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Taxi Driver (1976): Clássico filme de Scorsese é inspirado na experiência real do roteirista Paul Schrader que teve que morar em um carro


Travis Bickle é um veterano da Guerra do Vietnã, de 26 anos, que sofre de estresse pós-traumático e vive sozinho em Nova York. Travis aceita um emprego como taxista noturno para lidar com sua insônia crônica e solidão. Ele frequenta os cinemas pornôs e mantém um diário no qual ele conscientemente tenta incluir ideias positivas sobre si. Ele está enojado com a "decadência urbana", e sonha se livrar da "escória das ruas". Travis se apaixona por Betsy, uma voluntária de campanha do senador democrata e candidato à presidência, Charles Palantine. Na tentativa de encontrar uma saída para sua raiva, Travis começa um programa de intenso treinamento físico. Um colega taxista o encaminha para um traficante de armas do mercado negro, de quem Travis compra quatro pistolas. Em casa, Travis pratica com suas armas, e modifica uma para permitir que ele se esconda e rapidamente a implante de sua manga. Ele também começa a frequentar os comícios de Palantine para examinar sua segurança buscando assassiná-lo, após Betsy romper com ele. Foi indicado a quatro categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1976.


Travis entra no escritório da campanha onde ela trabalha, e a convida para um café, ao que ela concorda. Betsy confessa que sente uma conexão especial com Travis, e concorda em ir a outro encontro com ele. Durante o encontro, Travis leva Betsy a um teatro pornô, o que a repugna e faz com que ela saia. Ele tenta se reconciliar com ela, sem sucesso. Enfurecido, ele invade o escritório de campanha onde ela trabalha, e a repreende antes que ele seja ordenado a sair.



Vivenciando uma crise existencial e vendo várias acusações de prostituição por toda a cidade, Travis confidencia ao colega taxista apelidado de Wizard sobre seus pensamentos violentos. No entanto, ele os descarta e garante que ficará bem. Na tentativa de encontrar uma saída para sua raiva, Travis começa um programa de intenso treinamento físico. Um colega taxista o encaminha para um traficante de armas do mercado negro, "Easy" Andy, de quem Travis compra quatro pistolas. Em casa, Travis pratica o desenho de suas armas, e modifica uma para permitir que ele se esconda e rapidamente a saque de sua manga. Ele também começa a frequentar os comícios de Palantine para examinar sua segurança. Uma noite, Travis atira e mata um homem tentando roubar uma loja de conveniência.




Em suas viagens pela cidade, Travis encontra regularmente Iris, uma prostituta infantil que ele fantasia em salvar. Travis a solicita e tenta convencê-la a parar de se prostituir. Logo depois, Travis corta o cabelo em um moicano e vai a um comício público onde planeja assassinar Palantine.



História por trás do filme


De acordo com o diretor Martin Scorsese, foi Brian De Palma quem o apresentou a Paul Schrader. Taxi Driver surgiu de seu sentimento de que filmes são como sonhos ou devaneios induzidos por drogas. Ele tentou inculcar dentro do espectador a sensação de estar em um estado de limbo entre dormir e acordar. O diretor também cita The Wrong Man (1956), de Alfred Hitchcock, e A Bigger Splash (1973), de Jack Hazan, como inspirações para seu trabalho de câmera no filme. Ao escrever o roteiro, Schrader foi inspirado pelos diários de Arthur Bremer (que atirou no candidato presidencial George Wallace em 1972).



Para o final da história, quando Bickle se torna um herói da mídia, Schrader foi inspirado pela tentativa de assassinato de Squeaky Fromme do presidente Gerald Ford, que resultou em sua capa da Newsweek. Schrader disse também que usou como inspiração; em uma entrevista de 1981 com Tom Snyder no The Tomorrow Show, ele relatou sua experiência em Nova York enquanto lutava contra a insônia crônica, o que o levou a frequentes livrarias e teatros pornográficos porque eles permaneceram abertos a noite toda. 



