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O Xangô de Baker Street (1999-2001): A maior incursão de Jô Soares no cinema traz detetive inglês Sherlock Holmes ao Rio de Janeiro do século XIX



Rio de Janeiro, 1886, três da manhã, uma jovem bêbada é vista na esquina da rua do Regente com a rua do Hospício mostrando os seios antes de ser morta friamente com um corte certeiro na garganta. Enquanto isso, a famosa atriz francesa, Sarah Bernhardt, (Maria de Medeiros) se apresenta, simbolizando a presença da cultura francesa no Rio de Janeiro, e até mesmo o imperador vem cumprimentá-la. Ela conta que o violino raro Stradivarius da Baronesa Maria Luíza (Cláudia Abreu) havia desaparecido e que o Imperador Dom Pedro II (Cláudio Marzo) teria chamado Sherlock Holmes para investigar o sumiço do presente dado pelo imperador a jovem baronesa. No Rio, Sherlock encontra a pomba-gira em Watson (Anthony O'Donnell), inventa a caipirinha e descobre o melhor do "forrobodô" brasileiro




Foi dirigido por Miguel Faria Jr. baseado no romance homônimo do escritor, apresentador e comediante Jô Soares (conhecido como "o Letterman" brasileiro). 

A jovem baronesa Maria Luísa (Cláudia Abreu) fora educada na Inglaterra, era filha de açougueiro e se casou um o rico Barão de Avaré que havia morrido em um acidente de caça. 


Ela era conhecida pelo assassino como "a puta das putas" e de maneira implícita ela é colocada como uma das amantes do imperador. Era também o objetivo final do moralista assassino, mas que era frequentador das boas rodas intelectuais cariocas, que fazia parte das melhores rodas intelectuais da época, segundo a brincadeira. 



A atriz Sarah Bernhardt, sugere ao imperador chamar o famoso detetive inglês Sherlock Holmes (Joaquim de Almeida) para investigar o desaparecimento do instrumento valioso. 


Ao mesmo tempo um assassinato brutal de uma prostituta choca a cidade e o superintendente de polícia Mello Pimenta (Marco Nanini) resolve pedir ajuda para o detetive inglês, era elementar. Uma das moças assassinadas tinha pedido o autógrafo de Sara era sobrinha de um dos amigos do imperador interpretada pela atriz Maria Ribeiro.




Sherlock e Watson vem ajudar o Capitão Pimenta. Apesar de sua inteligência dedutiva e raciocínio lógico, o detetive inglês não pôde com o assassino brasileiro e não notou a mudança da escala das notas musicais latinas (no Brasil C,G,D,A,B,E,F viram Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si) que eram colocadas na região íntima das 4 vítimas. 


Em outras palavras, um brasileiro pode até saber como as notas são no sistema anglo-saxão, mas um anglo-saxão nunca saberia as notas em latim, a não ser que muito tenha estudado música.


Vai uma feijoada?


O detetive não notou que Miguel havia deixado todas as pistas para pegá-lo. 


No caminho eles conhecem um pouco do universo cultural brasileiro, experimentam a comida típica brasileira (a melhor comida do mundo), tem feijoada, vatapá e outros e isso afeta o estômago frágil do detetive inglês, vão ao teatro e fazem um duelo de violinos entre Sherlock e o Marques de Sales. Sherlock explica para Watson que ele aprendeu português e por isso ele consegue se comunicar com todo mundo, já Marques de Sales também fala inglês e serve como um tradutor na viagem.  



Crítica do Filme e do Livro 


Vários elementos historiográficos são mencionados ao longo da narrativa, tanto no livro quanto no filme. O livro é de 1995, e marca uma tentativa do Jô, então apresentando programa no SBT, de utilizar da imaginação sociológica para abordar as particularidades históricas do Rio de Janeiro, que era a capital do Império do Brasil. 


O Brasil era a única monarquia dos trópicos que ainda se mantinha e se mantinha com distância em relação aos "rebeldes do Nordeste" com a Confederação do Equador e a Revolução Pernambucana. Jô agradece no início do livro a Rubem Fonseca (o rei dos libelos policiais), a Fernando Morais, que escreveu livros clássicos como Olga, Chatô e o novo livro do Lula; como também a Lilia Schwarcz e Angela Marques da Costa pela consulta científica historiográfica do livro. 


