The Harder They Come é um filme de 1972 estrelado por Jimmy Cliff. Ele é um jamaicano do interior que se muda para Kingston para se tornar uma estrela do reggae. Após ser explorado por um produtor musical, ele se volta para o crime, tornando-se um herói popular e um fora da lei, sendo caçado pela polícia. O filme é uma mistura de drama policial e musical, e é considerado um marco cultural por levar a música reggae a um público global.
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Gostaria de destacar que assisti esse filme há alguns anos atrás, porém não consegui reassistir dessa vez. O filme além de não estar disponível oficialmente em nenhum streaming, ele também não está no YouTube (só em inglês, sem legendas) e nem em streamings "alternativos". Entendo por ser um filme B, da Jamaica que é um país não muito conhecido por fazer filmes e é um filme de baixo orçamento, violento e para alguns não muito bem executado. Só que para mim justamente aqui que está o ouro: quando o cinema consegue se misturar tanto com a realidade, que é impossível de remover o contexto histórico do quadro.
Contemporâneo a era da Nova Onda do Cinema, The Harder They Come talvez seja o filme da Jamaica mais importante e influente de todos os tempos. Parecido com Perigo Extremo (1987), esse é aquele tipo de filme B que produções que se tornaram A adoram cultuar, se tornando referência oculta da influência de suas obras. Boys in the Hood, Menace Il Society e até o remake de Scarface com Al Pacino? É tudo influenciado pela formula de The Harder They Come. Franquias de games conhecidos como GTA? Também.
Isso pela estrutura de como funciona o filme, onde temos uma espécie de narrativa do herói corrompida, onde o protagonista começa perdendo tudo e tenta se reerguer, mas a sociedade é tão frenética e louca que é quase impossível se manter no caminho.
Tudo começa com Ivanhoe "Ivan" Martin, que é o Jimmy Cliff, um jovem pobre que vive na zona rural da Jamaica. Após a morte de sua avó, ele deixa o campo e vai para a cidade de Kingston. Quando chega, é imediatamente enganado por um vendedor ambulante, que rouba todos os seus pertences. Embora sua mãe lhe diga que a vida na cidade é difícil, ela sugere que ele procure trabalho com um pregador cristão local.
Ivan então conhece José, que o leva para assistir a Django (de 1966 e já analisado aqui no blog). Empolgado com a vida urbana, Ivan tenta desesperadamente conseguir um emprego, mas é rejeitado repetidamente. Finalmente, ele recorre ao pastor que sua mãe lhe indicou, o qual lhe oferece apenas trabalhos braçais sob o olhar atento de Longa, um membro mais velho da igreja.
Em contraste com sua insatisfação com os trabalhos na igreja, Ivan se interessa romanticamente por Elsa, uma jovem apadrinhada pelo pastor. Mas muitos membros da igreja acreditam que o pastor a esteja criando para ser sua própria parceira romântica, aumentando o conflito entre ele e o pastor. E sim, esse pastor é meio negacionista, um "falso profeta".
Ivan então constrói uma bicicleta a partir de um quadro abandonado que encontra. Um dia, ele deve entregar a gravação uma pregador a Hilton, um produtor musical renomado, e pede a Hilton uma chance de fazer um teste. Naquela noite, ele pega emprestada a chave da igreja de Elsa para poder ensaiar sua música secular para o teste na capela. O pregador descobre o ensaio e, enfurecido, demite Ivan e repreende Elsa, acusando-a de fornicação.
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No dia seguinte, Ivan retorna ao complexo da igreja para buscar a bicicleta que construiu, mas Longa a reivindica como sua. Ivan inicia uma briga e acaba ferindo Longa brutalmente com uma faca. A polícia vem e prende Ivan. Ele é condenado a uma violenta sessão de chicotadas e, quando ele é libertado, ele e Elsa passam a morar juntos.
Ivan grava sua música, "The Harder They Come", no estúdio de gravação. Mas, devido a influencia de Hilton sobre a indústria musical local por meio de subornos, a única opção de Ivan é assinar o contrato exploratório de 20 dólares que Hilton oferece. No entanto, sem o conhecimento de Ivan, Hilton decide tocar a música apenas o suficiente para recuperar seu investimento, e não o bastante para que Ivan se torne uma estrela da música.
Aqui fica bem claro uma crítica do filme ao mercado gospel, representado como egoísta e interesseiro, onde a música é só uma forma de ganhar dinheiro. Cultura? Só se for para lucrar com a ignorância das pessoas, se não é do diabo.
Enquanto isso, Elsa tem tido dificuldades para encontrar trabalho e, preocupada com dinheiro, fica em casa em vez de sair para comemorar o lançamento da música de Ivan. Na boate, Ivan encontra José, que lhe oferece um emprego como traficante. Ivan reclama do salário baixo, preocupado em ser explorado. Sem saber que os traficantes são protegidos da prisão pelo acordo de José com o Detetive Jones, um policial corrupto, Ivan compra duas armas para se proteger.
