A Noite dos Mortos-Vivos (1968): Como Romero revolucionou os filmes de terror com zumbis que representam a sociedade americana
Lançado em 1968 e dirigido por George A. Romero, A Noite dos Mortos-Vivos é o marco fundador do cinema moderno de zumbis. A trama acompanha um grupo de pessoas presas em uma casa isolada enquanto o mundo ao redor é tomado por mortos que voltam à vida. O que parece apenas um filme de terror B, de baixo orçamento, se revela uma poderosa alegoria social e política, repleta de simbolismos e críticas e à sociedade americana dos anos 60.
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A grande tese de A Noite dos Mortos-Vivos é que o verdadeiro monstro não é o zumbi, mas o próprio ser humano. Romero transforma o apocalipse em um espelho da intolerância, da histeria coletiva e do racismo estrutural.
O protagonista Ben (Duane Jones) é um homem negro que, em meio ao caos, assume paulatinamente e naturalmente a liderança de um grupo de sobreviventes que está refugiado dos zumbis em uma casa, algo diferenciado para a época.
A história começa com Barbra e seu irmão Johnny visitando o túmulo do pai, quando são atacados por um estranho cambaleante. Johnny morre, e Barbra foge aterrorizada até encontrar uma casa de campo, onde se refugia. Pouco depois, Ben também chega na mesma casa e tenta organizar o lugar, barricar portas e janelas, assumir o controle da situação.
Boa parte do filme se passa dentro dessa casa, ou seja os zumbis passam a maior parte do filme no extracampo do filme, sabemos que eles estão lá e são uma ameaça iminente, onde as paredes, o enquadramento, marcam a segurança da casa. Romero estabelece o ponto de vista do sobrevivente dentro da batalha visual. Enquanto do lado de fora os mortos cercam o abrigo, dentro dele as tensões sociais e raciais emergem.
Ben e Barbra compartilham histórias de como chegaram lá, o que se transforma em uma briga depois que ela tenta sair da casa para resgatar Johnny, sem saber de sua morte. Barbra, traumatizada pelos eventos, entra em um estado quase catatônico, enquanto Ben descobre um rifle de ação por alavanca enquanto vasculha o andar de cima.
Barbra fica surpresa ao descobrir outras pessoas já abrigadas no porão da casa: Harry, sua esposa Helen e a filha pequena, Karen, que fugiram para lá depois que criaturas monstruosas viraram o carro deles e morderam Karen no braço, deixando-a gravemente "doente". Ou seja, ela tá infectada e vai virar zumbi também, algo revolucionário para época pois estabelece um ponto de vista biológico ao zumbi, um fator de contágio, diferente de filmes como I Walked With a Zombie (1943) que pensavam o zumbi com um espécie de "transe".
Outro casal, Tom e Judy, havia se refugiado na casa de fazenda após ouvir um anúncio de emergência. Tom sobe para ajudar Ben a proteger a casa, enquanto Harry protesta, dizendo que é perigoso ficar na superfície. A tensão aumenta no grupo à medida que mais criaturas monstruosas chegam para sitiar a casa.
Por meio de reportagens de rádio e televisão, os sobreviventes ficam sabendo que cadáveres canibais estão cometendo assassinatos em massa na Costa Leste dos Estados Unidos e que grupos de homens armados patrulham o interior para exterminar os mortos-vivos. Relatos confirmam que os mortos-vivos podem morrer novamente devido a fortes golpes na cabeça, tiros no cérebro ou queimaduras. Diversos centros de resgate oferecem refúgio e segurança, e cientistas teorizam que a radiação de uma sonda espacial que explodiu ao retornar de Vênus causou as reanimações.
Ben propõe um plano para obter suprimentos médicos para Karen e transportar o grupo para um centro de resgate após abastecer seu caminhão em um posto na fazenda. Ben, Tom e Judy dirigem juntos até lá, repelindo os zumbis com tochas e coquetéis Molotov. No entanto, o combustível derramado pega fogo e causa a explosão do caminhão, matando Tom e Judy. Ben retorna, mas quando Harry se recusa a destrancar a porta, Ben a arromba.
Os sobreviventes restantes debatem as possíveis opções até que o noticiário das 3 da manhã começa. Enquanto assistem à atualização, a energia acaba e os necrófagos invadem a casa escura pelas portas e janelas. No caos, Harry pega o rifle de Ben, mas é desarmado e baleado. Ferido, ele cambaleia até o porão para morrer ao lado da filha.
A disputa entre Harry e Ben, sobre quem deve liderar, quem tem razão, quem “manda” ecoa diretamente o clima de segregação e desconfiança racial dos Estados Unidos da época. Harry obviamente não está levando a situação a sério, não entende a iminência do perigo, apenas busca se opor aquilo que sempre foi ensinado a ver como errado.
Barbra desperta de seu delírio e afasta um zumbi que ataca Helen, que foge para o porão.
Quando Karen morre devido ao ferimento, ela se transforma em um zumbi (olha, que surpresa!) e alimenta-se dos restos mortais do pai e mata a mãe. Barbra tenta ajudar Ben a manter as criaturas malignas afastadas, mas paralisa ao ver Johnny, seu irmão, reanimado como um zumbi, que a arrasta para o meio da horda. Enquanto a horda invade a casa, Ben se refugia no porão, onde atira em Harry e Helen, que também estão reanimados.