Após um divórcio e um término com uma namorada, ele passou algumas semanas morando em seu carro. Depois de visitar um hospital para uma úlcera estomacal, Schrader escreveu o roteiro de Taxi Driver em "menos de uma quinzena", ele afirma "O primeiro rascunho foi talvez 60 páginas, e eu comecei o próximo rascunho imediatamente, e levou menos de duas semanas." Schrader lembra que percebeu "que não falava com ninguém há semanas [...] foi quando a metáfora do táxi me ocorreu. Isso é o que eu era: essa pessoa em uma caixa de ferro, um caixão, flutuando em volta da cidade, mas aparentemente sozinho." 



Schrader decidiu fazer de Bickle um veterano do Vietnã porque o trauma nacional da guerra parecia se misturar perfeitamente com a psicose paranoica de Bickle, tornando suas experiências após a guerra mais intensas e ameaçadoras. Em Scorsese sobre Scorsese, Scorsese menciona o simbolismo religioso na história, comparando Bickle a um santo que quer limpar ou limpar sua mente e seu corpo de fraqueza. Bickle tenta se matar perto do final do filme como um tributo ao princípio da "morte com honra" do samurai. 


Dustin Hoffman foi oferecido o papel de Travis Bickle, mas recusou porque achava que Scorsese era "louco". 



Scorsese trouxe o designer Dan Perri para projetar a sequência do título de Taxi Driver. Perri havia sido a escolha original de Scorsese para projetar os títulos de Alice Doesn't Live Here Anymore, em 1974, mas a Warner Bros não permitiria que ele contratasse um designer desconhecido. No momento em que Taxi Driver estava entrando em produção, Perri tinha estabelecido sua reputação com seu trabalho em O Exorcista, e Scorsese agora foi capaz de contratá-lo. 



Perri criou os títulos de abertura de Taxi Driver usando imagens de segunda unidade que ele tratou por cores através de um processo de cópia de filme e varredura de fendas, resultando em uma sequência gráfica altamente estilizada que evocava a "barriga" da cidade de Nova York através de cores lúdicas, sinais de neon brilhantes, imagens noturnas distorcidas e níveis de preto profundos. Perri passou a projetar títulos de abertura para uma série de grandes filmes após este, incluindo Star Wars (1977) e Touro Indomável (1980).



A partitura de Taxi Driver foi composta por Bernard Herrmann. A primeira trilha sonora de Herrmann foi para Cidadão Kane (Orson Welles, 1941). Embora tenha seguido uma carreira diversificada, nossa visão coletiva de seu trabalho tendeu talvez a ser definida por sua colaboração com Alfred Hitchcock, para quem ele compôs The Trouble With Harry (1955), The Man Who Knew Too Much (1956), The Wrong Man (1956), Vertigo (1958), North by Northwest (1959), Psycho (1960) e Marnie (1964). Sua trilha sonora para Taxi Driver é uma mistura de romantismo sombrio e tensão inquietante, que funde hipnoticamente e ousadamente ricos tons românticos, percussão sinistra e saxofone na pegada jazz exuberante.




Paul Schrader escreveu o roteiro em 10 dias após um período em que morava em um carro após o término de um relacionamento, e ele percebeu que não falava com ninguém há dias e o táxi se tornou uma metáfora da solidão. Schrader, um ex-crítico de cinema, vendeu seu roteiro para The Yakuza (Sydney Pollack, 1974) por uma quantia muito grande de dinheiro, mas nenhum estúdio aceitaria o roteiro sombrio (mas ótimo) de Taxi Driver. Scorsese teve que esperar até que ele tivesse um histórico e pudesse garantir De Niro (ainda quente de O Poderoso Chefão II), antes de obter um orçamento. Ele também aparece em uma das partes do filme, como um dos clientes do táxi. 



Em preparação, De Niro dirigiu táxis em Nova York no fim de semana, enquanto filmava 1900 (Bernardo Bertolucci, 1976) na Itália durante a semana. Schrader encontrou uma garota prostituta para usar como base para Iris, e seus maneirismos (comer açúcar e geleia no pão, óculos de sol de cores diferentes) foram usados por Jodie Foster. A garota aparece como amiga de Iris no filme. Harvey Keitel pesquisou cafetões e acrescentou uma longa unha em seu dedo mindinho quando descobriu que viciados em cocaína os usavam. Novamente, cenas entre De Niro e Keitel foram improvisadas e incorporadas ao roteiro antes das filmagens. 



