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Kate (2021): Longa sobre assassina contra Yakuza se inspirou no J-Pop e na cultura japonesa, mas entregou show de apropriação cultural e preconceito



Kate é uma assassina e atiradora especialista que elimina alvos escolhidos por seu mentor e manipulador de confiança, Varrick. Depois que ela ficou órfã quando criança, Varrick a criou como uma figura paterna , dando-lhe extenso treinamento em armas e combate e, finalmente, introduzindo-a em sua equipe privada de especialistas em redes. Quando o filme começa, Kate está em Osaka (Japão) para matar um oficial de um poderoso sindicato yakuza, mas Kate resiste a atirar porque uma criança o acompanhou inesperadamente. Ela finalmente atira no alvo por insistência de Varrick. Embora a missão de Kate seja um sucesso, essa violação de seu código pessoal de não matar na presença de crianças a deixa em um turbilhão emocional. Ela diz a Varrick que fará uma missão final e depois se aposentará para começar uma nova vida. Produzido pela Netflix, o diretor do filme afirma ter se inspirado no anime Tokyo Ghoul para cenas e temáticas do filme e a trilha sonora conta com a participação da banda de J-Rock, Band-Maid


Antes da missão final, Kate conhece um estranho carismático, Stephen, no bar de seu hotel. Os dois dividem uma garrafa de vinho e fazem sexo no quarto dela. Mais tarde, ao preparar seu ninho de atirador, ela começa a apresentar sintomas de tontura que a fazem perder o tiro.




 Kate percebe que Stephen a envenenou e, após bater seu carro, acorda em um hospital para saber que ela tem um envenenamento por radiação aguda causado por Polônio e tem apenas 24 horas de vida. Ela rouba estimulantes injetáveis ​​e uma arma e sai para se vingar de quem a envenenou.




Kate rastreia Stephen e sua namorada, e descobre que eles estavam fortemente armados para envenená-la por Sato, um yakuza afiliado à família do crime Kijima. Kate encontra Sato em um restaurante de luxo e o mata junto com dezenas de yakuzas armados. Desesperada por informações sobre o recluso e bem guardado Chefe Kijima, que ela acha que pode estar por trás do envenenamento, ela sequestra Ani, a sobrinha de Kijima. Kate percebe que Ani é a garota que viu seu pai morrer durante a missão em Osaka.




Enquanto Kate inicialmente só quer usar Ani como isca para atrair Kijima para o campo, ela decide se tornar sua protetora ao saber que a família de Ani quer matá-la como parte de uma luta interna pelo poder.




Leitura e contexto do filme


Dessa vez não teremos a sessão de backstage e história por trás do filme, pois ela simplesmente não existe. Esse é o problema de muitas das produções da Netflix: por elas saberem que vão apenas por streaming, ou seja, que as pessoas vão ver seus filmes na televisão, não se preocupam em construir um contexto e uma pesquisa para embasar o filme. Não há o mínimo diálogo entre direção e roteiro, produção e execução do filme. É só mais um filme. Só que eu acredito que Kate exagerou e perdeu um pouco a linha.




Acredito que a pior coisa no filme seja o roteiro. O trabalho do roteirista, Umair Aleem é péssimo. O filme não é baseado em nada, não é inspirado em nada e totalmente baseado em uma ideia, só que não é do diretor e nem se sabe de quem é. O roteiro não tem premissa, não tem inspiração clara e parece que apenas deram uma folha de papel para a equipe de guias e inspirações do filme. O filme é  simplesmente um plágio de Léon (1994), de Luc Besson.




O resultado é um show de inconsistências e apropriação cultural. A história se passa em Osaka e Tokyo, Japão. Apesar da produção dizer que filmou no país, nenhuma cena do filme parece que foi realmente filmada no Japão, sendo apenas um "sensação de Japão" construída em estúdio (meio problemático, não?!). 



Além disso, a protagonista é uma personagem sem passado, sendo seu único referencial o pai adotivo e mestre, que a ensinou e treinou para ser assassina. Só que antes de toda a situação começar, apenas uma cena mostrou a interação dos dois e foi totalmente vazia. Seu passado é mostrado através de flashbacks apenas no momento do acidente de carro, quando ela já está envenenada. Sem explicar para além de cenas, vemos uma cena de Kate criança conversando com Varrick, e ao que parece ele matou os pais de Kate. E nada mais os aproxima para além do treinamento, logo era de se esperar um pouco menos de seu pai adotivo, não acha Kate?!



Obvio que alguém com o passado dela não teria o perfil bonequinha do inicio do filme, então um capanga da yakuza corta seu cabelo numa batalha que é cópia mal feita da cena de luta de Kill Bill 1. Mas incrível como fica perfeitamente repicado. O cara devia largar a yakuza e considerar a carreira de cabeleireiro. Entretanto, depois da cena da boate, onde ela captura Ani, parecendo perceber o detalhe, ela mesmo corta mais seu cabelo com uma tesoura para corrigir. 




Depois disso, há uma cena bem mal feita de tiroteio em um comércio, onde dá para contar (pela simetria do espaço e posição da câmera) pelo menos 3 vezes onde Kate teria morrido, onde a mais gritante é quando, após enfiar o rosto de um gangster contra a grelha de um restaurante, volta para o beco para tentar pegar sua pistola e se abaixa perante a chuva de tiros. Era impossível pela posição e velocidade dela e dos atiradores, ela não tomar um tiro nesse momento e só foi salva pela "magia do roteiro".




Em seguida, temos uma cena de Ani tomando refrigerante com Kate e esse é o máximo de afinidade que elas terão uma pela outra, porém na cena há a ridícula fala de Kate dizendo que Ani é muito parecida com ela, mas elas mal se conhecem. Seria apenas para dizer que a relação delas era como de seu padrasto com ela, como se elas fossem duplos psicológicos, mas é mal feito.




