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Carrie, A Estranha (1976) inverte a premissa do livro de King e questiona o lugar dos rituais cotidianos e das técnicas de punição empregadas pelo sistema educacional americano



Filme do gênero de terror de Brian de Palm, conta a história de Carrie White. Perto do fim do ano letivo, a veterana Carrie (Sissy Spacek) é uma excluída social, muito também por não entender os costumes "normais" de adolescentes de sua idade. Sua mãe é uma religiosa maluca vivida por Piper Laurie (de Twin Peaks), que foi abandonada por Ralph que fugiu com outra mulher. Desde então, as crenças de sua mãe fazem com que ela não saiba agir normalmente na escola. Enquanto os colegas de Carrie são cruéis com ela planejando sempre uma nova armadilha para humilhá-la, ela possui superpoderes de telecinese que busca compreender lendo muitos livros sobre o assunto. Morando em Westober (Estado do Maine).  A escola de Baker Street Grammar School de King, é retratada na visão de Palma como parte da estrutura que agrava ainda mais o problema do bullying por incentivar uma falsa cultura da "superação" em uma visão romanceada e fajuta. Carrie, A Estranha é conhecido enormemente na cultura popular como livro de Stephen King.


O filme já começa com Carrie mestruando no banheiro do vestiário e achando que ia morrer por conta disso, enquanto suas colegas de escola decidem jogar toalhas e absorventes nela por acharem ela boba por não saber o que era isso. Sua mãe não explicou biologia básica, em uma metáfora de que ela é 'contra a ciência'. A professora de educação no livro que ajuda Carrie, no filme é a senhorita Collins (no filme) que é descrita no livro como magra e ereta, e que usa shorts muitos brancos, e que  "defende" Carrie no início quando vemos na primeira cena que ela tinha mestruado pela primeira vez e não tinha ideia do que ela. Carrie teria tido sua primeira mestruação e não sabia como fazer, como colocar um absorvente ou entender como 'esconder' isso socialmente, como todos fazem. 




O filme joga com o fato, de que por mais natural que seja esse processo, a sociedade encara como se fosse uma questão de culpa em relação ao feminino. Como se a "regra" tivesse que trazer junto um certo senso de responsabilidade e culpa inerente ao "erro feminino" e imediatamente esconder "suas vergonhas" se torna uma obrigação social. E esse é todo o mote do filme, entender o julgamento social por traz de não entender as dinâmicas de inclusão e exclusão. 




A escola preza pela normalidade acima de todas as coisas, mas nem todos tem os conhecimentos para entender a social democracia que envolve alguns procedimentos que consideramos como naturais. E se não é ensinado para uma garota a colocar o absorvente? A atitude da 'ajuda' seria dar para ela o absorvente e ensinar a "ser mulher" de verdade. 

As garotas no vestiário, que é descrito no livro como "uma casa de lavagem egípcia", e que todas as garotas ao sentir nojo do sangue que cai de Carrie, começam imediatamente o ritual cínico da "ajuda feminina". Essa é a principal diferença entre o filme de Brian de Palma e a perspectiva de de Stephen King. Para Stephen King, o problema é Carrie e sua inaptidão para a normalidade, tão facilmente normal que todos entendem, para Brian de Palma, Carrie é diferente, e a loucura reside na normalidade de tudo em sua volta. 




Como é visto nas falas da mãe de Carrie, quando ela pergunta para mãe o motivo dela não ter contando sobre isso, a mãe responde lendo a parte de gênesis da bíblia que fala sobre a maldição de Eva, depois da tentação da serpente. Por causa de Eva, todas as mulheres mestruariam, essa metáfora foi explicada de maneira genial no filme, com a grande  atuação da veterana do teatro Piper Laurie. Uma das estudantes, Chris Hagernsen, que na escala na escola, é a "abelha rainha" do grupo, ela que arma mais para Carrie, como também é quem defende seu grupo dos castigos, promete vingança por conta da aula de educação física.

 


Ao acertarem absorventes e toalhas em Carrie, as meninas levaram uma pesada punição da professora. A questão aqui é refletir o quanto os castigos agravam o comportamento de rixa entre os alunos. Quando Chris desobedece o castigo, a professora Collins dá um tapa na sua cara na frente de todo mundo, provando que o problema vai além de Carrie ou das meninas, ou mesmo da mãe. 