Com um baixo orçamento de $ 1,9 milhão, vários atores tiveram cortes salariais para criar o projeto. De Niro e Cybill Shepherd receberam apenas US$ 35.000 cada para fazer o filme, e Scorsese recebeu US$ 65 mil. No total, 200.000 dólares do orçamento foram dados aos artistas do filme. Influenciado fortemente pelas técnicas de Hitchcock, como fazia este diretor, há uma cena onde Scorsese aparece aleatoriamente no filme, logo antes de Besty aparecer a primeira vez em tela e antes mesmo de sua participação como marido traído que pega o taxi de Travis.



Taxi Driver foi filmado durante uma onda de calor, no verão em Nova York, além de uma greve de saneamento, em 1975. O filme entrou em conflito com a Motion Picture Association of America (MPAA) por sua violência. Scorsese dessaturou a cor do sangue no tiroteio final, e o filme teve uma classificação R. Para conseguir as cenas atmosféricas no táxi de Bickle, os técnicos de som entravam no porta-malas e Scorsese e seu diretor de fotografia, Michael Chapman, se acotovelavam no banco de trás do banco de trás e usavam a luz disponível para filmar. Chapman admitiu que o estilo de filmagem foi muito influenciado pelo cineasta Jean-Luc Godard e seu diretor de fotografia Raoul Coutard, devido ao fato de que a equipe não tinha tempo nem dinheiro para fazer "coisas tradicionais". 




Quando Bickle decide assassinar o Senador Palantine, ele corta seu cabelo em um moicano. Este detalhe foi sugerido pelo ator Victor Magnotta, um amigo de Scorsese, que teve um pequeno papel como agente do Serviço Secreto e que havia servido no Vietnã. Scorsese mais tarde observou: "Ele nos disse que, em Saigon, se você visse um cara com a cabeça raspada — como um pequeno Mohawk — isso geralmente significava que essa pessoa estava pronta para entrar em uma situação das Forças Especiais. 



Você nem chega perto deles. Eles estavam prontos para matar. As filmagens ocorreram no West Side de Nova York, numa época em que a cidade estava à beira da falência. De acordo com o produtor Michael Phillips, "todo o West Side foi bombardeado. Havia realmente fila após fila de edifícios condenados e era isso que costumávamos construir nossos conjuntos [...] não sabíamos que estávamos documentando o que parecia ser o suspiro moribundo de Nova York." 



A cena do tiroteio, filmado em um apartamento real, levou três meses de preparação, e a equipe de produção teve que cortar o teto para filmar. Alguns críticos mostraram preocupação com a presença de Foster, de 12 anos, durante o tiroteio climático. Foster disse que estava presente durante a montagem e encenação dos efeitos especiais utilizados durante a cena; todo o processo foi explicado e demonstrado para ela, passo a passo. Além disso, Foster disse que estava fascinada e entretida pela preparação dos bastidores que entrou em cena. Além disso, antes de receber o papel, Foster foi submetida a testes psicológicos, participando de sessões com um psiquiatra da UCLA, para garantir que ela não ficaria emocionalmente marcada por seu papel, de acordo com as exigências do Conselho de Trabalho da Califórnia que monitora o bem-estar das crianças em sets de filmagem.



Novamente, cenas entre De Niro e Keitel foram improvisadas e incorporadas ao roteiro antes das filmagens. Cada adição do elenco e da equipe adicionava uma camada ao roteiro original em vez de revisá-lo. Por exemplo, quando Travis assiste a um programa pop na TV, o roteiro enfatiza os corpos duros e luxuriosos – a carne sexual que Travis deseja, mas não pode ter. Scorsese tem isso no filme, mas a música que eles estão dançando contém as palavras “perto do fim” e “quanto tempo eu estou dormindo?” que dá uma premonição de coisas ruins por vir. 