Depois disso elas confrontam um gangster chamado Jojima, que é representado com jeito afeminado sem nenhum motivo. Há uma representação extremamente arquetípica e preconceituosa aqui, de novo.




Então, temos a cena que ela se encontra com o chefão superior da yakuza. E só então, ao ele falar que ela está sendo usada por seu mentor e ele dizer que Varrick é "um ocidental arrogante" que quer dragar tudo para si, é que ela percebe que foi usada e que estava sendo extremamente racista em seu proposito, afinal um paradigma gerencial dela nos perturba toda trama: o que a motiva estar ali? Mas então, mais uma vez uma incongruência: Ani escolhe ir com Varrick e lá vira refém, construção muito mal feita do roteiro.




Por último, ela escolhe ajudar o velho senhor da yakuza a derrubar seu discípulo insubmisso só para poder se vingar de Varrick. E aqui temos um dos principais problemas do filme: não há nenhum esforço de estudar, conhecer e representar corretamente a yakuza. Como a máfia italiana, eles são extremamente rígidos e hierárquicos, sendo os cargos divididos por famílias. Nunca uma disputa para oyabun seria travada na espada, cena totalmente desnecessária. Depois disso, Kate vai confrontar Varrick, e nem mesmo temos uma luta, mas sim um duelo, ao estilo faroeste. Mas muito mal feito em seu suspense e diálogo, sendo óbvio que ela matará Varrick fazendo o diálogo parecer desnecessário. O final é clichê para quem já viu Léon, e não emociona por mais da temática dramática, pois não tivemos tempo o suficiente para construir afinidade com Kate. Tudo que vimos em tela foi uma mulher americana branca e estressada, atirando, matando e mutilando japoneses, para no final ter uma redenção vazia e não fazer nem ajudar ninguém, nem mesmo Ani já que ela também matou seu pai.




A relação das duas obviamente marcada por uma metáfora psicológica: Kate como americana, representa algo como uma diva pop ou produto cultural para Ani, destronando o patriarcado e assim dando certo "empoderamento" para Ani. Sua brutalidade e violência é espelhada na dos cowboys americanos, mas é complicado dizer que feminismo é a mulher se comportar com o pior do comportamento humano. E mesmo que queiramos nos afeiçoar a ela como protagonista politicamente incorreto, como em filmes de Clint Eastwood, faltam referências culturais suficientes para podermos gostar de Kate e da pseudo cultura de massa que ela busca representar. Ela, na verdade, só chega a uma versão melhor de si ao tentar o mínimo se adequar ao Japão em seu estilo e roupas. Mas essas referências são vazias, nem da cultura pop e nem da cultura tradicional japonesa, tornando mais uma vez difícil deixar de pé sua redenção e a simpatia pela personagem.


Todo o filme é marcado por um visão e representação extremamente preconceituosa. Primeiro que há um óbvio ódio ao masculino por parte de Kate, principalmente étnicos. Todos os homens japoneses ou de qualquer outra etnia que não seja branca, como a dela mesmo e de Varrick, ela trata com extrema violência e com certo tom de crueldade que passa uma conotação de uma pessoal mal resolvida sexualmente. O filme não deixa claro o motivo e a preferência sexual de Kate, mas o ódio ao masculino rege todo seu comportamento, assemelhando suas posições aquilo que podemos chamar de "feminismo branco". 






Kate confunde a luta pela igualdade com colonialismo e apropriação. Ela não está ensinando Ani a ser independente e odiar o machismo, mas sim a odiar a própria cultura. O filme possui um profundo desprezo pela cultura japonesa, fazendo questão de representá-la como mais arquetípica possível e sem buscar referenciais culturais exatos, fazendo aproximações de representação que só servem de fundo. 




Ao mesmo tempo, o filme não buscar apenas inspirar-se mas "chupar" a cultura do jpop e dos animes. Segundo o diretor do filme, Cedric Nicolas-Troyan, ele foi "realmente atraído por esse tipo de cultura de anime muito, muito jovem e até hoje meu filho está muito interessado nisso, então eu nunca meio que deixei isso para trás. Essa foi uma grande parte do design e do visual de Kate. Por isso que Tokyo Ghoul está no filme, porque eu estava procurando uma conexão com Kate e com o personagem Ken Kaneki. Eles têm essa conexão”, continuou o diretor. “Pessoas que não conhecem Tokyo Ghoul, vão ficar tipo, ‘oh, é apenas um anime no prédio’. Mas as pessoas que conhecem vão pensar: ‘oh, eu posso ver porque Kaneki e Kate estão conectados’. Na verdade, eu escrevi uma carta ao criador de Tokyo Ghoul para pedir a ele para colocá-lo no filme”, por isso o anime é projetado em um prédio ao fundo em uma das cenas. Mas é só isso, não há nenhuma inspiração mais profunda.






Já a atriz que faz a protagonista, Mary Elizabeth Winstead, só aceitou fazer o filme de olho em outro filme: o da Caçadora da Marvel, personagem parecida com a de Kate em algumas características. Isso dá uma certa característica ao filme de que ninguém de fato liga para ele em si, apenas o fez para mostrar do que são capazes, e por isso muitas soluções do filme parecem preguiçosas, e no final dá uma extrema sensação de vazio. 




A fotografia é boa, mas como filme é mal ambientado, isso não se ressalta.




A trilha sonora talvez seja o que mais se destaca, com muitos jpops e rocks japoneses bem divertidos para quem a mente mais aberta. A participação do grupo BAND-MAID na trilha sonora do filme também foi bem interessante. Porém, se para você o filme precisa ser mais um pouco do que barulho e luz de fundo, melhor deixar Kate passar batido.








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