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Pobres Criaturas (2023): Com estética vitoriana futurista, filme critica a educação feminina e o vício em clichês de Hollywood



Dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos e escrito por Tony McNamara, baseado em um livro de 1992, escrito pelo escocês Alasdair Gray. Seguimos a vida de Bella Baxter, uma jovem inglesa da época vitoriana que foi trazida de volta para a vida por um cientista maluco. Acompanhamos sua "evolução" e suas experiências de auto descoberta 


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O filme é demais, diferente de tudo que vemos em Hollywood, muito metafórico e literário também, sendo é claro uma adaptação de um livro de 1992, comentado como  se passando no universo histórico vitoriano, mas possuindo trajes livres e shorts modernos em algumas cenas (ou seja, a estória pode ser também algo que acontece na contemporaneidade, uma espécie de "moda de época"). 


A produção deu um tom surrealista as coisas, invertendo os polos e sentidos pela sua estética. Logo aqui que devia ser belo ou puro, muda seu sentido pelo absurdo da cena. Cachorros com cabeça de pato, galinha com cabeça de porco, charrete motorizada e outras brincadeiras de formato e arquitetura muito bem desenvolvidas esteticamente, que dão todo um charme visual único ao filme. 


Há uma certa pegada steampunk, que bagunça temporal e esteticamente o filme. Tudo enseja um filme histórico inicialmente, mas em certos momentos nada distingue o filme de algo mais contemporâneo, apenas com uma estética vitoriana e histórica que remete ao passado, objetivando dar a dimensão dos personagens. 


Clichê em tipografia, diz respeito a uma matriz gravada em placa metálica e destinada à impressão de imagens e textos. Essa ideia foi usada para estabelecer os ambientes e cenários do filme, buscando estabelecer um "clichê" de filmes clássicos. Por isso o filme as vezes muda o número de quadros ou passa para o preto e branco, mas sem fazer referência exata a nenhum filme, como na cena que acho que deu o Oscar para Emma Stone, onde ela dança no meio do salão.


Em Pobres Criaturas, isso se expande aos personagens, onde a noção de clichê é estendida ao sentido figurado, ou seja sinônimo de tudo o que já foi objeto de repetição excessiva e perdeu a originalidade. 


Então, por exemplo, a ideia da garota inocente e por isso selvagem e sedutora, é um clichê que vemos já em Gabriela de Jorge de Amado. Outro clichê é o Manic Pixie Dream Girl. É utilizado como um recurso narrativo para que o protagonista, geralmente homem, branco, heteressexual e jovem, aprenda. A personagem feminina é engraçada, tem hábitos estranhos, mas adoráveis, quase semelhantes aos de uma criança (como o cérebro de Bella), e dificilmente aparenta ter características complexas. 


Bella de Pobres Criaturas é uma grande ironia a todos esses clichês, onde cada virada do personagem é cercada de, na verdade, falta de sentido, originalidade ou "lição". Na verdade, tudo ganha um tom cada vez mais bizarro, pois seu trama e solução do cientista são bizarrices quase insuperáveis. Não há nenhum tom educativo em seus traumas, onde cada vez mais Bella parece fugir do destino e sentidos que buscam para ela. 



Emma Stone foi tão boa interpretando Bella, que pensamos que realmente ela não está para sempre sendo Bella depois do papel (como visto no Oscar). A atriz mereceu o Oscar, apesar de ninguém esperar, nem ela mesma. 


O filme tem essa estética vitoriana que aos poucos vai para o que eu chamaria de estética machadiana, passando para o idílico do hedonismo das esquerdas socialistas e por fim volta ao ideal vitoriano, só que agora Bella pode estudar também. Não acho absurdo dizer que o filme ou o livro que o inspirou, tiveram influencia de Machado de Assis direta, afinal há um personagem português no filme (Rufallo) e uma temporada de Bella em Portugal.


O filme foi liberado para streaming no dia 09 de março e eu aproveitei muito, já que era dia do meu aniversário. No mundo atual, que se gaba de igualdade mas que entrega sempre mais do mesmo é difícil achar feminismo algo para além de palavras bonitas, principalmente quando a realidade do mundo não entrega oportunidades iguais para mulheres. 


Eu assisti uma reportagem na TV esses dias, que dizia que a publicação de pesquisadoras femininas havia aumentado, mas com um efeito negativo: apenas há publicações de mulheres abaixo de 21 anos. A reportagem disse que a "culpa" seria a maternidade. Mas então como se dá essa relação que impede que mulheres comprometidas continuem a publicar? Ou seja, por que mulheres devem estar sexualmente disponíveis para poder pesquisar e publicar? Na verdade, o dado mostra que as mulheres na faculdade sofrem até mesmo mais machismo do que fora dela, pelo universo da ciência ser um "universo masculino". Bem vindos a plutocracia.