Ivan descobre que uma entrega que fez foi avaliada em 100.000 dólares e continua reclamando do seu baixo pagamento. Vejam como a coisa aqui tem uma pegada "Céu e Inferno", onde ambos, o trabalho com o pastor e trafico, são extremamente parecidos.
Em resposta, José e o detetive Jones armam para que um policial prenda Ivan, mas, lembrando-se da surra que levou anteriormente dos policiais, Ivan atira e mata o policial.
Ivan tem um encontro amoroso com a namorada de José, durante o qual é emboscado pela polícia. Aqui já há vários sinais de que Ivan está se perdendo, uma vez que além de estar no crime, também está traindo Elsa. Ele escapa da captura matando três policiais.
Ao retornar para casa, conta a Elsa que, por meio desses crimes, finalmente está conquistando a fama que sempre desejou. Uma vez que todas as portas ficam fechadas, a fama através do crime se torna um prêmio, como um show de reputação. Já vimos isso em diversos filmes, como Bandido da Luz Vermelha. Em seguida, vinga-se matando a namorada de José e fazendo uma tentativa frustrada de assassinato contra o próprio José.
Aproveitando-se da notoriedade de Ivan, Hilton transforma a música dele em um sucesso radiofônico. Ivan tenta fazer o mesmo, tirando fotos como um fora da lei armado e enviando-as para a imprensa. E aqui há uma grande ironia, já que seu esforço, sua dedicação no trabalho, seu talento, são significaram de nada. Quando ele se tornou famoso pelos motivos errados, aí sim seu trabalho foi reconhecido. É como o rapper que para se tornar famoso tem que cometer algum crime para ter seu som reconhecido. É como se o filme criticasse a sociedade em sua forma de espetáculo, já que tudo parece formar um show: o show do social, onde as pessoas devem cumprir papéis.
À medida que o status de Ivan aumenta, a polícia se empenha ainda mais para capturá-lo e matá-lo. O detetive Jones, encarregado de capturar Ivan, encerra temporariamente seu esquema de proteção para privar a comunidade do dinheiro do tráfico, pressionando assim os outros traficantes a denunciá-lo. Ele força a imprensa a não publicar fotos de Ivan e proíbe a música de Ivan de tocar no rádio.
Durante outro tiroteio, Ivan é ferido no ombro e escapa por pouco. Seu amigo mais próximo, Pedro, um traficante de drogas, o ajuda a se esconder e sugere que ele fuja para Cuba. Mas a comunidade fica cada vez mais desesperada sem o dinheiro do tráfico. Elsa, percebendo que não tem outra maneira de sobreviver, conta à polícia sobre os planos de fuga de Ivan.
Ivan nada até o navio que o leva a Cuba, mas, sem forças para subir a bordo, desmaia. Ao acordar na praia, é emboscado por uma equipe da polícia. A aproximação dos policiais é intercalada com sons e imagens de uma plateia de cinema ovacionando Ivan como se ele fosse um herói. Ele sai de seu esconderijo, empunhando suas duas armas, e é morto a tiros. O filme termina com uma mulher dançando ao som da música de Ivan.
The Harder They Come, dirigido por Perry Henzell e estrelado por Jimmy Cliff, não é apenas um filme; é um documento cultural que cristaliza um momento histórico da Jamaica e inaugura, para o mundo, o cinema e a música do país. Lançado em 1972, a obra mistura ficção, crítica social e musicalidade reggae para construir um retrato profundamente realista — e ao mesmo tempo mítico — de um jovem que tenta ascender num sistema que o oprime por todos os lados.
O filme surge no início da independência da Jamaica (1962), quando o país buscava definir sua identidade sociopolítica. A desigualdade, a urbanização acelerada, a marginalização das classes pobres e o nascimento da cultura reggae compõem o pano de fundo.
Diferente das produções hollywoodianas, The Harder They Come foi filmado com equipes locais, em locações reais, com atores jamaicanos e forte uso do patois. Isso confere à obra uma autenticidade rara, que conecta o espectador com a realidade social da época — violência, pobreza, corrupção e a cultura popular emergente.
Stuart Hall Hall considera o filme um marco da representação da identidade jamaicana no cinema. Em ensaios sobre cultura caribenha, ele afirma que The Harder They Come rompe com visões externas e cria uma auto representação autêntica, onde o jamaicano não aparece como exotismo, mas como sujeito político. Para Hall, o filme ajudou a moldar a percepção mundial do reggae e da cultura negra caribenha.
A pesquisadora Sabrina Ceccato, em seu ensaio Cinema in Jamaica – The Legacy of The Harder They Come, publicado na revista Imaginations: Journal of Cross-Cultural Image Studies, observa que o filme de Perry Henzell marcou uma ruptura decisiva com as representações exotizadas que dominavam o olhar estrangeiro sobre o país. Para ela, a obra inaugura um cinema jamaicano consciente de sua própria voz, capaz de falar de si mesmo sem recorrer a filtros turísticos ou a idealizações. Ceccato destaca o uso de locações reais, atores não profissionais, linguagem popular e a centralidade do patois como escolhas estéticas e políticas que reforçam essa busca por autenticidade; trata-se de um filme que se dirige ao mundo, mas que, antes de tudo, pertence à Jamaica e a seus habitantes.