Enquanto Sue Snell pede para seu namorado Tommy Ross (William Katt), começa a sentir pena de Carrie e pede para ele levar ela no baile. Na hora da cena do baile, onde Carrie foi coroada, junto com o garoto que gostava e que a chamou pois sua namorada pediu (mesmo que ele não soubesse da pegadinha) a rainha e rei do baile de formatura, um costume que era muito comum nas escolas americanas, parte de uma certa tradição educacional. 



O filme reflete em como que a cultura do bullying esconde uma intenção de colocar alguém como centro. Ao reverter a premissa de direita do livro de King, temos o problema com a sociedade que cerca Carrie e não exatamente com ela. Como se os problemas não fossem superados. Na cena anterior a cena do balde de sangue, a professora Collins comenta com Carrie como foi seu baile, ao dizer como que ela merecia "superar" aquilo, como se o problema fosse com ela, e dizia como ela estava bonita e que realmente Tommy parecia gostar dela e não sabia da armadilha preparada pelas meninas. 



A continuação do bullying em forma de punição por conta de Carrie pode parecer que a senhorita Collins (Betty Buckley) (professora de educação física) gostava de Carrie. Mas não. 



Realmente, a contradição é que apesar das tramoias de todos em volta, Carrie e Tommy pareciam que realmente estavam se dando bem. Quando cai o balde em Carrie, e Sue tenta antes ajudar e parar o que ia acontecer, a professora impede Sue de ajudar Carrie.



Quando cai o balde de sangue de porco em Carrie e Tommy, todos na hora ficam assustados, mas como um começa a rir, estimula os outros, e assim até mesmo a professora que seria "legal" e estava ajudando Carrie, acabou por fim a humilhando e rindo dela junto com os outros alunos.



O final, todos já sabem e logo não existem spoilers. O que eles não sabiam é que o balde que humilhou Carrie caiu depois na cabeça de Tommy, o levando ao óbito enquanto todo ginásio queima ao fundo, a grande vingança de Carrie. Esta sequência se diferencia muito da de 2013, pois aqui as pessoas da escola praticamente se matam como formigas desesperadas, enquanto em na nova versão há um requinte de crueldade em Carrie que não existe na versão de De Palma: ela apenas se defende.



Para completar, ao voltar para casa, a mãe de Carrie a espera em casa, quando ela volta toda suja de sangue, dizendo que a mãe estava certa, aí a mãe tenta matar ela, e ela responde matando ela de volta. Por fim, a casa de Carrie cai de maneira épica com tudo a sua volta.



Bastidores da produção e minha leitura do filme




Carrie foi o primeiro romance de Stephen King a ser publicado e o primeiro a ser adaptado para um longa-metragem. A lente do filme que foi filmada a cena do baile foi especial, usando uma lente dupla para manter o foco em diferentes partes, dividindo a tela na mesma cena. O filme foi filmado em cinquenta dias, no verão de 1976, principalmente em Los Angeles, com parte do trabalho feito nos estúdios em Culver. O feminismo pode parecer perdido depois da década de 1960, e também pudera, se olharmos a estrutura de hierarquia de uma escola americana comum, principalmente nessa época, vemos uma opulência de uma cultura escolar construída em torno de uma falsa meritocracia do carisma e do talento. 


Quando a professora Collins pune as garotas, principalmente Chris (Nancy Allen), que se recusa a fazer todo o castigo físico e fica sem ingressos para o baile, como a "rainha" foi destronada pelo castigo, ela depois arma uma vingança para Carrie, como se ela fosse culpada pelo castigo aplicado pela professora. O que acontece é que ela as fortalece enquanto grupo  com características fascistas(próprias e regionais) próprias do próprio universo feminino. 


É a morte do feminismo enquanto sororidade, para dar lugar ao feminismo enquanto identidade exclusora. O castigo dado pela professora não apenas aumenta o ódio delas em relação a "estranha", que não estava nem lá, como também fortalece a união do grupo enquanto corpo homogêneo. Quando tornamos a atividade em grupo, ou a própria educação como um processo de punição, nada de bom pode sair dessa interação. A ideia de tratar conflitos escolares como "superação" por parte de quem sofre perseguição é uma ideia que tem como fonte os discursos como de treinadores emocionais, como a professora de educação física no filme. 