Somente esse argumento não faz sentido. Mas faz sentido pensar que mulheres jovens são usadas de "testa de ferro" por não possuir experiência e para perpetuar o texto escrito por outras pessoas (em esquemas de árvores de pesquisas e textos pré prontos). Ou seja, só pode publicar e ser mulher se você é jovem (como no filme, que Bella somente é extremamente desejável quando é puramente burra), da mesma forma, você só publica quando é "burro" ou jovem demais para entender a extensão do que se pesquisa, para ser bem honesto.


O filme que ganhou Melhor Filme, Oppenheimer visa uma glamorização do universo científico como um universo masculino e greco-romano, que faz você olhar para o mundo acadêmico com olhos de extrema desconfiança. Poor Things também questiona a autoridade da "moda inglesa", que foi usada para Oppenheimer ser considerado um grande filme. Enfim, Poor Things é a necessária revisão de clichês carregados que a indústria de Hollywood passou a usar para "sobreviver". 


O Pobres Criaturas (Poor Things), além de falar do problema do machismo, da idealização da mulher e do casamento e da maturação sexual, também fala do problema do feminismo radical, o ato de se prostituir que vira um pseudo socialismo, por se achar "dona dos seus meios de produção". 


Apesar de ser uma "retardada" por ser infantil e criada como infantil, Bella desenvolve inteligência própria através da própria experiência, a ideia louca do filme é que as experiências sensoriais que são coibidas na socialização, como a masturbação são as coisas que te a "tornariam mais inteligentes". Ou seja, uma completa inversão da lógica tradicional da educação, que nessa visão, quer te "deixar burro" por impedir as suas experiências pessoais. 


Chamaria esse filme do "o anti Barbie" do Oscar, sendo exatamente a proposta oposta da superficialidade de Barbie. Lembrando que Emma Stone fez La La Land em 2016 (um filme que foi considerado hedonista e de bolha na época). E Agora ela ganhou o Oscar e de maneira merecida e diferenciada com um filme que se difere. 


Foi uma atuação e tanto, fiquei surpreendida, já que Emma Stone é bem da nossa geração, crescemos vendo os filmes "bobos" mas até legais dela como A Mentira (2010), e agora teve a oportunidade de fazer esse filme super cult do cineasta grego que já havia feito Dogtooth (2009), um outro filme muito inteligente e ganhou por Poor Things o prêmio Golden Lion no Festival de Veneza.


Uma curiosidade que esse filme tem em comum algumas questões com aquele filme De repente 30 (13 going 30) com Pobres Criaturas (além do ator Mark Rufallo que faz os dois filmes), é que em ambos as mulheres estão com idade mental infantil, 13 anos no primeiro, de um bebê crescendo no Poor Things.


No filme, ela tem um tutor (Willem Dafoe) que é eunuco, e com a chegada do doutor Max McCandles, ela passa a ter o casamento dela marcado sem nem mesmo começar a ser íntima com o seu noivo, e isso leva ela a querer ficar com o advogado, com quem ela foge (até aí, parece bastante o livro para o filme, mas tem diferenças fundamentais), já que no livro, eles viajam pelo mundo para os locais mais exóticos possíveis. Li em uma crítica algo definindo o filme como "o nascimento da mulher moderna", ou algo clichê assim. Mas é muito mais que isso, é sobre a educação moderna e como isso influencia as perspectivas das mulheres e de sua formação em geral.


Essa dimensão das influências desse filme me agradaram muito, a referência a Frankenstein, livro sobre o monstro vivo-morto elétrico criado pelo cientista que levou seu nome,  referência ao livro clássico de Mary Shelley. Também vemos nesse filme uma ligação com o clássico O Médico e o Monstro(1990), a temática da saúde e da ciência, e o início das especialização das áreas, assim como o terror da educação vitoriana, essa temática bem E.M Forster parece estar em alta, lembra muito também uma ideia de constituição de identidade e self como em Jane Eyre. Ambos questionam a moralidade e questões de identidade e gênero e repressão sexual e também tem a pegada desse filme. 


A descoberta de existir um ser humano dentro do que se chama mulher. Aqui no Brasil, a antiga ministra de direitos humanos Damares Alves de Bolsonaro falava que meninos tinham que usar azul e as meninas rosa, então, Barbie conseguiu o que a ministra tanto queria, e de graça. A parte da aventura no navio (que também rola no livro) lembra o filme português de Manoel de Oliveira, Um Filme Falado.


Então, quando um filme como este busca brincar com as tropos femininas tradicionais desejadas pelo mercado editorial e de estereótipos ele brilha por tentar questionar o formato, como a ideia da puta, da santa, a outcast, a popular, a pixie, a pick me girl, todas elas vem de uma forma de objetivação e idealização que pensam na "parceira ideal" ao protagonista homem, ou quando tem um "filme com mulher", são coisas bobas como Kate, ou pior, a tropos feminina de Barbie, a inversão de Poor Things me deixou orgulhosa por quebrar a fórmula das tropos femininas, da capacidade capsular da estrutura dos romances ao estilo de quando um "boy meets a girl" em perfeita harmonia. Mulheres não são perfeitas, e ás vezes até mesmo esse discurso serve para oprimir mais, já que já insere a necessidade de ser perfeita na visão do que é ser mulher na sociedade, como teve é claro quem viu feminismo em Barbie por exemplo.   