A produção ocupou um prédio condenado para filmar o quarto de Travis, o quarto de Iris e o tiroteio final. A equipe temia por sua segurança. Havia tanto sangue nas paredes que parecia e cheirava a um matadouro. No entanto, este vermelho pungente foi dessaturado para obter uma classificação R. Embora esse vermelho agora esteja perdido para sempre (a cor negativa não é recuperável), a dessaturação dá o efeito de um pesadelo e algo acontecendo dentro da mente, o que é apropriado.



Crítica do filme 


Taxi Driver é provavelmente o filme mais discutido de Scorsese. As análises variam de exegese formal e temática próxima (Bliss 1985, Kolker 1988, Friedman 1997) a estudos do filme como, por exemplo, “texto incoerente” (Robin Wood, 1980), resultado de “certa tendência” de Hollywood (Ray, 1985). ), uma realocação doméstica da experiência do Vietnã (Fuchs, 1991), uma instância preeminente da 'arte apocalíptica' dos anos setenta (Sharrett, 1993) e uma 'reformulação' de The Searchers (Stern, 1995). É até difícil acrescentar novas leituras ao filme. Entretanto, eu recomendo o livro The Films of Martin Scorsese, 1963–77, de Leighton Grist, que faz uma ótima síntese das análises de críticos e autores sobre o filme.



Um ponto que sempre refleti sobre o filme, é que Travis é cinematograficamente analfabeto, e ele acha que é romântico levar Betsy a um cinema pornô. Scorsese, que é conhecido cinéfilo, parece estar introduzindo uma piada com uma boa motivação para ser um cinéfilo: te ensina a não assustar a garota no primeiro encontro. 



Há uma série de referências cinéfilas no filme. Quando Travis está selecionando o armas, ele aponta uma delas para fora da janela e para as pessoas como um tiro em Na Mira da Morte de Peter Bogdanovich (1967). A cena de Travis segurando o revólver Magnum em comprimento do braço emula Clint Eastwood em Dirty Harry (Don Siegel, 1971). Há referências a westerns (Travis em botas de cowboy). Scorsese já afirmou que há semelhança com a busca racista de Ethan Edwards e seu sujo desejo pela sobrinha em The Searchers (John Ford, 1956). Eu também me pergunto se a cena em que Travis inclina e equilibra a TV com seu pés (que eventualmente cai e se esmaga) era um eco de Wyatt Earp de Fonda se equilibrando em sua cadeira no Paixão dos Fortes (1946).



A repulsa de Travis por Nova York é compreensível porque ele vê o pior das pessoas no banco de trás de seu táxi. Que tipo de mundo é esse onde ele tem que limpar o esperma e o sangue do banco de trás no final de cada turno? Algo que, inclusive, parece uma screwball de prostituição. As pessoas que ele conhece são abusivas, violentas e psicopatas. Ele tem nojo deste mundo. Ele lutou no Vietnã, nos fuzileiros navais, e voltou para um mundo horrível. Mas sem perceber um detalhe: para todos ele é parte desse mundo também.



Na cena do espelho, o famoso “Você está falando comigo?”, onde Travis pratica como ele vai reagir quando confrontado é engraçado e horrível ao mesmo tempo, pois ele parece não conhecer, na verdade, a si mesmo. O filme é cheio de cenas de espelho, porque Travis fala com as pessoas através de seu espelho retrovisor no táxi. Travis está preso em seu ambiente, vê o mundo através de sua janela (e espelho) e faz julgamentos sobre ele. Embora a representação de Travis como veterano do Vietnã não seja exagerado, ele possui a psicologia e os maneirismos de um antropólogo, tomando inclusive notas.



Na psicologia, mas também na comunicação e no cinema, há um conceito que faz sempre nos ater ao constante uso de espelhos: o espelhamento. Esse é um conceito mais associado a psicologia lacaniana. Christian Metz, no livro "Significante Imaginário: Psicanálise e Cinema", desenvolveu melhor esse paralelo no cinema com a ideia de prótese. O cinema é uma tela para o mundo e não só para si mesmo. Existem filmes que assistimos que representam situações e pontos de vistas de pessoas que não queremos ser ou conhecer, mas que de alguma forma pode ser interessante explorar visualmente.  



