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Limite (1931): Refletindo a contradição entre modernidade e passado, clássico mitológico e primordial do cinema brasileiro ficou perdido por décadas

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Em um barco à deriva, duas mulheres e um homem relembram seu passado recente. Uma das mulheres escapou da prisão, a outra estava sem destino, e o homem tinha perdido sua amante. Cansados, eles param de remar e se conformam com a morte, relembrando flashbacks do passado, atingindo o limite de suas existências. Considerado perdido por anos e com exibição original limitada, muitas acreditavam que o filme era um mito. Mesmo Glauber Rocha nunca conseguiu assisti-lo na integra. A restauração total foi feita em 2010, World Cinema Foundation (Fundação do Cinema Mundial), em parceria com a Cinemateca Brasileira. A fundação surgiu nos anos 70 da preocupação de ScorseseGeorge Lucas, Coppola e Spielberg com o desaparecimento de obras que marcaram a história do cinema 


Assista ao filme no final deste artigo


Crítica do filme



Segundo Italo Bruno Alves, em um artigo sobre a importância de Limite para entender o impacto da pandemia de Covid-19 no mundo; de esquecido por décadas, agora, Limite é público e global, pode ser visto em qualquer lugar do mundo no Youtube, já que o filme está em domínio público. Para Italo, Limite tem muito a nos ensinar, inclusive sobre a pandemia. Seja sobre o valor da produção artística brasileira, seja sobre seu mérito em promover uma abordagem inovadora até hoje no que diz respeito à vivência humana no espaço e no tempo. Sobre a capacidade do pensamento visual se ampliar por meio dos takes minuciosamente formulados por Mário Peixoto. 



O vigor das espacialidades, apontadas por Mário Peixoto, abordadas neste breve artigo de Italo, são desdobrados e ampliados às possibilidades do espaço por meio das novas tecnologias de câmeras remotas - inclusive de telescópios espaciais. Limite se tornou uma metodologia e, assim, elemento deflagrador de instigação a jovens artistas para proposições artísticas. 


Limite em sua complexidade espaço-temporal, viabiliza evocar um repertório complexo de vivências, ainda hoje. Assim, trazer o filme, agora, para um campo de debates faz dele um convite para que outros pesquisadores, de outros campos de conhecimento, investiguem na potência desta obra de arte, uma nova forma de ver o mundo onde, para Italo longe de ser contínuo, o espaço e o tempo são dobrados e multiplicados, e junto, nós, agora, revendo nossa relação com a vida e o trabalho, diante deste par de extremos: a clausura e o global. 


Já em minha leitura, um dos aspectos mais importantes do filme é que, como em muitos filmes antigos, os personagens não tem nomes. Geralmente são definidos apenas como o "homem", a "mulher". Isso abre para uma série de interpretações psicológicas do filme.



Em uma leitura natural, diria que a principal questão de Limite é o dilema de ser moderno em um país subdesenvolvido como o  Brasil. O barco é a metáfora de maneira geral do estigma social que aquelas pessoas sofrem por terem hábitos e escolhas que podem parecer incomuns para aquela sociedade. Nos anos 30, ainda era um grande dogma a questão do divórcio, tanto para o homem mas principalmente para a mulher que dificilmente encontrava outro casamento.


De outro lado, ser preso e foragido da polícia, como uma das mulheres do filme, também. Aqui o estigma consolida uma metáfora do casamento como prisão quando ele é infeliz. E ainda por último a traição, se envolver com uma mulher casada como na trama ou divorciada, não é "estiloso" mas também um estigma. 


Entretanto, Limite vê na modernidade uma solução, uma esperança contra os estigmas, algo representado pelo compassar dos planos na máquina de costura e no trilho do trem. Porém, isso convive com essa natureza, esse espaço idílico e utópico marcado pela beleza e vegetação tropical do Brasil, principalmente em relação à Mata Atlântica do Rio de Janeiro que decora o filme de maneira geral. 


A água, a luz do sol, as sombras, a arquitetura de casas, becos e vielas, as cercas de bambu das casas pobres, a vegetação retilínea formando ângulos geométricos, são as características típicas do Brasil mas que ao mesmo tempo marcam a conservação dos costumes e a dificuldade de adaptação ao moderno. 


Aqui o tempo ganha sentido de metáfora sociológica para falar desse lapso temporal que separa ricos e pobres no Brasil, marcando os campos políticos no país para além de esquerda e direita mas também entre ricos e pobres. A cena que expõe isso melhor é a da exibição do filme do grande Chaplin, onde as pessoas se divertem no cinema com seus sorrisos desdentados e careados: o cinema, fruto dos filhos da elite, entretendo os pobres, aos quais para alguns "não entendem o cinema". 