Se Ceccato enfatiza o caráter inaugural e autêntico do filme, há estudiosos que tensionam essa leitura ao ressaltar sua ambivalência. O crítico U. Casimir, no artigo The Harder They Come: A Cultural Text, publicado na revista Jump Cut, propõe uma abordagem contrapontual ao sugerir que, apesar da intenção de denunciar desigualdades sociais e evidenciar a vida cotidiana jamaicana, o filme também se vale de uma estética da pobreza que pode, inadvertidamente, reforçar o olhar estrangeiro sobre a miséria e o crime. Casimir argumenta que, ao transformar o subúrbio e a marginalidade em espetáculo cinematográfico, o filme corre o risco de converter a experiência urbana jamaicana em “mercadoria cultural”, especialmente quando visto por públicos ocidentais. Assim, embora seja um produto de afirmação cultural, The Harder They Come também carrega traços do próprio sistema colonial que busca criticar.
Essa tensão entre autenticidade e espetáculo não passou despercebida pelos críticos internacionais. Roger Ebert, um dos mais influentes críticos norte-americanos, elogiou a energia crua e a vitalidade da primeira metade do filme, reconhecendo a força de Jimmy Cliff como presença cinematográfica e a capacidade da obra de capturar o pulsar social da Jamaica. Contudo, Ebert nota que, à medida que a narrativa avança, o filme adota convenções mais tradicionais do gênero criminal, aproximando seu protagonista de outros anti-heróis da cultura pop da época. Para ele, essa virada narrativa enfraquece parte do comentário social, embora não comprometa o impacto cultural da obra como um todo.
Por outro lado, estudiosos da cultura jamaicana e da estética reggae costumam ver justamente na fusão entre música, narrativa e iconografia a principal força do filme. Na coletânea Global Reggae, organizada pela crítica Carolyn Cooper, o filme é frequentemente descrito como um híbrido singular, um “texto reggae” em que canção, performance e imagem constroem um mesmo discurso de resistência e afirmação identitária. A trilha sonora deixa de ser mero acompanhamento e se torna eixo interpretativo: ela narra, comenta e organiza a experiência do espectador, transformando a trajetória de Ivan em uma espécie de balada épica da vida nos guetos urbanos.
É essa combinação de autenticidade local, crítica social e magnetismo musical que garante a longevidade de The Harder They Come. Longe de ser apenas um marco do cinema jamaicano, o filme permanece como um documento cultural complexo, que raciocina sobre a independência, a desigualdade e a formação de um imaginário nacional. A estética e linguagem do filme também são incríveis. Filmagem em locações reais confere realismo. Montagem simples, quase improvisada: reflete limitações orçamentárias, mas também reforça autenticidade. O uso da música pontua emoções e temas políticos, em Ccores quentes e ambientes caóticos, mostram a vitalidade e tensão da vida urbana jamaicana.
Apesar de tecnicamente limitado, o filme transforma suas “deficiências” em estilo. A sensação de improviso está alinhada com o próprio espírito rebelde de Ivan. Sua força está precisamente nas contradições que abriga: é realista, mas também mítico; é crítico, mas às vezes seduzido pela imagem da marginalidade; é profundamente jamaicano, mas dialoga com o mundo inteiro. Talvez por isso continue tão estudado, discutido e reinterpretado — porque carrega, em sua forma e em sua história, as tensões vivas de um país e de uma cultura em plena busca de si mesma.
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Curiosidades e bastidores
Antes das filmagens, o projeto tinha o título provisório de Rhygin. Esse título foi alterado para Hard Road to Travel antes de finalmente ser mudado para The Harder They Come, o que levou Cliff a escrever a música de mesmo nome.
A história segue de forma muito livre a vida do verdadeiro Martin/Rhyging, atualizada para a década de 1970, embora o Rhyging histórico não fosse músico. Vincent " Ivanhoe " Martin (1924–9 de setembro de 1948), conhecido como " Rhyging ", foi um criminoso jamaicano que se tornou um fora da lei lendário e herói popular , muitas vezes considerado o " rude boy original ". Ele ficou notório em 1948 após escapar da prisão, fugir e cometer uma série de roubos, assassinatos e tentativas de assassinato antes de ser morto a tiros pela polícia.
A experiência anterior de Cliff como ator vinha de produções escolares. Outros papéis importantes no filme foram interpretados por Janet Bartley (Elsa), Basil Keane (Pregador), Ras Daniel Hartman (Pedro), Bob Charlton (Hilton). O lendário músico de ska Prince Buster (DJ na Dance) faz uma participação especial no filme, dizendo ao público para "ficar quieto e ouvir com atenção!". Outras personalidades da indústria musical jamaicana, como Duke Reid, que aparece como um comissário de polícia, o jamaicano-chinês Carlton Lee, interpretando a si mesmo como um engenheiro de som, e o produtor Joe Gibbs, fazem breves aparições na tela.









Nossa, não conhecia esse filme. Valeu por recomendar
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