Na geração de cineastas conhecida como "New Hollywood Cinema" (Coppola, Scorsese, Woody Allen, Spielberg), a fonte das tramas é comumente a repressão das instituições sociais e legais. Há uma profunda reflexão sobre a fraqueza da lei e a causa do colapso social, uma perspectiva que parece evocar a direita nixoniana. Nos filmes da era Nixon, os protagonistas são sempre frustrados pelas sutilezas legais “liberais” ou a lei é “muito branda” e ineficaz para ajudá-los.



Vários críticos já notaram a semelhança do filme com Psicose (1960). Sua combinação de situação, narração em off e subjetiva, edição de ponto de vista e uma partitura de Herrmann, as cenas noturnas de Travis lembram muito estilisticamente as de Marion até ao Bates Motel. Ambos os personagens dirigiam para um mundo "corrompido", e como o ponto de vista de Travis domina Taxi Driver, assim de Marion domina a primeira metade de Psicose. Além disso, um dos aspectos mais subversivos de Psicose é a identificação do filme com personagens transgressores e criminosos: Marion, que rouba, e Norman Bates (Anthony Perkins), que mata. Robin Wood denominou a visão de Travis de Nova York como a "Cidade dos Excrementos". 



A Nova York de Travis mantém a representação melodramaticamente convencional da cidade de Nova Iorque como corrupta, algo notável em toda a cultura americana, e implica antecedentes históricos mais específicos. A região hoje conhecida como Nova Iorque, era habitada originalmente por nativos norte-americanos das tribos lenapes. No momento da sua achada europeia, em 1524, por Giovanni da Verrazano, um explorador florentino a serviço da coroa francesa, que chamou de "Nouvelle Angoulême" (Nova Angoulême). 


O assentamento europeu começou com a fundação de uma colônia holandesa de comércio de peles, que mais tarde seria chamada "Nieuw Amsterdam" (Nova Amsterdã), na ponta sul de Manhattan em 1614. O diretor-geral colonial holandês, Peter Minuit, comprou a ilha de Manhattan dos lenapes em 1626 pelo valor de 60 florins, (cerca de mil dólares em 2006). Uma outra lenda diz que Manhattan foi comprada por 24 dólares no valor de contas de vidro. Os primeiros moradores de Nova Iorque foram 23 judeus de origem portuguesa que chegaram em 7 de setembro de 1654 na Nova Amsterdã, um entreposto da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, fugindo da Inquisição no Recife. Das 16 naus que partiram às pressas do Recife, uma foi saqueada na Jamaica e 23 judeus viajaram até a ilha de Manhattan, sem bens, onde estabeleceram residência e trabalharam no comércio.


Isso quer dizer que a cidade já foi fundada em uma forte disputa territorial e patrimonial, entre etnias diversas. Os índios, que eram do lugar, tiveram que começar a conviver em com judeus, também refugiados em busca da terra. Depois, no século XIX, a cidade foi transformada pela imigração e pelo desenvolvimento. Uma proposta visionária de desenvolvimento, o Plano dos Comissários de 1811, expandiu a "grade de ruas" por toda Manhattan e a abertura do Canal de Erie em 1819, ligando o Atlântico aos vastos mercados agrícolas do interior norte-americano. A política local caiu sob o domínio do Tammany Hall, uma máquina política apoiada por imigrantes irlandeses. A Grande Fome Irlandesa trouxe um grande influxo de imigrantes irlandeses e, em 1860, um em cada quatro nova-iorquinos – mais de 200 mil pessoas - havia nascido na Irlanda. 



A população de Nova Iorque é excepcionalmente diversa. Ao longo de sua história, a cidade tem sido um ponto importante de entrada de imigrantes; mais de 12 milhões de imigrantes europeus passaram por Ellis Island entre 1892 e 1924. O termo "caldeirão" (Hells Kitchen) foi cunhado para descrever bairros de imigrantes densamente povoados no Lower East Side. Em 1900, os alemães constituíram o maior grupo de imigrantes, seguidos pelos irlandeses, judeus e italianos. Há também substanciais populações de porto-riquenhos e dominicanos. Um dos grupos étnicos mais significativos é o dos italianos, que emigraram para a cidade em grande número no início do século XX, principalmente a partir da Sicília e de outras partes do sul da Itália. 