Aqui é uma coisa engraçada do filme que é sua temporalidade. Apesar de no roteiro tudo oficialmente dar a ideia que o filme se passa em em 24h, entre dois dias, o filme parece estender esse tempo, principalmente quando Barbra e Ben se tornam os últimos sobreviventes. Não temos referência de tempo algumas, apenas o que vemos dentro da casa. Isso faz com que pareça uma metáfora de relacionamento entre Barbra e Ben, e como o relacionamento deles fica desgastado pela tensão com os zumbis, que seriam uma espécie de metáfora da sociedade e da reprovação ao relacionamento deles.
Pela manhã, um grupo armado chega para eliminar os zumbis restantes. Acordado pelos tiros, Ben sai do porão, mas, confundindo-o com um zumbi, o grupo atira nele. Seu corpo é jogado em uma fogueira e queimado junto com os outros cadáveres, nos parecendo em toda estética do rido uma referência visual ao grupos de linchamento e o ritual de enforcar e depois jogar os corpos na fogueira, algo melhor debatido e encenado em Within Our Gates (1920), de Oscar Micheaux.
Apesar do gênero de terror, o roteiro se desenrola quase como um drama de claustrofobia social, com zumbis servindo mais como metáfora do que como ameaça física. A convivência forçada entre pessoas diferentes, trancadas em uma casa, reflete o próprio retrato de um país dividido. O simbolismo vai além: o homem negro e a mulher branca sobrevivendo juntos é uma afronta silenciosa aos padrões morais conservadores de 1968, um ano marcado por assassinatos políticos, protestos civis e forte tensão racial. No Brasil, por exemplo, era ditadura militar e logo os zumbis como metáfora do reacionarismo e do fascismo leve da sociedade faziam bastante sentido.
Quando o filme chega ao seu final trágico, com Ben sendo morto por uma milícia de “cidadãos” brancos, confundido com um zumbi, Romero sela sua crítica. O herói negro sobrevive aos mortos, mas não aos vivos. O terror maior é a sociedade racista, não o apocalipse.
O filme foi rodado em preto e branco, com baixo orçamento e elenco desconhecido. Mesmo assim, George A. Romero constrói um trabalho de direção impressionante. Por seu tom de ficção científica atrelado a temática de zumbi, Romero não criou apenas um filme: criou um gênero. Olhe a franquia Resident Evil, e tudo que eles estabelecem como mitologia sobre zumbis, parece diretamente retirado de Romero e seus filmes, principalmente este. Ele usa o improviso e a limitação técnica como estilo: câmera na mão, iluminação natural e cortes bruscos que criam uma sensação quase documental. Isso dá ao filme uma autenticidade perturbadora, parece que estamos assistindo a uma transmissão real de um desastre.
Aqui acho que vale destacar uma fala conhecida de Romero, que acreditava que tramas e filmes de zumbi tinham uma vibração similar da pornografia. A frase costuma aparecer em entrevistas dos anos 1970 e 1980, quando Romero explicava seu método de construção de tensão e catarse.
De forma geral, ele dizia algo assim (em variações dependendo da entrevista): “Filmes de zumbi são como pornografia: têm o mesmo ritmo e vibração. Você constrói a excitação, o clímax acontece em ondas de violência, e depois tudo se acalma — até a próxima explosão”, dizia Romero.
O que ele queria dizer com isso não era que os gêneros se pareciam no conteúdo, mas na estrutura emocional. Ambos alternam momentos de calma e expectativa com picos intensos de estímulo físico e visceral. Essa visão mostra bem como Romero via o terror: não apenas como susto, mas como uma experiência corporal e social, que faz o espectador reagir quase de forma instintiva. Essa visão sobre o cinema de terror e a estética do filme de maneira geral, lembram muito A Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), do cineasta brasileiro José Mojica Marins, o Zé do Caixão.
O contexto histórico é crucial: A Noite dos Mortos-Vivos foi lançado durante a Guerra do Vietnã, os protestos pelos direitos civis e os assassinatos de Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy. As imagens de corpos, pânico e caos social ecoavam o noticiário da época. Muito devido também na melhora dos equipamentos da época: câmeras fotográficas e de filmagem mais precisas, além da disseminação da televisão. Romero, mesmo sem dizer abertamente, criou um filme político que denunciava o colapso moral dos EUA e a falência de suas instituições.
Tecnicamente, o uso de figurantes para os zumbis, a maquiagem rudimentar e o som cru só aumentam o realismo. O terror não vem de monstros elaborados, mas da banalidade da violência e da alienação coletiva — elementos que Romero usaria como base para todo o seu trabalho posterior, incluindo O Despertar dos Mortos (1978) e O Dia dos Mortos (1985), mas também outras mídias, como o Thriller de Michael Jackson.
Curiosidades e bastidores
O papel de Ben não foi escrito originalmente para um ator negro. Duane Jones foi escolhido simplesmente por ser o melhor ator disponível, mas sua presença deu ao filme uma força política inesperada.
O orçamento do longa foi de cerca de US$ 114 mil, e ele arrecadou mais de US$ 30 milhões no mundo todo, um sucesso colossal para um filme independente.
O filme entrou em domínio público por erro de registro, o que ajudou a espalhar sua popularidade e a criar uma legião de imitadores.
A violência gráfica e o pessimismo do final causaram polêmica. Muitos espectadores, inclusive crianças, assistiram à estreia sem saber que o filme era tão perturbador.
George A. Romero nunca imaginou que estava criando um novo gênero — o zumbi moderno como o conhecemos nasceu ali, em 1968.
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