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Procura-se Susan Desesperadamente (1985): Simbologia mística e troca de identidades marcam filme da Terceira Onda Feminista



Procura-se Susan Desesperadamente é uma comédia dirigida por Susan Seidelman (que dirigiu o piloto de Sex and the City), estrelando Madonna e Rosanna Arquette, interpretando a própria Madonna. Ambientado em New York, a história envolve a interação de duas mulheres, uma dona de casa entediada de New Jersey que passa o dia bombardeada de propagandas e referências de Susan (Madonna), que se encanta por seu estilo e moda e começa a seguir Susan pelas ruas, a acompanhar pelos jornais. Até que a dona de casa rouba a identidade de Susan quando ela vai presa. O filme evidenciou muitos artistas como, John Turturro, Laurie Metcalf, Aidan Quinn e Steven Wright e Giancarlo Esposito, que viraram famosos performers. Foi considerado pelo New York Times um dos melhores filmes de 1985


Roberta Glass é uma mulher que acaba ficando obcecada com a cultura pop e com a diva do pop, a Madonna, mas que no filme é Susan. Ela fica fascinada pela troca de mensagens entre Susan e Jim Dandy no jornal de tabloide de New York. 




Querendo avistar o casal, Roberta vai para o Battery Park e vê Jim e Susan conversando antes dele ir em turnê com sua banda, depois ela segue Susan para uma loja de brechó onde ela vai comprar a jaqueta característica de Susan, que ela vendeu para trocar por um novo par de botas. 




Roberta encontra a chave do armário de Susan no bolso da jaqueta. Preocupado com a repercussão da conexão da morte de Meeker, então Jim pede ao seu amigo Dez (Aidan Quinn) para dar uma olhada nela. Esperando por Susan no Battery Park, Roberta bate a cabeça e perde a memória, Susan a reconhece, mas acaba presa por não pagar o valor do táxi. 






Quem também confundiu Roberta com Susan foi o Dez, que levou ela até autoridade portuária para pegar a mala de Susan, achando o outro brinco e deixa ela ficar em seu apartamento acreditando que era Susan, a namorada de seu amigo, acontece que ela era Roberta, que acaba sendo presa também. 


Susan tinha sido presa por não pagar o táxi, já Roberta fingindo ser Susan foi presa por prostituição depois de ir no Clube dos Mágicos e ser contratada como substituta de Crystal, e arrumar um emprego lá como assistente, depois de sua primeira performance ela é perseguida na rua por um homem desconhecido que tentava contato com Susan,  e acaba presa depois disso. 




Depois disso tudo, o marido de Roberta, Gary, acha que ela fugiu dele para ter uma "aventura". Susan então acompanha Gary até a casa dele e Susan e se vinga, roubando de volta a vida de casada de Roberta e lá fuma maconha junto a Gary. Roberta liga para a família que fica horrorizada com a prisão de Roberta por prostituição e o marido fica desolado ao descobrir que ela não estava mais lá. 


Depois de Dez pagar a fiança de Roberta, e aí eles dormem juntos. Na casa de Gary, a verdadeira Susan vê a televisão falando de Meeker e Nolan e o brincos roubados da coleção egípcia que pertenciam a Nefertiti (que foi uma rainha egípcia, esposa do faraó Amenófis IV).  



Susan pega o diário de Susan e mostra a verdade de qual era mesmo a paranoia de Roberta, que era imitar e viver a vida pop e descolada de Susan. Depois Susan posta o mesmo tipo de texto avulso de jornal para encontrar Roberta. Dez ataca alguém que estava em seu apartamento, que depois ele foi ver ser Jim. Ele confessa que está com Susan, mas depois descobre que não é a mesma Susan de Jim. 


Jim e Dez chegam no Magic Club junto com Gary, sua irmã Leslie que sempre fala mal de Roberta. Roberta reconhece Nolan que escapa dos bastidores. Dez deixa Roberta para convencer e explicar os eventos para o marido Gary, ele fala para eles irem para casa e esquecer o que ocorreu, mas ela diz que não, terminando o relacionamento no fim. Nolan ameaça Susan com uma arma e quem salva ela é Roberta e finalmente elas se encontram pela primeira vez. 