Jô também aparece em uma das cenas do filme como um desembargador, que diz que a polícia do Rio de Janeiro não precisa de detetive inglês, e que chama o violino raro de rabeca, demonstrando sua ignorância através da ideia de pragmatismo. 




Lilia Schwarcz faz um estilo de historiografia que foca em análise dos marcos institucionais, arquitetônicos e culturais que percorriam a história do brasil. Vários elementos como Olavo Billac (Marcelo Escorel), Chiquinha Gonzaga (Mallu Galli), Paulo Nei (um poema de declamação oral que nunca escreveu mesmo nada), D. Pedro II, a atriz francesa famosa Sara Bernhardt que realmente esteve no Brasil 4 vezes, no livro ela apresentou o espetáculo Frou-Frou, uma peça de Meilhac e Halévy.  Chiquinha Gonzaga era uma grande musicista que compôs inúmeros músicas, ela pegava o dinheiro das partituras para ajudar no movimento abolicionista. 


Um dos personagens mais interessantes é Makumbe (Antônio Pompeo), que por ser próximo da baronesa acabou sendo um escravo artistas, como descrito por Gilberto Freyre ao falar  da falta de talento dos brancos da terra, e da questão do talento dos escravos que eram usados pelos senhores que se diziam com isso "patrono das artes" e patrocinadores das festas nas senzalas. A baronesa era uma dessas patronas.  



Outro elemento é quando Albertina (Cristiane Fernades), filha de um agente funeral, é morta pelo assassino, apesar de ser uma "mulher de honra". Mostrando que mais do que ódio as putas, mulheres da vida, o assassino tinha mesmo ódio de mulher irrestritamente, era um "feminicida", e queria mostrar sua força em relação a elas. 


Albertina trabalhava na Santa Casa e é mostrada no filme na cena onde mostram uma roda de enjeitados (a roda dos "expostos", crianças abandonas), quando uma mãe abandona seu filho e as freiras da Santa Casa vem acolher a criança. 


Isso é outro elemento ultra histórico, já que as Rodas de Enjeitados vieram da Europa desde a Idade Média e funcionavam completamente com a lógica de abandono parental dos homens em um país colonial como o Brasil. O índice de abandono de bebês na Bahia do século XVIII, chegou ao índice de 80% dos nascimentos da época, isso segundo o livro de Maria Luiza Marcílio, "História Social da Criança Abandonada", que retrata como as instituições substituíram e foram aparelhadas para lidar com essa questão, como uma forma de mecanismo que previne de um mal social maior (o abandono). Hoje em dia, as rodas para depositar bebês voltaram em países como a Alemanha, sendo chamadas de babyklapps 




Em Portugal, foi um dos mecanismos "modernos" da era pombalina para lidar com o problema crônico do abandono de bebês. Na cena a mãe abandona seu filho e ele é recebido pelas irmãs da Santa Casa. Na cena seguinte, a bondosa Albertina filha do agente funerário, que dedicava sua vida aos órfãos é morta friamente pelo assassino, na parte do filme que para mim o assassino mais ganha uma conotação moral. 


O período retratado é de intensa mudança nos costumes e nas tradições no Brasil, com o começo da assimilação de ligação e comércio com o estrangeiro. Estamos falando do período do Segundo Reinado e o governo do monarca "liberal" Dom Pedro II e a utilização do Theatro Municipal do Rio de Janeiro antes de sua inauguração final na prefeitura de Souza Aguiar. 



No meio do bar, Múcio Prado do Jornal do Comércio, buscava o que escrever e achou no meio da informação da mesa a questão do roubo do violino, que não era nenhuma rabeca, diga-se de passagem, era um Stradivarius, um instrumento extremamente raro, dado para a baronesa (Cláudia Abreu). 


O interessante aqui é apontar a cultura carioca de resolução de conflitos e de "central de informação" no bar. É onde os artistas e os policiais conversam sobre os "males da cidade" e onde o jornalista, ao mesmo tempo, acha sua matéria da semana.