Essa contradição reflete muito do que sentia Mario Peixoto. É essa contradição entre modernidade e liberdade, e o valor dos costumes e da tradição cultural e nacional do Brasil, são o que marcam mais Limite. Mário Peixoto, filmando no auge da Revolução de 30, via elementos que ele admirava no getulismo, mas de maneira geral refletia o trauma de estar "fora de tempo" sendo alguém da elite. Como se para ele o tempo tivesse o pregado uma peça, e dessa armadilha temporal tivesse surgido Limite como de um sonho. 


A montagem que mistura elementos formalistas do cinema mudo, comuns ao cinema soviético, mas em uma trama pessoal e pessoas comuns típicas ao cinema americano, como em A Turba ou Aurora (do qual Limite herdou o barquinho) marcam com perfeição a contradição cultural entre Ocidente e Oriente que é o Brasil. 


A luz e o som do filme dão um caráter de imanência transcendal ao filme, como um sonho ou uma profunda meditação. Esse estado de transição impactam o espectador que se distrai da trama principal em planos muito fluidos e diferenciados, para apenas voltar a trama como metáfora da viagem emocional que decisões e momentos implicam. 


Em 2017, eu tive a oportunidade de assistir Limite no Centros de Arte da UFF, em uma exibição ao vivo com a orquestra da Universidade Federal Fluminense executando a trilha simultaneamente. Pouco antes de começar, um senhor já idoso sentado ao meu lado começou a reclamar dos governos do PT, afirmando como Dilma precisava ser realmente deposta e como Lula deveria ser preso. Antes de começar, o apresentador fez questão de destacar que o filme foi restaurada por iniciativa dos governos Lula e Dilma.


Entretanto, ver um filme épico como esse com orquestra, foi uma das experiências mais emocionantes e impactantes que já tive cinematograficamente, e melhor de tudo: é coisa do Brasil, ou seja, é cosa nostra.


História da produção do filme


As filmagens de Limite foram feitas no município de Mangaratiba na Fazenda Santa Justina, pertencente a Victor de Souza Breves, parente de Mario Peixoto. O tema do filme é a passagem do tempo e a condição humana.




O filme provocou polêmica nas suas primeiras exibições e inclusive houve quebra-quebra durante a sua exibição. Acabou virando um mito, já que por muitos anos não foi exibido novamente e se tornou um filme perdido. Recuperado nos anos 70, o filme se tornou uma obra-prima e deixou sua marca na história cultural do Brasil.




É considerado um dos primeiros filmes experimentais já realizados na América Latina.


Limite foi criado em um momento de transição do cinema mudo para o sonoro. Apresenta inovações em fotografia e montagem, além do fato de apresentar uma narração não linear. A partir do roteiro principal, o diretor questiona “a passagem do tempo e a condição humana”.




Professor associado na UFRJ, o pesquisador Denilson Lopes pesquisou a vida de Mário Peixoto, particularmente sobre a sua homossexualidade descrita por ele como, “muitas vezes dita, mas pouco estudada”, objetivando uma “busca ansiosa de um espelho do passado em que possamos nos ver”. 


Seria possível atualizar o passado a partir de um olhar para tudo que é estranho na História? O livro é composto de três ensaios, o primeiro focado na infância, o segundo, no período em que Peixoto viveu no Reino Unido (entre 1926 e 1927) e o terceiro na sua correspondência com o escritor Octávio de Faria (1908-1980). A base do trabalho são cartas e também diários do Arquivo Mário Peixoto. Analisando documentos de infância recentemente digitalizados, com atenção especial, percebe-se pelo texto do livro, às fotografias, não por acaso “espaços privilegiados de uma expressão queer, homoerótica, no modernismo”, explica o autor. As fotos com dois amigos japoneses, por exemplo, ajudam a entender a expressividade corporal que incomodava o próprio Peixoto e que foi importante para o seu rompimento com a família, incomodada, indica Lopes, com aqueles registros da aproximação física entre os amigos.




Segundo um outro artigo de Denilson Lopes, disponível no Google Acadêmico, sobre as cartas de Limite, diversas cartas inéditas, em grande parte, de Octavio de Faria para Mário Peixoto, escritas desde o fim dos anos 1920 até 1933, pelas quais Octavio realiza uma campanha publicitária em favor de Limite (1931) e trazem mais informações sobre a obra são exploradas. Pelas cartas, podemos ver uma longa amizade (que durou até a morte de Octavio de Faria), as ansiedades de jovens artistas, como foi a primeira apresentação de Limite em 17 de maio de 1931 - e, ao mesmo tempo, as cartas ajudam a desmitificar o suposto isolamento de Mário Peixoto. 