Minha Leitura do Filme


A jornada de Madonna nos filmes é extensa, ela fez diversos e sempre foi criticada por seu tipo de atuação não muito profunda, afinal ela é famosa. Como em quase todos os seus filmes, nesse filme ela interpreta ela mesma, então é um jogo de cena muito profissional e vindo da diretora do piloto da série Sex in the City


Roberta parece ser o típico público alvo de Madonna, alguém que a consumia entre notícias de jornais bobas e tabloides. A ideia de deus ex machina da troca de identidade previve o óbvio, o envolvido do amigo do namorado de Susan com Susan, que tinha como hábito roubar os homens que se envolvia, o que deixava seu namorado com medo de seu carácter errático e por isso que colocou seu amigo "para vigiá-lo", mas o elemento da troca de identidades reflete muito mais sobre o carácter pulp da vida como imagem e representação. 


Como sempre os filmes dirigidos por mulher são conhecidos normalmente erram no realismo da representação e acabam sendo conhecidos por ser "chicklit" filmes de público x, piegas e etc. Mas no caso não, é como se fosse uma ideia de mulher mais para empoderada do que tadinha. A potencialidade feminina não se alinha exatamente com uma posição moral.


A verdade é que esse filme vai um pouco além dos clichês tradicionais dos chamados "filmes de mulher". Toda a narrativa é pensada para agradar a estética feminina, como os westerns são pensados para agradar cada fibra do ser masculino. Mas isso é feito de uma maneira muita científica. As cineastas que usam de um novo tipo de feminismo (um tipo que louva as especialidades do universo feminino, não condena) como Susan Seidelman ou Amy Heckerling, que ficavam irritadas na vida por sempre serem oferecidos para elas filmes de líderes de torcida, de uma maneira que elas comercialmente admitem o tipo de preconceito que toda cineasta recebe e jogam de volta todo o clichê. Seria essa nova onda do cinema após os anos 80: de utilizar o arquétipo para destaca-lo como errado. 


O fim do filme inspira uma resolução feminista, onde nem a atitude de Susan, como a de Roberta que salva Susan de verdade do mafioso que a perseguia por causa dos brincos. A chamada Terceira Onda Feminista ocorreu bruscamente nos anos de 1990, mas as raízes remontam aos anos de 1980. O movimento está nas ciências humanas, como o surgimento do campo de estudo da micro-história para a História. Passa-se a desenvolver um pensamento que não acha que as mulheres foram excluídas da sociedades, pois por mais subalternado em relação aos homens que fosse suas vidas elas ainda tinham o poder de Lisístrata em A Greve dos Sexos, elas ainda tinham o poder Oikos (espaço de economia privada, o lar). 


A questão aqui é, em termos de valores feministas e o que Madonna teria a ver com isso? Tudo, eu acho. O que teria de diferente na perspectiva desse novo feminismo? Primeiro, a noção de que as filhas jamais seriam mais iguais as suas mães, por mais que existam mulheres jovens que vivam vidas conservadoras. Na época dos anos 1980, se refletia muito sobre o papel da mulher e da igualdade de gênero, e a Segunda Geração das feministas sofriam com as críticas ao estilo feminismo liberal. 


A posição de reconhecimento da falência do feminismo universitário chega na realidade das 'mulheres normais', o que criou a nova geração de feminismo, uma geração que acredita no "feminismo da diferença" que gosta do que é feminino e quer explorar isso. Ou seja, em um feminismo pós Simone de Beauvoir que entende haver sim diferenças massivas entre homens e mulheres e que a negação disso tornou o mundo muito opressor para as mulheres pós época dos baby boomers


A ética de Susan ao devolver o brinco é uma piada, no sentido de que ela inicialmente roubou de alguém que conheceu que tinha roubado antes, ou estilo "ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão". A brincadeira com o público é essa mesma. Com a influência marcante do pós estruturalismo de Foucault, uma mudança ocorreu nos temas centrais do estado, leis e patriarcado e mias focado nas reminiscências do feminino, e nos locais não tradicionais de poder, nas lógicas argumentativas de discursos, e na própria forma de conversar. Nessa nova era o corpo escreve junto com as ideias, sendo central na noção do novo tipo de feminismo. 


A subjetivação das mulheres como mulheres e não mais como uma lógica de "nós" entendemos melhor juntos. Sendo um momento forte de reflexão sobre os problemas do feminismo, que não pensava a situação das donas de casa, que se tornaram inimigas das feministas de Segunda Geração e seu habitus universitário. 


A tentativa era acabar com a polaridade entre feminilidade e feminismo que se comportavam como uma ideia oposta no feminismo antigo. No feminismo de terceira geração há uma preocupação com a mulher mediada, a mulher comum, a dona de casa que não havia antes. Por isso o 'crossover' da vida de Susan (Madonna) com a vida de Roberta. Por isso a ideia do filme é genial, pensar que no abandono da representação da maioria das mulheres pelo feminismo acadêmico que surgiu o interesse de uma espécie de feminismo bobo, estético, centrado em não mais disfarçar o que teria de feminino no mundo e nas mulheres. Enquanto as feministas de Segunda Geração acusam a terceira geração de feminismo centrado apenas da noção do empoderamento estético ou financeiro. 