O violino Stradivarius foram todos fabricados manualmente pelo italiano Antonio Stradivari nos séculos XVII e XVIII, que produziu cerca de mil unidades do instrumento, desenvolvendo peças de tipos "Viotti," "Alard" e "Messias". A qualidade do som do instrumento vem do tratamento de agentes químicos, orquestrados manualmente, para conter insetos e pragas que poderiam desafinar o instrumento.

A tese historiográfica de Lilia Schwarcz que orientou o livro é muito boa. Para imaginar esse carácter ímpar da construção política institucional que o Rio de Janeiro se formou enquanto capital cosmopolita da época, a visão histórica se encaixa como uma luva na consultoria do filme. Abordando as formas de apropriação cultural e a tentativa de formas de "civilizar" a capital, foram implementadas em nome de narrar o pretenso atraso brasileiro. Por volta de 1860, houve a chegada da chamada "missão francesa" de artistas, intelectuais, como Debret que vieram para o Brasil a convite do imperador.



Inspirado nesse clima, Jô escreve usando como inspiração fatos históricos diversos. Por exemplo, ele fala que é nessa data que há o começo da cidade do Rio de Janeiro, como moderna e o romance é uma ode a esse começo cosmopolita do Rio. O Rio de Janeiro também já era intensamente ligado as artes e as músicas. O ritmo da época era o choro, como a música cantada por Ana em seu número no teatro. 


O Brasil vivia um intenso clima de renovação, a perspectiva da república trazia os debates em torno do fim da escravidão e o Partido Republicano ganhava adeptos, como é comentado no livro, era a alta roda da intelectualidade carioca. 


Nessa época, começa o contrato com a companhia City Improvements e o Rio de Janeiro se torna uma das primeiras capitais do mundo a possuir sistema domiciliar de esgotos, com a empresa francesa Gary (e por isso o nome "gari"), o Rio de Janeiro passou a ter também coleta de lixo, junto com a instalação da companhia de gás que passou a contar com um sistema de iluminação pública antes mesmo da energia elétrica, e isso gerou um crescente interesse estrangeiro que esse sistema cosmopolita gerou é que temos a metrópole moderna do Rio de Janeiro.


O filme se situa em 1886, dois anos antes do fim da escravidão, e 4 anos antes da proclamação da república e do fim da monarquia tropical brasileira. Ele é repleto de referências culturais específicas a cultura brasileira, que aparecem de maneira implícita e subjetiva: apenas estão lá presentes no filme, e você precisa ficar atento para perceber. 


As típicas ruas de paralelepípedo que marcam a arquitetura do Rio de Janeiro e da Paris clássica 

A arquitetura nessa época era da corrente neoclássica e de influência predominantemente francesa. Antes mesmo do Rio de Janeiro nas mãos de Francisco Pereira Passos, o Rio de Janeiro já tinha essa ligação com a França devido também a missão francesa na época monárquica, por isso alguns o chamavam de "o Haussman tropical". Assim como a reforma inaugural do Theatro Municipal que reuniu dois teatros anteriores gerou um prédio inspirado na Ópera de Charles Garnier em Paris, concurso que foi vencido pelo filho do prefeito. 



O Rio de Janeiro do século XIX, era considerado um local úmido, sujo, sem saneamento, e os problemas cresciam junto com a cidade, que contava com 800.000 habitantes nessa época. A varíola, a tuberculose e a febre amarela castigavam a capital, era uma "cidade febril" em certo sentido, mas vibrante e muito rica na sua maneira tropical de ser. As representações das práticas, pessoas e costumes são super corretas sociologicamente.


No século XX, o Rio de Janeiro quis se livrar de sua imagem de subdesenvolvimento, em 1903 com o prefeito da época Francisco Pereira Passos, foram criados grandes parques, ruas e avenidas e também foi construído um novo porto. O Rio de Janeiro passou por uma intensa reforma urbana. 




O subúrbio fervia. Isso era antes da transferência da elite para a zona sul, ou seja o centro do Rio de Janeiro era o centro de todos os encontros antes. O povo escutava os ritmos da elite e copiava os ritmos da polka e da valsa, o batuque e o olodum (ritmos de origem africana) eram ritmos populares que eram misturados nas formas de compor os primeiros choros e sambas e principalmente do maxixe (o tango brasileiro). 


