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Within Our Gates (1920): A outra história da América e o olhar de Oscar Micheaux


Dirigido por Oscar Micheaux. O filme retrata a situação racial contemporânea nos Estados Unidos durante o início do século XX, os anos de Jim Crow, o renascimento da Ku Klux Klan, a Grande Migração de negros para cidades do Norte e Centro-Oeste. O enredo apresenta uma mulher afro-americana que viaja para o Norte em um esforço para arrecadar dinheiro para uma escola rural no Sul Profundo para crianças negras pobres. 


Dirigido por Oscar Micheaux, Within Our Gates é um daqueles filmes que não se compreende apenas com os olhos, mas com a consciência histórica. Produzido em 1920, em plena era das leis Jim Crow e logo após os violentos motins raciais de 1919 nos Estados Unidos. A historiadora do cinema Anna Siomopoulos destaca que o filme funciona como “resposta” a The Birth of a Nation (1915), a obra racista de D. W. Griffith que havia glorificado a Ku Klux Klan e reescrito a história americana a partir de uma ótica supremacista. Micheaux, em contrapartida, oferece aqui o ponto de vista negro, não como vítima passiva, mas como sujeito social ativo, complexo e moralmente consciente.


A protagonista é Sylvia Landry, interpretada por Evelyn Preer, uma mulher negra instruída que trabalha numa escola para crianças carentes do Sul. Desde o início, Micheaux estabelece a educação como metáfora da luta por emancipação. Sylvia é idealista, acredita no poder da instrução e viaja ao Norte para conseguir fundos para a escola. 

Essa mudança de lugar já funciona como travessia simbólica entre dois mundos: o da herança escravista e o da promessa de liberdade. No entanto, o filme não cai na ilusão de um Norte redentor. Curiosamente o Brasil é citado em uma carta que Sylvia recebe de seu pretendente, Conrad.

De maneira geral, o filme mostra que as desigualdades persistem nos "modernos anos 20". A caridade branca é retratada como paternalismo e o racismo se infiltra mesmo nos gestos aparentemente benevolentes.


Há, porém, um momento em que Within Our Gates abandona a delicadeza e se transforma em denúncia brutal. Em um flashback, Micheaux revela o passado de Sylvia: sua família foi injustamente acusada de assassinato e linchada por uma turba branca. A sequência, que inclui também uma tentativa de estupro cometida por um homem branco, é uma das mais impactantes do cinema silencioso americano. Micheaux filma o linchamento sem sensacionalismo, mas com crueza suficiente para expor o terror real do racismo. É, sem dúvida, um gesto de coragem mostrar o que Hollywood silenciava, reverter o olhar e forçar o público a encarar a barbárie que o discurso nacional insistia em apagar.

Em The Cambridge Guide to African American History, os autores apontam que Micheaux “capturou a experiência negra” ao mostrar tanto a violência racial, quanto as divisões internas da comunidade negra (como o preconceito de pele ou o elitismo). Eles observam também que houve acusações de que o cineasta “glorificava a elite negra e ignorava os pobres”, mas que, na prática, suas produções revelavam realidades vividas.


Diferente da tendência de idealizar sua própria comunidade, Micheaux constrói personagens ambíguos. Há pregadores que pregam submissão, figuras oportunistas, personagens que internalizam o preconceito e se tornam instrumentos do sistema. Em contraponto, Sylvia e o Dr. Vivian simbolizam o que o diretor chamava de “o verdadeiro progresso”, aquele que nasce da integridade e da educação, e não da assimilação. Essa complexidade moral, incomum para a época, dá densidade à narrativa e faz de Micheaux não apenas um militante, mas um verdadeiro autor.

O contexto em que Within Our Gates foi concebido é fundamental para compreender sua potência. Os Estados Unidos viviam o turbulento pós-Primeira Guerra Mundial, um período de retorno de soldados negros que haviam lutado pela “democracia” no exterior apenas para reencontrar a segregação em casa. O ano de 1919 ficou conhecido como o “Verão Vermelho”, marcado por uma onda de linchamentos e ataques raciais em dezenas de cidades, ao mesmo tempo em que o Ku Klux Klan ressurgia com força e as leis Jim Crow mantinham a população negra sob rígida separação. 


Hollywood, por sua vez, havia legitimado esse imaginário racista com The Birth of a Nation, exibido até na Casa Branca, o que reforçava a visão do negro ou qualquer pessoa étnica como ameaça. É nesse cenário que Oscar Micheaux (filho de ex-escravos, autodidata e empreendedor) ergue sua câmera para oferecer um contraponto, criando um filme que não apenas representa, mas confronta. Within Our Gates surge, assim, como resposta e resistência: um gesto de afirmação artística e política em um país que ainda discutia se o negro podia ser cidadão pleno.

A estética de Within Our Gates reflete as limitações de sua produção independente — planos fixos, montagem irregular, iluminação precária —, mas isso nunca compromete o poder expressivo do filme, afinal era o padrão da época. Ao contrário, há uma força bruta em sua simplicidade. 