Não se pode relevar esses fatores históricos específicos para analisar contextualmente Taxi Driver. Obviamente, Travis é um descendente de italianos. Ele obviamente é tratado com certo preconceito, que funciona mais ou menos assim: Ele não é nem escuro o suficiente para ser totalmente segregado e ter um motivo para reclamar e denunciar, como também não é claro o suficiente para viver entre os brancos. Para viver entre os italianos, os costumes familiares e de bairro devem imperar. Não é nunca mencionado sobre a família de Travis, uma falha estrutural do roteiro, pois afinal todos tem família. Mas acho que isso é ignorado de proposito para aumentar sua solidão de maneira artificial, inclusive. Entretanto, a referência de ele ter ido para o Vietnã explica muito sua ruptura com a comunidade. Quem assistiu O Poderoso Chefão, sabe que as comunidades ítalo-americanas, não queria que seus filhos fossem para guerras defenderem os Estados Unidos, pois se sentiam vítimas de segregação e preconceito por parte do país. Para que defender um país que não te trata bem? 


Nessa questão, Scorsese como descente de italianos, parece estar refletindo sua própria incursão no universo do cinema, onde muitos deviam o tratar como um "taxista do cinema"; com filmes urbano, violentos e que falam de conflitos raciais e culturais. O diretor parece refletir sua própria solidão no cenário americano, uma vez que, de fato, são poucos cineastas que agregam a qualidade e o esclarecimento político de Martin Scorsese. Porém, a Academia do Oscar mesmo, nunca reconheceu isso muito bem, tendo ele recebido até hoje apenas uma estatueta (Os Infiltrados, 2006).


Taxi Driver incorpora de maneira particular uma iluminação claustrofóbica e expressionista, com locução, ruas iluminadas por neon e escorregadias de chuva e uma partitura tingida de jazz, para representar esse universo de segregação e abandono, em uma atualização autoconsciente da estilística noir, com toques de niilismo, para assim falar com aqueles que se sentem excluídos. Travis escreve em seu quarto, também ouvimos: “Graças a Deus pela chuva que ajudou a lavar o lixo e o lixo das calçadas.” Após sua diatribe “moral” e a tomada de rastreamento da calçada, sua voz em off afirma: “Algum dia uma chuva de verdade virá e lavará toda a escória das ruas.” Isso sugere que o “lixo” é humano e que a chuva é simbólica e retribuída, para mim uma tentativa de abrandar o ódio de certas pessoas com uma sensação pervida de vingança social. 



O filme ainda explora a questão da política eleitoral mais especificamente. Obviamente Palentine é um democrata, um personagem que é uma referência ao meu ver a Jimmy Carter. Na verdade, Carter foi eleito, naquele ano de 1976, presidente dos EUA com 50% dos votos. No mesmo ano, Fidel Castro tornou-se chefe de estado e de governo de Cuba, assumindo simultaneamente a condição de Presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros. Travis, inicialmente, apoia a campanha de Palentine com vigor (mas certa falsidade e ironia) pelo fato de estar interessado em Betsy. Após o constrangimento do cinema pornô, com Betsy rompendo totalmente com Travis, ele incuba uma postura republicana. Ou seja, começou naquela época o debate sobre os Democratas serem polidos demais para lidar com o povo, profetizando de maneira genial o que seria o governo Reagan. Mas, ao mesmo tempo, representa um caráter importante sobre como pessoas populares apoiam aqueles que os trazem melhoras pessoais. 



O lema da campanha de Palentine era "We Are The People", quase como um frase impostora, que reforça o caráter de esquerda da campanha, mas que, ao mesmo tempo, anula qualquer questionamento de sua legitimidade. Já em seu comício, Palentine aparece com uma mega escolta policial, contendo agentes do serviço secreto e policiais de Nova York, onde em um dos planos onde o vemos entre dois policiais, observamos o caráter de medo do social do candidato. Ou seja, assumindo que as pessoas podem ter ódio dele pois parte de seus discursos são sobre se disfarçar de popular, mas sem de fato resolver nada.