O carnaval foi a mistura musical entre os dois tipos de salão, o popular e o da elite. O que veio da elite foi a estética, o baile de máscara ao estilo mardi gras, ou o nosso carnaval, não o "carnival" no sentido de circo e parque recreativo itinerante como é o sentido dessa palavra nos Estados Unidos, por exemplo. 



O choro veio do povo é parte da musicalidade efervescente e original que criou o samba como ele é. O choro era como era chamado o baile dos escravos na fazenda, essa é uma das teorias. O interessante da reflexão sobre ritmos é entender que isso é referência para Jô que é ele próprio músico e estudioso de música, então as referências são bem fundamentadas em termos de costumes e cultura também por isso. 


Aos poucos as condições de higiene viraram a principal bandeira que elitizou o centro do Rio e expulsou ou "escondeu" o subdesenvolvimento anterior dos cortiços e dos excrementos removidos pelos escravos tigres (como falado no livro). Era um Rio de Janeiro desumano, mas segundo o que Jô quer ressaltar, já incrivelmente culturalista e internacionalista. Na cena onde Watson "inventa" a caipirinha o resultado do "revisionismo histórico" é impressionante. 


Jô consegue mostrar a "mania francesa" por parte da elite, até mesmo do assassino, que era no livro comentado como um filho não reconhecido do Marques de Paraná. Marques de Paraná recebeu seu título de nobreza sem nunca ter pisado no Estado e era na verdade um mineiro e não paraense, ele foi um importante nome político brasileiro, um dos que vieram "investigar" (leia-se reprimir) a Revolta Praieira (1848-1850). 




Marques de Paraná (o pai do serial killer de Jô) foi um dos mais poderosos políticos brasileiros e tinha fortuna e negócios ligados ao setor escravocrata ligadas ao Partido Regressista, futuro Partido Conservador, segundo a Gazeta do Povo, era um homem incestuoso, a favor da pena de morte e das fortunas escravocratas, porém um bacharel formado em Direito e com mestrado. 


Talvez essa referência do assassino ser um filho bastardo desse político é uma referência política óbvia dentro do livro. Já o assassino do livro era o filho desse Marques de Paraná, o que em si é impressionante como referência literária com fundos histórico.


Uma vertente que não é exatamente clássica, mas ajuda a entender que um dos problemas de restringir a história fluminense a apenas fontes documentais, obriga a história ficar sempre refém dos antigos filhos de donos de escravos e sua adorada historiografia alemã (de louvor nacional). A parte "forense" do livro e policial é extremamente interessante. Todos os toques parecidos com CSI já estavam lá, o médico legista Saraiva que não tem muita higiene e que tem um perturbado senso de humor por lidar com morte todo dia, também possui uma forte referência ao clássico de Arthur Conan Doyle (um médico  e escritor escocês) que inventou o Sherlock Holmes, o mais famoso detetive do mundo, e que no romance de Jô conheceu o Brasil a pedido do Imperador Dom Pedro II. 


O livro também se vale muito de estórias orais, como a citação no livro ao festival da modernidade onde Dom Pedro II teria conhecido Alexander Grahan Bell e dito sobre a invenção do telefone "Olha, isso fala". Claro que esses eventos não precisam ser reais, mas são possibilidades dentro do contexto histórico da época, muito verossímil por sinal. Mais que isso, são formas de entreter e escrever com a História oficial, que não necessita necessariamente de um aval. 


Produção e história por trás do filme


O Xangô de Baker Street, é um filme luso-brasileiro de comédia e investigação policial. O financiamento foi variado, IBM, Petrobrás, Volkswagen, Telebrás, e o Banco Rural, Tetra Park e Usiminas e também financiamento que veio de editais públicos da Rio Filmes. A trilha sonora do filme é assinada pelo maestro Edu Lobo (o ganhador do festival de 1967), a música "forrobodô" é uma composição de Chico Buarque. 


O filme foi anunciado em 1996, foi filmado em 1998 até 1999, no Porto em Portugal, e foi lançado oficialmente em 2001, no Festival do Rio. Como todo mundo sabe, o livro foi uma adaptação do romance policial clássico de Jô Soares, o romance foca em diversos pontos historiográficos, abordando o revisionismo cultural da História nos últimos anos, e como narrativas orais podem ter influência no sentido de fundação histórica.