Em Barbie, a protagonista começa a preocupar ao pensar na antítese de seu universo perfeito, a morte, em Poor Things, ela tem seu universo chacoalhado depois de descobrir a filosofia, digo isso, pois filosofar é aprender a morrer. Poor Things bebe das contradições dos 'tropos' femininos, fazendo graça da camisa de força de formato em Hollywood com as atrizes, o etarismo com as mulheres, o excesso de papéis deploráveis e de "parceiras ideais" dos caras é infinda as críticas das mulheres. De forma que, um filme com protagonista mulher nunca é bem visto comercialmente, então quando tem um filme sobre a temática feminina soa mesmo como vender uma boneca. 


Bella vai de inocente e burra, para consciente e safada e depois ao ver o abuso e o preconceito, ela se volta para onde veio, para conquistar seu lugar no universo científico em busca de aumentar seu conhecimento já enorme em anatomia. Mas o filme brinca ainda mais ao mostrar o radicalismo absurdo não só da protagonista, como das pessoas em volta dela. Em um reflexão básica, todos evocam a normalização, mas ninguém de perto realmente é normal, para começar com o 'criador' Godwin, ele vive das alterações que ele mesmo cria, como velho cientista, seus hábitos são engenhosos, porém sombrios.

 


No filme, depois de virar prostituta, ela passa a não depender do seu amante, e depois com uma amiga Toinette, com ela descobre o socialismo e vira uma também, e começa a querer estudar. Apesar de podermos questionar a dimensão literal e radical do roteiro do filme, a ideia colou e vimos uma estética e fotografia que podiam ser usados para uma adaptação barroca Principalmente na parte que ela sai por Lisboa e encontra pela rua uma cantora de Fado, e come pastéis de Belém sem parar. 


No livro de 1992, Bella é casada já com um homem que contesta sua história de vida e começa a escrever sobre como a criação de Bella foi o motivo que fez ela procurar outros homens e a fugir com o advogado Duncan Wedderburn (no filme um advogado português interpretado pelo ator Mark Ruffalo).


Em uma utópica e em estado mental Londres, na época vitoriana Bela é uma paciente com um cérebro de bebê e comportamento social reprovável, mas isso não é nada. "Que linda retardada" diz o médico ao ver Bella a primeira vez. Ele vira uma espécie de assistente do cientista velho.



No livro, Bella era casada com um agente de saúde pública Archibald McCandles (no filme, o cara é um médico chamado Max), uma piada o nome do marido ser "velas", aquele que segura vela. O marido no livro, fica focado em provar que a esposa estava errada, justificando as falhas dela reescrevendo sua história, dizendo que ela era apenas um corpo. 


Depois quando Bella foge com o advogado português, eles transam de todas as maneiras possíveis e no começo ele queria somente ter um caso com ela, mas ele foi se apaixonando e Bella, não. O problema é que Bella foi mostrada de repente a realidade da escravidão, e ficou horrorizada doando todo dinheiro ganhou no casino pelo seu namorado. Depois disso, ela vira prostituta na França e ele vai embora. Depois disso, o doutor e o mentor de Bella arrumam uma "nova retardada" para cuidar chamada Felicity (felicidade) que tem menos autonomia e vontade que Bella. Outra reflexão é que a rebeldia de Bella é o que fez desenvolver sua inteligência, ou seja, que inteligência é algo conquistado a revelia, como quando Eva comeu do fruto proibido no paraíso, por exemplo. 



Martha e Harry começam a falar de filosofia com Bella e Duncan passa a achar ela menos atraente por achar ela mais inteligente por ela ler livros agora, Harry fala sobre os horrores da escravidão e faz ela ficar perturbada com seus privilégios e  com a noção de que muitas pessoas viviam com muito pouco ao redor do mundo. Ela então doa o dinheiro ganho por Duncan e eles vão parar em Paris onde ela se prostitui e "encontra o socialismo". Aí quando o tutor de Bella está quase morrendo, ela volta para lá e aproveita para estudar dessa vez, já que ela já tinha se realizado sexualmente. 


No fim, Bella reencontra o pai quando estava prestar a se casar com o médico, e aí ela volta para sua "casa original" e descobre a rotina de abusos que sua mãe sofria e decide sair quando planejavam sua mutilação genital. 


Alfie Blessington (o antigo marido da mãe e pai de Bella, "o abençoado" na tradução do seu nome) acaba atirando em si mesmo. Bella vira cirurgiã com ajuda de Max e Toinette (eles fazem um trisal agora), Godwin (Defoe) morre com os dois ao seu lado e esse personagem, desde o nome que parece ser uma referência a ele ser uma forma de deus (criador) na história, já que ele originalmente "criou" Bella, bem ao estilo Frankenstein. No fim, transplantam uma cabra para a mente de Alfie, o marido abusador, e vivem felizes para sempre em uma família meio incomum e louca, mas feliz. Fim.


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