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Por que ainda precisamos ver filmes antigos? 7 motivos + 7 indicações para começar


Dizer que “filmes antigos são importantes” é um clichê. Mas o que interessa é entender como eles influenciam o cinema que você já assiste hoje em dia. Se você curte tramas complexas, cenas tensas ou estética poderosa, é preciso sacar que são técnicas que vêm em grande parte do passado e reaparecem, repaginadas, nos filmes e séries de hoje.


Apesar de esse texto poder servir para qualquer um, meu objetivo com ele é convidar os mais jovens para esse universo dos filmes antigos. Segundo levantamentos feitos por nós do Gambiarra Cultural, o público de 25 à 34 anos é um dos públicos que menos consome filmes antigos. Se formos analisar os mais jovens, de 18 à 34 anos, esse número é menor ainda. Vários fatores podem explicar isso, como a internet e o interesse por outras mídias, como games, séries, animes e conteúdos mais rápidos disponíveis nas redes sociais.


Entretanto, seguindo aquela máxima de "quem controla o passado, controla o futuro", é preciso pensar que aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la. Como saber se um filme é bom ou inovador se não sabemos como o cinema era em sua origem? Assim qual quer efemeridade pode tomar uma proporção gigante apenas por ser "moderno". Quando Leni Riefenstahl lançou Triunfo da Vontade (1935), muitos elogiaram o filme por ser moderno. Hoje em dia, sabendo da relação do filme da cineasta com o nazismo, a peça já parece completamente ultrapassada e pura propaganda do regime.


Confira agora os motivos pelos quais, principalmente os mais jovens, devem ver mais filmes clássicos:


1) Linguagem visual: enquadramento e composição


Os clássicos ensinaram a ver o quadro como personagem, ou seja, considerar tudo que está no enquadramento. Diretores como Orson Welles, Fritz Lang e F.W. Murnau exploraram a composição em suas linhas, profundidade e sombras; para transmitir emoção antes mesmo de um ator abrir a boca. Quem já viu Cidadão Kane, lembra bem da cena onde o garoto ganha um trenó e brinca alegremente ao fundo do quadro, enquanto sua mãe negocia e traça seu destino. A cena é importante pois no final descobrimos que a fala de Kane logo no início do filme, em seu leito de morte ("Rosebud"), era o nome do trenó. Ou seja, a composição da cena entre o que acontecia no primeiro plano e o que acontecia em segundo plano, estavam ligados de maneira geral com a resolução do roteiro.


Hoje isso aparece em filmes grandes e independentes:


Profundidade de campo e ângulo baixo — Welles em Cidadão Kane (1941) usou lentes e ângulos baixos pra dar poder aos personagens; você vê o mesmo truque em filmes que querem criar autoridade ou micro-hierarquias. O cinema de Wes Wanderson é onde podemos ver mais claramente essa influência de Welles.  


Composição em camadas — Kurosawa e Fassbinder colocavam personagens em planos distintos para sugerir tensão social; Tarantino e Nolan usam isso para criar leituras visuais simultâneas.


Luz e sombra (Expressionismo) — a estética de Nosferatu e do cinema expressionista alemão segue viva no horror moderno e em thrillers: contraste alto, silhuetas, e sombras que “atacam” o personagem. Isso retorna em filmes e séries moderna de terror ao monte, como Supernatural ou até mesmo A Tragédia de Macbeth (2021).


Por que isso importa? Saber identificar um ângulo ou uma composição te faz perceber escolhas que não são “puro acaso”: são decisões que moldam emoção e significado da cena. Quem gosta de narrativa ganha uma nova camada de leitura.


2) Montagem e ritmo: o cérebro do filme


Eisenstein, os soviéticos, e Oscar Micheaux, mostraram que editar é pensar. A montagem cria associação de ideias, acelera suspense, ou cria choque.


Exemplos práticos:


Corte paralelo / cross-cutting — Eisenstein popularizou o recurso para construir tensão simultânea (ex: perseguição/resgate ou crise/soplução). Hoje, séries e blockbusters usam isso na cena de climáx: corta entre linhas de ação para aumentar, algo que vemos muito em Brian DePalma, Coppola, Scorsese e outros.


Montagem intelectual — Eisenstein montava imagens para criar ideias novas (colagem visual). Isso reaparece em videoclipes e montagens modernas que querem provocar reflexão rápida ou em sequências que resumem tempo e transformação. É o chamado "efeito Kuleshov", onde duas sequências independentes podem gerar um "esclarecimento", uma compreensão do que se passa.


Perceber a montagem e o ritmos é entender por que uma cena te deixa tenso mesmo sem diálogo: porque o corte está dizendo algo ao seu cérebro.


3) Movimento de câmera: do plano fixo ao plano que “sente”


No cinema mudo e nos primeiros falados, o movimento de câmera era caro e intencional. Na verdade, nos primeiros filmes como Mélies o movimento de câmera nem existia, tudo parecia uma peça sendo filmado. Quando passou a aparecer, carrega significado. Pense nos travellings de Fritz Lang ou nos longos planos-sequência de Kurosawa. Em outras palavras, movimentar de mais a câmera ou deixar ela parada tempo de mais em uma mesma cena, carrega novos sentidos gerais para a cena. Hoje, cineastas como Alfonso Cuarón, Inarritu, Gaspar Noe ou Paul Thomas Anderson usam longos planos-sequência para criar realismo e intimidade, técnica herdada e refinada.