Comercial no SBT da época de lançamento do livro




Há uma questão na distribuição, pois o filme foi lançado em Portugal principalmente em 1999 e teve algumas exibições, mas no Brasil ele foi ao cinema em 2001. 


Foi uma produção bem diversa, o ator principal do Sherlock Joaquim de Almeida é bem famoso e é uma ator luso-americano que faz parte da alta burguesia portuguesa, é aquele cara que sempre interpreta o "gringo" no Brasil, ou o político local, como ele fez em Velozes e Furiosos. 


Os meios de transporte, carros de época utilizados principalmente, vieram do Museu de Paquetá e de alguns colecionadores particulares de São Paulo. Uma curiosidade é a preocupação da produção em fazer seguro para os objetos históricos, utilizados em cena. Também dez quadros do Museu Nacional de Belas Artes para ser o salão do imperador. O filme foi considerado um dos filmes de retomada do cinema nacional. Jô trouxe Sherlock Holmes e o  "Jack, o estripador" para o universo tropical brasileiro, o assassino que começou a aterrorizar Londres em 1888 também é marcante por ser esse o ano do fim da escravidão no Brasil, por exemplo. 


Ou seja, enquanto surgia o conceito de "assassino serial" como na literatura de Conan Doyle também surgia a curiosidade pública e midiática em torno desse tipo de novo assassino (que mata pelo mero prazer de matar), e o Jack Estripador envolve todo esse começo da literatura policial denuncista, até o fato do nome dado pelos jornais que publicavam infinitas colunas, anunciando a morte das prostitutas no jornal da época, claro que Jô sabe disso e tenta passar essa sensação como uma parte de um sintoma de época, o começo da perda de destinos em comum, o começo do individualismo das grandes multidões que escondem sempre alguém ou alguma coisa. 



A literatura de Conan Doyle, queria mostrar um detetive que estivesse preparado para o tipo de assassino especializado e desprezível retratado. Em um dos livros clássicos da série, "Um Estudo em Vermelho" publicado em formato de revista em 1887, mas publicado enquanto livro em 1888 (ano dos primeiros assassinatos de Jack Estripador). Já nos livros da literatura original de Sherlock, havia aquela ironia transcendental em relação ao racionalismo científico e a crença nele que começa de maneira ferrenha com a construção das escolas e cátedras nas universidades no século XIX. 


Outro livro muito bom de Arthur Conan Doyle é o "O Signo dos Quatro" também publicado em 1888 nos demonstra toda a metodologia científica de Sherlock e como ela pode ser errada. Sherlock seria um investigar que usava da ciência da dedução (logo estava ao mesmo tempo sempre errado por isso) ser uma variável entre a observação e dedução que se tiraria a aplicação de alguma estudo científico específico. A ironia e falta de traquejo real de Sherlock já é notado quando ele e Watson discutem sobre monografias científicas, como esta "Da Diferença Entre as Cinzas de Vários Tabacos".


A brincadeira irônica de Jô Soares, é dizer que esse extremo racionalismo científico de caras como Sherlock podia acertar na dedução uma vez ou outra, mas normalmente a dedução era errôneo e se tornava adivinhação. Ou, a própria questão de Sherlock ser o ultra racional, mas que adora cocaína, que Watson alerta ser ruim. Esses debates tornaram completamente inovadora a escrita de Conan Doyle, ele próprio já brincava com as desventuras do pensamento dedutivo e da apologia do racionalismo e do evolucionismo inglês. Existe um ditado brasileiro muito conhecido que quando algo é apenas aparência, marketing ou apenas faz de conta, falamos que a coisa é "para inglês ver". 



Quando a família real portuguesa veio para o Brasil, em 1888, com medo da invasão de Napoleão, eles fizeram com a Inglaterra a abertura dos portos "para as nações amigas", significava Inglaterra diretamente. Nos século XIX esse ditado passou a circular por conta do carácter ilusória das leis abolicionistas na realidade do real tráfico de escravos que continuou acontecendo apesar das leis aprovadas na época, como a Lei do Sexagenário (1884), Lei Eusébio de Queiróz e a Lei do Ventre Livre (1871) eram as chamadas "leis para inglês ver" que conviviam com a realidade real das relações raciais da época. 


