burguês. A Tv Record queria bater de frente com o modelo Globo culturalista, ou mesmo podemos dizer "populista", no sentido de agradar as massas com uma falsa noção de integração nacional dada pelas novelas, como também dito no livro "Populismo e Comunicação" de José Marques de Melo. 


Esse convênio da Globo com o grupo Timelife delimitou um formato nacional, como o "Jornal Nacional" que todos assistiam no país, antes de 1964 não havia isso. Em oposição ao processo feito pela Globo, a Record queria marcar um certo orgulho regionalista em oposição ao que seria o modelo Globo Howard Hawks de chocar a opinião pública, por mais que fossem os conservadores do Rio de Janeiro ligados ao regime. Como a missão era o americanismo, era preciso certa dose de liberalismo americano. 


Evidenciando a ligação da Globo com a Ditadura Militar. Mas a Tv Record apenas tinha uma discordância estética e regional em relação ao Rio. A Globo inventava um, dois, três nordestes (ao estilo 'inventar um, dois três Vietnã') para não ter que ceder ao controle do país para mais um grupo político. Parecia então mais uma vez, que São Paulo haveria algo de "esquerda" escondido no meio de todo o laquê dos festivais, mas muito escondido mesmo. 


Os jurados eram o próprio Sérgio Cabral, Ferreira Gullar e Júlio Medaglia, o escritor Zuza Homem de Mello (que era técnico de som), e o Paulinho Machado, então Diretor da Record. Sérgio Cabral falou no documentário que tinha uma técnica para sair dos festivais para evitar a multidão que sempre era enorme e tinha certo espírito de linchamento leve, ele bravejava como se estivesse puto "isso é um absurdo, um absurdo!" e saia o mais rápido possível com sua mulher.


A questão tinha sido levantada por Elis Regina. No ano do lançamento do grande álbum dos Beatles Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967), esse disco foi muito marcante par aa tropicália e para toda uma geração de músicos que queriam "sair da caixa". Caetano e Gil foram muito inspirados por Beatles. Muitos dizem que foi uma tentativa de promover o programa "O Fino da Bossa" com a própria Elis Regina. O Diretor da Record era conhecido por fazer programas ao estilo mais da bossa nova e da juventude, como Jovem Guarda, o Show do Si...monal, o Bossaudade eram marcos desses tipos de programa da época.


Famosos como Elis Regina promoveram o evento para denunciar a entrada de 'novos ritmos' que estragariam a originalidade da música brasileira. Essa passeata tinha slogans do tipo "Defender o que é nosso". Teve presenças de peso da música como Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4, Jair Rodrigues, e até mesmo Gilberto Gil. Também contando com a participação dos Mutantes (Rita Lee, e os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista). Segunda a resposta de Gilberto Gil, os irmãos estavam fazendo violão o disco de Nana Caymmi (que era namorada de Gil na época). 



É engraçado ver a estranheza que as pessoas tinham com os futuros membros do movimento da tropicália, como quando o Arnaldo Baptista responde de uma maneira inocente e educada demais, e o entrevistador tinha um estilo de "direto ao ponto", como se estivesse brincando com o estilo dos roqueiros do local, como se eles fossem esquisitos. Essa era a brincadeira do "roteiro" do festival. Os Mutantes fizeram parte do número do criador intelectual do movimento tropicalista, Gilberto Gil, sendo perguntado antes sobre sua ida a passeata antes, ele disse que apenas fez por estar apaixonado por Elis Regina, apenas isso. 


No festival, foi comentado que ele estava nervoso e que teria ingerido bebida alcóolica e estava um pouco fora de si, não sei se é uma história verdadeira, mas o próprio cantor disse que estava mal de estar ali, alguma coisa sobre sentir o espírito reformista dentro da ditadura. Ele disse que se sentia um "fantasma" por causa disso ali dentro. 



Mas a apresentação é incrível, crua, diferente e vincula elementos do "rock" estrangeiro de certa maneira muito bem calculados, demonstrando que o estrangeiro podia evidenciar algo de muito regional com "Domingo no Parque", com arranjos de Rogério Duprat, usando uma mistura de berimbau e guitarra elétrica, a música ficou com o segundo lugar. Sérgio Cabral, por exemplo, falou que se arrependeu que ter nomeado Ponteio como primeiro lugar apenas alguns segundos depois. Como se falasse que o significado histórico da apresentação de Gilberto Gil seria sentida, quer ele ganhasse ou não. 


Mas os irmãos roqueiros em questão eram Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Arnaldo, por exemplo, era especial e tinha durante sua adolescência um curso de piano clássico junto com sua mãe, Clarisse Leite, como também fez aula contrabaixo clássico, violão e também piano jazz-rock. Rita Lee já era uma atração a parte. Também com experiência e formação de outras bandas como a Teenage's Singers e Cilibrinas do Éden em seus primeiros trabalhos. 




As músicas e a tradição dos festivais de música


No final do terceiro Festival da TV Record, em 1967 havia já uma espécie de "fórmula", como dita no documentário, de um "tipo de música de festival". As músicas desse festival ficaram muito marcadas na história da música popular brasileira. 


Caetano comentou no documentário como Alegria e Alegria era uma música que ele "não conseguiu se livrar", mas que todos ainda associam. Ele explica no filme, que queria fazer uma marchinha ao estilo antiga portuguesa, de Lisboa, e ao mesmo tempo fazer uma música com aspirações da novelle vague e da nova realidade da guerra fria frente ao cotidiano centralizador e autoritário e sufocante da rotina durante a ditadura militar. A ideia de "crimes, Espaço nave e Brigitte Bardot. Ele se apresentou junto ao grupo argentino Beat Boys. 