Em um ensaio intitulado From Racial Trauma to Melodrama: Representations of Race in Oscar Micheaux’s Within Our Gates, Emmanuel Roberts investiga como Micheaux usa o melodrama para abordar o trauma racial e discute a forma como o filme articula estéticas populares (como o melodrama) a uma crítica social contundente. Micheaux domina a lógica do melodrama para atingir o público emocionalmente, enquanto subverte seus códigos: onde o cinema branco exibia a mulher negra como estereótipo, ele oferece Sylvia como sujeito de pensamento e dor; onde o herói era o salvador branco, ele coloca uma mulher negra em busca de salvação coletiva.


O impacto histórico da obra é difícil de superestimar. Foi o mais antigo longa-metragem com tal temática preservado. Sua recepção inicial enfrentou censura em diversas cidades americanas. Só décadas depois foi reconhecido como marco da resistência cinematográfica afro-americana. 


Assistir a Within Our Gates hoje é perceber o quanto o cinema pode ser um campo de batalha: cada quadro de Micheaux luta contra uma mentira histórica, cada intertítulo reescreve um pedaço da verdade negada. Em contraponto, Nascimento de uma Nação continua sendo colocado em listas e reverenciado por autores e academicos, apenas pelos seus feitos técnicos, como a montagem. Como se ao mesmo tempo os cineastas soviéticos já não estivessem apresentando propostas parecidas para a montagem. Aqui age a politicagem também: a mentalidade anticomunista prefere aceitar obras racistas do que reconhecer o mérito do cinema socialista.


Confesso que o teor narrativo, me impede de ver os méritos técnicos do cinema de Griffith. Tanto que a ideia de que uma cena que vem após a outra trás valor para anterior é mais popularmente conhecida como "efeito kuleshov", e não por efeito Griffith: racistas não pode ser gênios. E se Griffith teve algum destaque na época, foi por causa da estrutura racista que o disseminou, aproveitando o amargor e desilusão do pós primeira guerra.Por outro lado, Within Our Gates é um filme completamente esquecido.

 

Entretanto, mais de um século depois, o filme ainda pulsa. Ele fala sobre o preço da dignidade, sobre a violência que molda a identidade de um povo e sobre a esperança como ato político. É menos um produto de entretenimento e mais um manifesto em película, profundamente humano. Within Our Gates é, antes de tudo, a voz de quem ousou existir dentro dos portões de uma nação que tentava mantê-los fechados.


Curiosidades e bastidores do filme


O filme foi considerado perdido até 1993, quando uma cópia foi encontrada na Espanha, com o nome de "A Negra". Desde então, uma série de trabalhos foram feitos para restaurar e digitalizar o filme.


Within Our Gates foi produzido numa época em que os primeiros estúdios da nascente indústria cinematográfica americana ainda se concentravam em Fort Lee, Nova Jersey, no início do século XX. O contexto não poderia ser mais tenso. Em 1919, o chamado Motim Racial de Chicago deixou dezenas de negros mortos e milhares de famílias desabrigadas após bairros inteiros serem incendiados por multidões brancas. Esse clima de ódio e medo atravessa o filme. Alguns estudiosos acreditam que o próprio título Within Our Gates (“Dentro dos nossos portões”) faz alusão a essa ameaça latente: um aviso de que a violência racial não estava confinada ao Sul, mas se aproximava perigosamente das “portas” do Norte urbano.

Foi apenas o segundo de mais de quarenta filmes que Micheaux dirigiria ao longo da carreira, todos marcados pelo improviso e pela resistência. Com orçamento mínimo, ele recorreu a figurinos e adereços emprestados, e filmou sem possibilidade de refazer cenas. Mesmo assim, seu trabalho foi barrado pela censura de Chicago em dezembro de 1919. A exibição só foi aprovada dois meses depois, após intenso debate público. Jornais da comunidade negra defenderam o filme, argumentando que, diante das injustiças e linchamentos do período, era necessário mostrar a verdade nas telas.


Havia, contudo, um medo generalizado entre as autoridades: acreditava-se que as cenas de linchamento e tentativa de estupro poderiam reacender tensões raciais em cidades ainda traumatizadas pelos tumultos de 1919. Em várias regiões, como Omaha e Nova Orleans, Within Our Gates foi proibido ou exibido apenas após cortes impostos pelos censores.

Mesmo assim, quando finalmente estreou em janeiro de 1920, o filme foi um sucesso de público em Chicago. As versões variavam de acordo com os cortes locais, e há registros de exibições posteriores que restauraram cenas originalmente suprimidas. Fotografias e relatos da época indicam que parte do material original se perdeu ou foi alterada, o que explica as diferenças entre a cópia sobrevivente e as descrições de quem o viu em sua estreia.


Hoje, Within Our Gates é reconhecido como uma das mais importantes representações da experiência afro-americana no imediato pós-Primeira Guerra Mundial: um período em que o racismo violento moldava a vida cotidiana em todo o país. Em 1992, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos incluiu o filme em seu Registro Nacional de Filmes, reconhecendo sua relevância cultural, histórica e estética. O gesto não apenas consagrou a obra de Micheaux, mas também restaurou à memória do cinema uma das vozes mais corajosas e silenciadas de sua história.


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