A Lei do Ventre Livre, assinada também pela Princesa Isabel (a "Abraham Lincoln" brasileira) não era respeitada (obviamente) pelos donos de escravos, que possuíam alto conluio com o sistema de registro e fraudavam os registros dos escravos que já podiam ser livres. Luiz Gama, por exemplo, foi um jornalista e advogado que se aproveitou da falta de análise e verdade nesses registros e que libertou vários escravos com base na discrepância das leis do senado da época com a realidade. A Inglaterra pensando na expansão do liberalismo capitalista apostava em afundar navios para proteger a lei aprovada em 1845 pelo parlamento inglês chamada Bill Aberdeen, que em nome de ser "contra a escravidão" dava permissão para os ingleses tomar os navios negreiros e todas as suas riquezas para si e de impedir o tráfico de escravos também. 


O pai de Lilia Schwarcz, Roberto Schwarcz, refletia sobre a influência deturbada desse "liberalismo inglês" no Brasil, através da análise do texto de Machado de Assis "Ao Vencedor as Batatas", e também da análise da questão das "ideias fora do lugar", que é em si um dos grandes debates políticos e sociológicos sobre o carácter do que seria esse "liberalismo brasileiro", para ele, o liberalismo no Brasil é uma "ideia fora do lugar" no sentido de ser uma concordância com o processo de dominação mundial onde as nações ricas são ricas e as nações pobres são pobres e nenhuma explicação ou mudança é possível de ser feita. Ou seja, retira e separa o idealismo do liberalismo político (a la John Locke), com a realidade do liberalismo econômico (Adam Smith).  


Os brancos (a classe dos proprietários)colocavam apenas os homens em condição de escravidão, negros e pardos para os trabalhos mais pesados e trabalhavam eles com isso conseguiam através do ganho economizado (eram escravos de ganho) no comércio e nos serviço dinheiro para comprar a sua liberdade, os homes forros em sua maioria conseguiam sua liberdade assim, ajeitando um acordo com os donos dos estabelecimentos e assim eram meio livres e meio não ao mesmo tempo por isso.  


Assim, se formou o capitalismo brasileiro, apoiado de todas as maneiras no trabalho do povo étnico, mas sem passar esses ganhos de maneira substancial para eles.  Aqui podemos entender a maldade do pensamento liberal econômico de Adam Smith, se o ofício é de dominação dos pardos e negros e o branco não trabalha e tem vergonha disso explica o motivo da falência do capitalismo brasileiro, por depender exclusivamente de uma força de trabalho externa a eles. Ou seja, a preguiça condenou a classe abastada e muniu eles com talvez o traço de discurso mais conservador da nação, que condiciona negros e pardos no setor de serviços e comércio, e impede que eles fazem parte dos contatos institucionais, dos empregos públicos e dos melhores empregos em geral. Como não existiam universidades do Brasil da época era muito fácil disfarçar o racismo com o discurso do mérito e da aptidão (afinal apenas os brancos tinham acesso ao ensino superior). 



Apesar disso, vale refletir que o Rio de Janeiro era a metrópole cosmopolita mais negra do mundo, e que ao mesmo tempo "era ocidental" em seus costumes e já havia uma intensa massa de população liberta que comprava, vendia e fazia a vida na cidade. Quando Sherlock vai comprar um terno de algodão estaria ele inventando a figura do malandro moderna (o Zé Carioca da Disney?), a forma frouxa de fala e de verificação concede o lugar do entretenimento e da forma simples de explicação como melhor forma historiográfica. Mas muito mais do que ser uma narrativa policial clássica tensa, série, punitiva, o livro de Jô entende investigação como um processo que não precisa levar a prender o assassino, como David Lynch queria igual em Twin Peaks, mas não conseguiu. 




No filme, o assassino não é pego. Ele era um membro do Partido Republicano e participava das rodas da alta sociedade do Rio de Janeiro na época, seu nome, o livreiro Miguel Solera de Lara (Caco Ciocler), "Jack Estripador" brasileiro de Jô, que por não ser pego no Rio de Janeiro, viaja para Londres e vira o importante e enigmático assassino que jamais fora pego pela Scotland Yard. 