O documentário é claro, como em uma luta de telecatch (como falado por Roland Barthes no livro Mitologias), existe o mocinho e o vilão, o mocinho mais mocinho ainda que o mocinho, como no caso de Edu Lobo (grande músico vindo de uma tendência mais erudita que buscava integrar com certa visão popular). A música ganhadora também era muito boa,  "Ponteio" foi premiada em primeiro lugar absoluto, a música tinha uma certa elegância a mais. Ela me lembra particularmente a tensão e a história do western Matar ou Morrer. A apresentação foi de Marília Medalha e Edu Lobo. 



A ironia do storytelling do festival era desse ponto de contraste ideológico velado. Tinha o Sérgio Ricardo chutando o violão e iniciando o "movimento punk", com uma tentativa de um "arranjo totalmente modificado", e aí tentou apresentar a incrível música "Beto Bom de Bola", mas teve um resultado ruim, obtendo como empecilho, um grupo que estava decidido a vaiá-lo a todo custo.  


Quando Edu Lobo ganhou com a música que dizia "Quem me dera agora eu tivesse essa viola para cantar", a viola da música, podia ser apenas a viola, mas era a viola quebrada por Sérgio Ricardo, parecia que ele estava contra a tal integração eleito o melhor vilão, ao estilo Beto Rockfeller e tudo. Era quem tinha violado o sagrado matrimónio do casamento entre a plateia 'líder de torcida', e o artista que deveria apenas estar "grato de estar ali", como próprio Roberto Carlos. 


Ás vezes a atitude de fazer barulho, o desafinar e outras técnicas da não técnica podem marcar a experiência do ao vivo do musical. ele instigou e provocou a plateia, foi considerado o "vilão", mas não era por falta de grande percepção artística. Sendo um dos mais populares e folclóricos membros do festival, trazia consigo a tentativa de falar sobre o verdadeiro povo brasileiro, era um "do B". Ele tinha feito a trilha sonora do filme Deus e Diabo na Terra do Sol(1964). 



O gesto do violão marcou a história, nunca ninguém teria tido a coragem de resistir a própria imagem. Ao estilo dos "mods" ingleses, como The Who, ou The Stooges, que já iniciavam uma atmosfera do proto punk. Combinado ou não, orgânico ou não, o gesto fez história. No sentido de que ligamos menos para o feito erudito de Edu Lobo premiava uma "visão de mundo" da elite paulista.  


Apesar de não ter uma Elis Regina, teve Chico Buarque com o MPB-4 cantando Roda Viva ficou em terceiro lugar. A música A gente quer ter voz ativa/no nosso destino mandar/mas eis que chega a roda viva/ e carrega o destino pra lá. A peça com o mesmo nome, dirigida por José Celso estava se apresentando na mesma época do festival quando o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o teatro e espancou os artistas enquanto depredavam o cenário, mostrando que os Anos de Chumbo não eram suave na artes, caso o artista fosse visto como inimigo público. 


Uma música marcante que serviu como inspiração para o programa Roda Viva, que está no ar até hoje. Chico Buarque conseguiu se "livrar de Roda Viva", mas Caetano não teria o mesmo efeito com Alegria Alegria. Ao ser perguntado  sobre quem ele era no festival, ele respondeu "a mocinha?". Pois o lugar do "mocinho" já era de Edu Lobo. Chico Buarque apesar de ser conhecido como muito de esquerda, seguia a beca exigida pelo festivais, usava o smoking para cantar. O que o levou a se perguntar o que ele estava fazendo, sendo um velho jovem, segundo ele, com apenas 20 anos. 






Ganhar o festival foi marcante para a carreira de Edu Lobo, apesar disso, ele tentou se desvincular do vício da "mesma música sempre" que os cantores desses festivais reclamavam, e foi depois passar temporada em Paris para isso em um Casino. 


A melodia de Ponteio dá uma urgência temporal, e a letra pedia "querer ter uma viola para cantar", quando o principal evento do festival foi Sérgio Ricardo quebrando o violão em protesto contra a cultura da vaia. Era quase como panelinhas programadas. Já a tropicália, Gilberto Gil e os Mutantes saíram para ter uma carreira para além apenas do gênero música brasileira. Os Mutantes influenciam até hoje, e foram influência para Kurt Cobain e são gostado pelo filho de John Lennon e por muito mais gente que se declarou fã da criatividade da banda. 



É interessante ver esse "crossover", pois ele evidenciou como seria feita o gênero da música brasileira, que tenderia muito mais a linha de Elis Regina ou Rita Lee (que seguiria uma sólida carreira solo ganhando discos de platina depois de sair dos Mutantes), mas fazendo isso com um material menos do rock, mas isso não impediu de Rita Lee ser considera uma rainha do rock nacional.  


Apesar disso, o histórico e a visão dos festivais marcaram um período de resistência cultural ligada com um grupo político que estava interessado em driblar a censura de maneira artística. O movimento contra a guitarra elétrica era mais uma forma de "passeata" reformista, que representava um purismo, mas também era uma daquelas coisas cívicas que ninguém percebe que o que está fazendo é algo não muito democrático. 


Disponível no Youtube






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