À medida que o táxi de Travis se move pelas ruas, sentimos uma sugestão particularmente “católica” de sua personalidade, lhe conferindo um status icônico e sacramental. Elas acrescentam força aos seus julgamentos “morais”. A necessidade de retribuição é ainda mais “justificada” por duas cenas diretamente subsequentes. Primeiro, Travis dirige um empresário de meia-idade (Peter Savage) e uma prostituta negra (Copper Cunningham). Então, depois de dirigir pela água jorrando de um hidrante, Travis estaciona o táxi na garagem, toma algumas pílulas, pega um pano, endireita as costas e se abaixa no banco de trás do táxi. Sua voz em off entoa: “Toda noite, quando devolvo o táxi para a garagem, tenho que limpar esperma do banco de trás. Algumas noites eu limpo o sangue.” Sempre li isso como uma metáfora de prostituir-se, e não com o corpo apenas, mas como Travis, prostituir a sua vida, seu tempo, atenção e psicológico, para uma profissão obviamente sem prospecção de melhora ou promoção.



A “moralidade” de Travis é, no entanto, problematizada quando ele entra nos cinemas pornôs. A negação e atração mútuas de Travis, que, desejando o que ele conscientemente rejeita, o faz ser pego em um retorno compulsivo do reprimido: enquanto ele se revolta contra 'os animais', sua visão da calçada se concentra e segue uma mulher que ele obviamente achou sensual. Travis também sai à noite e, apesar de todas as suas alegações de que dirige “por toda” Nova York, parece trabalhar apenas nas áreas mais sórdidas. Por quê?



Com Travis assim preso e incapaz de conciliar impulsos conflitantes, sua representação reflete a dos protagonistas masculinos anteriores de Scorsese, sugerindo outra divisão, e aqui agonizantemente alienada, subjetividade: “Doze horas de trabalho e ainda não consigo dormir…. Os dias passam e não terminam.” Como propõe Schrader, a situação de Travis como taxista representa perfeitamente sua condição de preso, encaixotado, assim como o quarto dele. Estabelecido por meio de um plano circular, o quarto é sombrio e desconfortável, com pintura rachada, reboco nu, móveis rudimentares e janelas gradeadas. Tanto carro como quarto, sugerem os quartos/celas do ciclo prisional. 



Por outro, implica uma exteriorização do estado psicológico e emocional de Travis, expressando sua repressão e alienação. A sala não está apenas repleta do que parecem ser revistas pornográficas, mas também está suja e desarrumada, com latas de Coca-Cola para todo lado. Enquanto a voz de Travis fala sobre “o lixo”, a câmera rastreia as instalações miseráveis. Quando Travis se junta a alguns taxistas no que o roteiro identifica como uma “colher gordurosa”, sua alienação é refletida através do enquadramento das tomadas. Sentado na beira da mesa, Travis é filmado em um plano médio de frente, que enfatiza sua distância, em planos únicos próximos ou como uma presença ligeiramente fora de foco no primeiro plano, depois o incrível zoom no sal de frutas borbulhando na agua: como Travis está por dentro. 



A sugestão do desejo reprimido de Travis é mantida enquanto ele ouve, fascinado, a fantasia sexual de Wizard sobre uma passageira. Diante disso, a saudação brincalhona de Wizard de que Travis é um "pegador" e a pergunta jocosa de Doughboy, têm aptidões irônicas que buscam obviamente o excluir por ser italiano, mesmo que sejam da mesma classe social e profissão deles. Eles querem escarniar com o fato de que nenhuma mulher vai se interessar por um italiano, pobre, sem cultura e solitário como ele. 


Travis responde às palavras de Doughboy com uma combinação de incompreensão alienada e constrangimento, como se ele tivesse sido “pego”. A conotação é de um contexto cultural determinante, cuja relação com a disjunção de Travis é ressaltada quando, sobre a pergunta de Doughboy. E como que para mudar de assunto, Travis observa que um motorista foi cortado na 122nd Street. Wizard comenta: "Foda-se a terra dos Maus". 