O assassino nessa visão seria o dono do centro de encontro da intelectualidade de esquerda do partido republicano (que eram o grupo dos abolicionistas), como José do Patrocínio e outros. Mas tem uma jogada aqui capciosa na questão de colocar o livreiro como assassino. Basicamente é aquela brincadeira de jogo de detetive clássico onde você já conhecia o assassino desde o primeiro frame do filme que ambiente primeiramente com imagens de arquivo o clima da época em torno da intelectualidade carioca.   




O próprio autor Jô Soares participou do filme em uma pequena participação como Coelho Bastos, um desembargador que não saber de Sherlock Holmes. As filmagens foram realizadas em 12 semanas, tiveram locações no Rio de Janeiro e na cidade de Porto, em Portugal. Foram alugadas 870 trajes de época completos e 30 perucas na loja Angel's de Londres e foram levadas para o Rio de Janeiro, onde se concentraram a maior parte das filmagens. Apesar parecer crível, segundo a produção, houve a utilização de 5 fígados humanos par a cena da necropsia onde a descrição macabra é bem sentida, no sentido bem "CSI" mesmo.




Sherlock e Watson embarcam em uma aventura onde inventam a caipirinha, incorporam pomba-gira e trocam a cocaína de Freud pelos cigarros de cannabis de Ana Candelária (a grande atriz de novelas Thalma de Freitas), uma atriz carioca local por quem Sherlock Holmes se apaixona depois de salvar de um ataque do serial killer, ela se defende com uma garrafa de leite dele. 




Ana consegue fugir do assassino, e Sherlock persegue ele com dor de barriga para dentro do Real Gabinete de Leitura Portuguesa (o maior acervo de livros da América Latina que veio com a família real em 1888, com cerca de 350.000 livros. Também teve cena gravada na famosa Cafeteria Colombo.





O filme e o livro tem um título sugestivo em inglês: "A Samba for Sherlock" e brilha ao demonstrar inúmeros costumes típicos do povo brasileiro, além da comida, das artes populares, costumes como da religião de matriz afro do candomblé (única religião realmente de origem brasileira), eles vieram a pedido do pai de santo para contar para eles que tinham uma pista segundo do assassino que eles queriam pegar. Aí baixou em Watson a pomba-gira, entidade feminina ligada a sensualidade e a vulgaridade em geral, por isso a piada com o fato de ser Watson, amigo inseparável de Sherlock que sobrou a intervenção da entidade. 






O mais legal é que Watson nem lembra o que aconteceu e acabou chocando culturalmente o detetive inglês, um dos melhores momentos do filme. Outra referência de religião vem do título em português, Xangô é o orixá da justiça e a verdade absoluta, Sherlock seria segundo o pai de santo pelo seu mapa astral, filho de xangô, por isso dá para um colar do orixá para lhe proteger. Ele fica então batizado segundo a religião mais brasileira que existe. 




Ana também ajudou Sherlock a se soltar, voltado para as ciências racionais, jamais tinha estado com uma mulher e ficou apaixonado por Ana, uma completa personagem carioca, a atriz que ficou famosa por interpretar em sua maioria empregadas em novelas do horário nobre, tem o aporte e talento para fazer até mesmo uma linha meio broadway de canto (ela canta muito bem no filme) e entretanto no cenário nacional você não vê ela em muitas novelas, o que é uma pena, é uma grande atriz. 





O livro de Jô Soares foi publicado em 1995, um ano depois do começo do Plano Real, um plano econômico de "salvamento" da economia que estabelecia sua agenda em cima da paridade com o dólar, ou seja, era uma tentativa de internacionalização do Brasil que passava por tornar o país mais competitivo e de mercado, mas é claro que haveria uma ironia fina nessa forma de "liberalismo tropical", essencialmente pelo liberalismo no Brasil trazer toda a carga de conservadorismo, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo.  


No fim do filme, Sherlock se apaixona por Ana e pede para ela ir com ele para Londres, mas ela diz que prefere ficar no Rio de Janeiro mesmo. Ele embarca junto com o serial killer no navio de volta para Londres e os dois terminam juntos, talvez porque se completem e se mereçam, e nada tenha haver com o Brasil. Fim. 



Comentários

  1. Como um blog com um texto tão rico sobre o filme O Xangai de Baker Street não menciona a cena da caipirinha? Brincadeira, achei excelente!

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