Nas  cartas  de  Octavio  a  Mário,  sempre  considerando  que  Mário  possa  as  ter alterado  quando  estava  revendo  o  material,  no  interesse  de  publicá-lo  ou  ter  incorporado no  grande  projeto  de Mário  Peixoto, O  inútil  de  cada  um (1992),  aparecem  registros  de  trabalhos   desconhecidos,  e  posicionamento  de  Octavio  de  Faria  sobre  o  papel  do artista em  grande  parte,  a  partir  do  que  Mário  lhe  enviou  ou  fez.  Como  diz  sobre  uma peça  de  Mário  Peixoto:  “O  que  eu  quero  dizer  é  que  ela  não  vai  ser  apreciada  como devia.  Você  que  viu  ‘A  Turba’ conhece  os  juízes  que  te  esperam.  E  como  me  parece que  eu  mesmo  não  sou  mais  que  um  deles  vou  parar  para  não  cuspir  mais  para  o  alto. Só há  um  juiz  para sua obra:  você mesmo”.




De  forma  explícita,  na  continuidade  da  correspondência,  Octavio  de  Faria  faz uma  avaliação  do  amigo,  das  consequências  de  sua  formação  de  “menino  rico  e prendado  moral  como intelectualmente”,  “menino  de  família”,  e  a  implícita  necessidade de  ruptura  com  esta  formação  para  ser  um  artista,  na  anunciada  longa  carta  que  ele escreve  em  26  de  julho  de  1929.




Ali,  ele  demonstra  ver  em  Mário  uma falta  de  persistência  que  talvez  anuncie  as  dificuldades  em  concluir  trabalhos  após Limite : “Você  vive  mudando  de  orientação.  Não  tem  a  força  de  errar  até  o  fim  num sistema.  Logo  que  você  perde  a  confiança  no  sistema  em  que  você  se  lançou  com entusiasmo,  você  murcha,  desanima,  desiste”.  Octavio  critica  também  sua impressionabilidade,  como  se  esta  derivasse  de uma  falta  de  vontade  para  construir  uma obra  pessoal:  “Natureza,  portanto  extremamente  sensível  que  vive  no  contacto  de muitos  pensamentos  diferentes  (o  burguês aventuroso do  teatro de  brinquedo honrado  de  seu  pessoal,  o  artístico , etc.)”. Subjaz  ao desejo de  uma obra pessoal, uma afirmação de uma personalidade  forte.




Limite foi por muitos anos considerado totalmente perdido. E como o filme foi originalmente exibido apenas em ciclos fechados, Limite sempre teve uma aura mitológica. Para se ter noção muitos acreditavam que o filme não existia, não passava de lenda, e Glauber Rocha escreveu sobre o filme mas nunca conseguiu de fato assisti-lo na integra. 


A restauração total foi feita em 2010, World Cinema Foundation (Fundação do Cinema Mundial), criada por Martin Scorsese. Segundo reportou a Folha na época, a restauração foi uma parceria da entidade com a Cinemateca Brasileira. A fundação surgiu da preocupação de Scorsese com o desaparecimento de obras que marcaram a história do cinema. No final dos anos 1970, ele e os diretores George Lucas, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg criaram a Film Foundation, que restaurou mais de 500 filmes norte-americanos, muitos deles da primeira metade do século 20. A fundação mudou de nome -chama-se hoje World Cinema Foundation- e estende sua salvaguarda a filmes como "Transes" (1981), do marroquino Ahmed El-Maanouni, e "Limite".




A primeira restauração de Limite foi feita por  Saulo Pereira de Mello, recentemente falecido após ser acometido pela Covid-19. Saulo a completou no início dos anos 70 e cuja autoria fez questão de dividir com Plínio Sussekind, é um dos feitos mais prodigiosos da história do cinema brasileiro. O filme de Mário Peixoto pôde finalmente ser visto por gerações que até então só tinham ouvido falar dele. Muitos de nós por meio de Vinicius de Moraes, admirador de primeira hora do filme. Na árvore genealógica do cinema, escreveu Vinicius, “Limite” era como um passarinho que pousava em um dos seus galhos e voltava a alçar voo. Um filme inclassificável, essencialmente livre.


No início dos anos 2000, o primeiro restauro de “Limite” começou a se deteriorar. Alguns rolos já estavam avinagrados. Foi então que Saulo começou a reunir matérias para uma restauração final que demorou 10 anos até conseguir apoio do fundo de Scorsese, com apoio da Cinemateca.


Assista ao filme aqui:



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