É um debate, mas o filme tem a genialidade de mexer na ferida mostrando a realidade que as mulheres são submetidas por conta do tratamento de arquétipo vivo que a sociedade tem das pessoas. Susan (Madonna) no filme vive praticamente nas ruas de New York, tomando banho pelos hotéis, vivendo na casa de amigos e tomando banho em banheiro públicos, tendo uma vida dessa forma, parecida com a dos antigos hippies. 


Porém, a referência aqui é o surgimento da cena punk feminina, que explode nos anos de 1990 junto com os novos estudos de feminismo. Como Susan (Madonna) não tem casa, eira nem beira, ela acaba sendo também parte daquilo que chamamos de pessoas na marginalidade e na pobreza, mas o estilo faz a gente não pensar na pobreza das condições materiais, pois a pobreza aqui é o que garante a liberdade sexual, já que ela não tem casa ou paradeiro, e só sabemos disso através do jornal. 

 



Qual das duas personagens seria a mais feminista? A dona de casa certinha que tem a vida e o cotidiano enquanto rotina (ou seja, possui uma forma de trabalho, mesmo sem vínculo de CLT, e não reconhecido), que parece as feministas ao estilo "pornô mata mulher", ou a mais feminista é que sexualmente livre, porém que não confia em nenhum homem, pois vive de roubá-los depois de encontros, nunca se envolvendo? 


A terceira onda do feminismo, diferente da primeira e da segunda foi amplamente divulgada pelo senso comum e pela cultura de massa e pela mídia e focava na voz da juventude. 


Bandas de garotas como Riot Grrrl ou Bikini Kill espalhavam a  mensagem de "empoderamento" através do punk rock e de ser desajustada. Filmes e programas de tv possuíam uma atitude de terceira onda de feminismo, como a série Buffy: the Vampire Slayer, 30 Rock, onde as personagens fortes se tornavam mais comum na mídia de acordo com aumento do consumo por parte de adolescentes e garotas de novas gerações que cresceram assistindo um ambiente social diferente do ambiente onde suas mães foram criadas. 


O filme quer brincar que tanto o arquétipo da "puta (mulher sexualmente liberta)" quanto o da santa precisam das novas noções de feminismo, e isso envolve a perspectiva de de interseccionalidade vinda dos estudos de Kimberlé Crenshaw. Quando Roberta salva Susan no final, o filme vira não mais sobre disputa de identidades era a "santa" e a "puta", quando Roberta salva jogando uma garrafa na cabeça do algoz de Susan (sua musa dos diários), assim, ela se torna feminista e elas finalmente se conhecem. 



Quando Roberta rouba a identidade de Susan, ela ainda era inocente, e não percebia que apenas por estar com as roupas (o elemento da moda), ela já era considerada prostituta automaticamente. Ou seja, a sociedade é idiota assim. O carácter da mulher, tanto pro bem quanto por mal está decidido no tamanho da saia que ela usa, ou no quanto normal ela pareça aos olhos comuns. 



A moralidade de Susan que pensamos ser inicialmente baixa é questionada quando ela encontra Gary, o marido de Roberta, que está em sua cabeça roubando suas coisas e sua identidade. Já Roberta era considerada a "mulher perfeita", não se metia em confusão, nunca fumou um cigarro na vida, nunca fez nada, como o marido Gary falou. Mas é exatamente essa falta de experiência que faz com que ela se encante com a forma livre, porém libertina com que Susan leva sua vida. 




É um jogo de crítica duplo aqui. Temos a suposta "puta" e temos a "santa", mas elas vão trocar de vida, então a santa vai experimentar a vida da puta e a puta a vida da santa. Resultado? Ambas gostam da mudança de cenário. Susan (Madonna) gosta da materialidade do casamento tradicional e se diverte na ausência de Roberta, já que esta está roubando sua vida e tendo a liberdade de acesso e consumo que nunca tinha tido na vida. 


Ela mostra a obsessão de fã que Roberta tinha com Susan (Madonna), entre investigar na rua para ver onde ela compra suas roubas e tentar se vestir igual, desde de procurar nas notinhas do jornal pistas sobre sua vida liberal.  O mesmo pode ser dito sobre Roberta, que nunca tinha feito nada sozinha na vida, e que logo, percebe que ela na nova identidade pode fazer em tese, o que ela quiser. A ideia de que ela bate a cabeça e esquece de quem é ótimo, mas como ela está com as roupas e a moda de Susan, todos a tratam como Susan, para o bem e para o mal.  