Plano-sequência antigo ensinou a controlar a coreografia da cena; no contemporâneo é ferramenta para imersão. Movimentos expressivos de câmera eram comuns expressionistas e são reaproveitados para desorientar ou estilizar.


Entender o movimento de câmera te ajuda a entender o “cinema espetáculo” assim como “cinema que te coloca dentro da história”.


4) Som e silêncio: o som como ideia


Os primeiros filmes sonoros transformaram a narrativa. Antes do som, a imagem fazia quase tudo; com o som vieram camadas novas: música leitmotiv, ruídos-metáfora, diálogo como contraponto. Filmes como O Cantor de Jazz (1927) e depois Hitchcock exploraram isso.


No cinema contemporâneo, o design de som — ruídos organizados, silêncio cortante — é uma herança direta: Pense em como o som é utilizado nos filmes de David Lynch, por vezes contando uma história separada ou até negando a cena em si.


5) Construção de personagem e arquétipos


Os clássicos modelaram arquétipos: o anti-herói, o vilão ambíguo, a femme fatale. Esses modelos não são "antigos”: são personalidades que roteiristas continuam remixando.


Exemplo: o vilão psicológico de M – O Vampiro de Düsseldorf (1931) encontra ecos nos antagonistas modernos que têm motivações complexas, como Daniel Day-Lewis em Sangue Negro. 


6) Gêneros


Muitos gêneros narrativos (noir, screwball comedy, melodrama, expressionismo, impressionismo...) surgiram nos filmes clássicos, principalmente na transição dos filmes mudos para os falados. Cada um desenvolveu soluções específicas para contar histórias (detetive → suspense visual; screwball → ritmo de diálogo). Os cineastas modernos continuam pegando essas soluções como referência: se precisa de tensão, usa-se uma lâmpada e sombra; se precisa de comic timing, corta-se no tempo certo.


7) Visão prática


Para ver a influência na prática, aqui vão ligações palpáveis entre cinema clássico e aquilo que podemos chamar de cinema contemporâneo:


O Gabinete do Dr. Caligari (expressionismo) → estética de horror psicológico em O Farol e séries de terror mais atuais.


Cidadão Kane (composição e profundidade de campo) → qualquer cineasta que busca planos mais extensos da personalidade humana, por exemplo Sangue Negro em certas composições.


Montagem de Eisenstein → sequências rápidas de Matrix (montagem para choque e ideia).


Hitchcock (suspense visual e mise-en-scène) → David Fincher (suspense frio, enquadramentos clínicos) e o thriller psicológico contemporâneo.


Kurosawa (movimento e composição em grupo) → Tarantino (coreografia de grupo em cena, movimentação editorial) e Snyder (composições pictóricas).


Desligue notificações. Assista com foco em UMA coisa: só enquadramento, só som, só montagem. Compare: depois de ver o clássico, reveja uma cena semelhante num filme moderno e note os mesmos “truques” reaparecendo.


Todos que nasceram pós anos 90 cresceram em um ecossistema de remix cultural — memes, remakes, fan edits. Uma cultura marcada pela internet e logo por onde os comentários sobre as coisas chegavam antes da própria coisa em si. Eu lembro de em pleno 2008 ou 2009, quando já tinha mais ou menos 15 anos, ainda usar internet discada. Isso quer dizer que ver filmes era praticamente impossível. Um vez, para assistir o filme The Warriors, eu tive que deixar baixando por 2 dias seguidos no então Ares, para ter uma versão de qualidade bem questionável do filme. Por isso, eu lia as críticas do Omelete ou de outros sites do gênero, para saber o que rolava em filmes que eu não poderia assistir até chegar na locadora do bairro. 


Essa ideia do comentário que chega antes do filme em si, criou uma cultura, que por mais que seja típica da internet, pode desvalorizar a experiência que se pode ter com a obra em si. E principalmente nos deixa antenados no ultimo lançamento sem perceber todo um acervo que já foi feito ao longo da história e, claro, digitalizado (por boas almas). Entender as origens é aprender a ler essas referências e logo querer melhor conteúdo, e não só por ser mais caro ou bem feito, mas por ter "aura". 


7 filmes classicos para começar:


Nosferatu (F.W. Murnau, 1922) — horror e luz/sombra.


Limite (Mário Peixoto, 1931) — brasileiro, expressionismo e composição.


Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) — profundidade de campo e planos de poder.


Pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) — montagem e suspense visual.


M – O Vampiro de Düsseldorf (Fritz Lang, 1931) — vilão psicológico e som.


Tempos Modernos (Charlie Chaplin, 1936) — mise-en-scène social e gags coreografadas.


Yojimbo (Akira Kurosawa, 1961) — ponto de vista, montagem e composição.





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