Travis, inquieto, olha para a esquerda e há um corte para uma tomada de ponto seu ponto vista, ligeiramente em câmera lenta, de um par de negros bem vestidos e de aparência agressiva; um olhar que se interrompe apenas por Doughboy perguntando, insistentemente, se Travis carrega "uma peça". O plano representa o racismo latente de Travis e seu grupo, mas também representa um condicionamento instantâneo a vivência ao mundo que ele diz odiar: Na verdade, ele gosta mais dos estranhos do que dos amigos. Esta última, aliás, pode ser lida como prefigurada e “determinada” pela condução do empresário e da prostituta negra.



Taxi Driver incita um reflexo de nossa consciência, de nossa própria implicação subjetiva em atitudes e mitos urbanos destrutivos. Taxi Driver, como filme neo noir, desafia nosso pensamento racional e ideológico em heróis masculinos violentos e vingativos. Mas ao mesmo tempo, nos coloca no local sujo, incoerente e popular, do que é culturalmente necessário para uma revolução. Destaca também os efeitos sensacionalistas da mídia, e as consequências do vigilantismo de direita, que o filme representa como a ação de um indivíduo explicitamente perturbado. 



As palavras de Travis para Iris no café, "policiais não fazem nada, você sabe disso", ecoam a lógica de Kersey para seu vigilantismo construída pela mentalidade midiática de "estar sempre atento", "seja feliz" e "denuncie. A violência também compromete as conotações religiosas do texto que poderiam, erroneamente, interpretar uma visão apologética a Travis. Isso expõe a cruzada moral de Travis para limpar a cidade como fanatismo destrutivo. 



Todas “justificativas” de Travis, as implicações religiosas “vingativas” do texto são colocadas como uma orientação mais desacreditada, profética. Algo similar a Deus e o Diabo na Terra do Sol. Enquanto as tentativas de Travis de “atirar” em si mesmo evocam ainda mais suas insinuações de martírio, sua suposta tentativa de redenção auto-sacrificial só trouxe a morte de outros. 


Em termos técnicos, é um dos filmes mais perfeitos já feitos na História do cinema. Primeiro, a trilha sonora. Sempre é aconchegante ouvir de novo aquele solo de saxofone característico ao filme, ao que combina perfeitamente com a experiência urbana, a ideia de ficar 24h por dia no carro e ouvindo rádio. A direção de Scorsese é absurda. Somos impactados com uma enxurrada constante de cenas, que transitam e passeiam constantemente pelo ambiente, dando uma noção de fluidez e complexidade maravilhosa a linguagem do filme. 


De certa forma, o diretor combina a narrativa americana e pessoal, sobre o indivíduo, o romance, o ambiente urbano; com temáticas típicas aos filmes soviéticos e brasileiros, como a desigualdade, problemas estruturais e sociais, possuindo uma pegada narrativa bem política e crítica. A montagem do filme é vertical, estrutural. Todas as cenas estão otimamente arranjadas e bem selecionadas, fazendo parte todas elas de uma estrutura geral de sentido do filme. Isso faz com que mesmo ser um espectador passivo em Taxi Driver é complicado, pois o filme não é totalmente sobre Travis, como sobre toda a estrutura ao seu redor, algo que Eisenstein fazia em seus filmes.


Porém, a teatralidade e diálogos filosóficos, que parecem em conjunto uma técnica bretchiana de distanciamento e intimidade, que parece muito com dos filmes do Cinema Novo brasileiro, principalmente Glauber Rocha, o qual Scorsese já disse ser fã, tendo o diretor já participado da restauração de filmes clássicos brasileiros, como Limite (1931). De Niro encarou bem o papel e parece ter se dedicado muito para alcançar o resultado final em tela, pois Travis é bem diferente do ator, por isso acredito que esse seja o seu melhor papel de todos, onde ele de fato incorporou o personagem.


Um clássico absoluto da "Nova Hollywood", que se você não viu ainda, vai ter que ver um dia. 




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