O nome dela é Louise Veronica Ciccone, mas todos conhecem Madonna por ser Madonna, algo que pouco refletimos. No fim do filme, Roberta acha Dez onde ele trabalha no cinema. Ela se apresenta com seu nome normal e eles começam um relacionamento e se beijam. Roberta e Susan acabam sendo celebradas no jornal como as heroínas que ajudaram a devolver os brincos roubados. 


A "cigarette girl"  garota que vendia cigarros. 



Contexto da Produção e bastidores do filme:


Já a direção do filme é incrível, com uma fotografia que capta o mundo underground de New York, com o universo punk/rock e desconstruído que marcaria a diretora também nos seus próximos filmes, que ficaram próximas de uma ideia de cinema independente, bem feito, meio capitalista, mas bem feminista, bem ao estilo de Madonna. 




Acima estão Steven Wright, John Turturro, Richard Edson e Giancarlo Esposito, que ficariam bem famosos depois em outros papeis. 


Susan Seidelman (diretora do filme) é uma diretora, produtora e escritora de peso americana. O primeiro papel dela notável foi com Smithereens (1982), o primeiro filme independente a ser exibido na competição de filmes de Cannes, e que também teria a temática de New York como pano de fundo. Seu longa  Procura-se Susan Desesperadamente (Desperately Seeking Susan, 1985) contava com a presença de ninguém mais, ninguém menos que a diva do pop Madonna. Seu estilo é marcante por hibridizar elementos de cultura pop clássica com a nova cultura pop.





Queriam inicialmente ou Goldie Hawn ou Diane Keaton para o papel de Roberta, mas a diretora preferiu escala Arquette e Madonna para agradar o público jovem que queria atores mais novos. Parece que Bruce Willis também estava querendo o papel de Dez, e que a cantora Suzanne Vega  também tentou o papel no filme. A jaqueta "do Jimi Hendrix", foi muito marcante no filme, e o símbolo da pirâmide foi desenhada por Santo Loquasto inspirado na trama da troca de identidade. 


O filme foi inspirado no longa Céline et Julie vont en bateau (Céline and Julie Go Boathing, 1974). O fim alternativo mostrava Susan e Roberta em uma aventura no Egípcio no DVD. A diretora cortou a cena para não irritar a audiência por achar  desnecessária e que o filme já tinha o final filmado de antes com o mesmo sentido. 




As cenas no trabalho de Dez no cinema foram filmada no Bleecker Street Cinema. Roberta em uma das cenas assistir ao filme Rebecca (1940) de Hitchcock, o filme de ficção científica The Time Travelers (1964) está na edição do final do filme. O filme foi classificado antes como um filme para maiores de 18 anos, mas depois foi observado que o filme era leve e que podia ter uma classificação aberta. Algumas cenas foram gravadas na Dandeteria, um clube que Madonna frequentava e que fez ela começar sua carreira. As cenas exteriores foram gravadas no Harlem, em  Audubon Ballroom.


O tipo de filmagem "realista" da vida noturna da cidade e as diversas referências a simbologia, tanto oriental, como também simbologia musical com referências a banana do Velvet Underground e outras bandas. Inclusive, a música que Madonna lançou para o filme é a canção "Into the Groove" que tem cenas do filme, como a fala quando finalmente Susan (Madonna) encontra com Roberta.  As referências são muitas, se o passatempo do cinéfilo e fã é catar cada uma, dá certo trabalho. O filme tem poster de Claudette Colbert, imagem de Marilyn Monroe e diversos outros. 





Ou seja, Susan é um personagem arquétipo junto com as próprias ruas de New York. A lenda que se conta, é que da mesma maneira, Madonna alguns anos antes tinha  feito a mesma coisa, largando tudo para tentar a sorte em New York como dançarina, mas sua inteligência e presença nos cenários musicais underground fizeram ela conhecer muita gente da área, como seu namorado na época Dan Gilroy, logo, ela se envolveu em contexto de formação de bandas, como a Breakfast Club. 

Parece aparentemente um filme simples para falar sobre fama, anonimato, moralidade, como também sobre todo o universo do underground ao encontra com a cultura pop. Os brincos, a troca da identidade, os símbolos e participações de uma cultura jovem e de músicos de verdade tornaram o filme uma obra de arte cult e pop. Considero o melhor filme de Madonna, onde ela está mais eternizada como o símbolo único que ela é. 


Disponível no Amazon Prime Video e no Apple TV



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