Sendo evidenciado no filme de maneira brilhante, quando vemos que a professora participa da cultura do bullying. Em 2002, a autora Rosalind Wiseman  em seu trabalho Queem Bees and Wannabees define as maiores personagens dentro da escala de hierarquia feminina. Descrevendo a personagem de Chris como a abelha rainha, que é a mais carismática de todas, Norma representa a "sidekick" (a segunda amiga, a auxiliar), uma garota próxima que é mais quieta e influenciável. Já Sue Torn fica dividida entre ser boa e má, fazer a coisa certa ou a coisa errada. Já Carrie ocupa a personagem do "alvo", a vítima perfeita na pirâmide social. 


situação foi de caos completo e depois os alunos que cometeram as traquinagens é que foram considerados os loucos e punidos de maneira suave, pois imaginamos que a história foi contada e recontada em detalhes sórdidos. Foram de "normais" a maluquinhos. Ou seja, acabaram com a vida de Carrie, mas acabaram com a vida deles juntos, gerando um trauma coletivo.  A herança aqui retomada é a inquisição e o linchamento das massas irascíveis, a lembrança é a própria mãe que lembra que são como "bruxas". O filme demonstra com clareza o lugar de banalidade do espírito de grupo, ao Carrie utilizar seus pensamentos para jogar água e trancar o ginásio. 




A agitação e o desespero depois da clássica cena do balde de sangue demonstram esse carácter imprevisível de uma turba como a turba de um ensino médio.  A mãe de Carrie não acredita em nada, e parece ter certeza do carácter de "bruxa" que teriam, ela também fica repetindo que "todos vão rir de você" para Carrie. Mas a reflexão é que a senhora Margaret White é uma religiosa ferrenha, qual preconceito real teria uma pessoa assim na sociedade real? Essa talvez seja uma das coisas mal pensadas na história, talvez usando isso para brincar que estabelecidos e outsiders mudam o tempo todo. Afinal, os cristãos já foram um grupo perseguido de verdade no passado. 




A câmera feita por De Palma passa pelo vestiário da escola de ensino médio, através de chuveiros, e demonstração de meninas em estado de nudez ou semi nudez. No livro é descrito com certo moralismo, dizendo parecer uma "casa de banho egípcia". No filme, o papel da cena é fundamental. Para George Lucas, é a principal cena colocada logo de cara e não salva como "prêmio", isso é , como contado pelo editor Paul Hirsch, ao colocar a cena na primeira parte do filme, essa cena carrega um carácter de voyeurismo que é a chave para o sucesso do filme, dando uma sensação de "invasão de privacidade" como sentida por Carrie no filme. 


Além disso, a reflexão social é que Carrie demonstra a última geração que ligou para a importância dos grandes rituais de de iniciação dos jovens, principalmente das garotas, retoma o debate clássico, do que seria feminismo, afinal, os corpos das pessoas, no caso dos personagens, são metáforas do políticos, logo são corpos políticos. A atitude de escolher um rei e rainha da escola é como no ritual, quando alguém é escolhido para ser o centro, pensamos ser uma honra, quando na verdade pode ser capcioso e estar de centro das atenções ser a própria humilhação em si. Como foi mostrado também por Michel Foucault em A Sociedade Punitiva. O filósofo francês também acreditava que o sistema escolar inteiro era uma espécie de poder judiciário. A todo momento se pune, e a todo momento se recompensa.



O exemplo daqui é perfeito para essa ideia. O punido, o mal visto, o castigado, o inimigo público, o "alvo", nunca está excluído, pois ele é sempre parte de um sistema obrigatório que ele não pode não fazer parte, nesse caso, o próprio sistema escolar. Ao ser colocada de rainha, ou ao alguém ser popular, será que a metáfora permanece a mesma? Será que promover os "melhores" não é para colocá-los de centro para serem humilhados? Quando Carrie ganha a "coroa" das suas amigas, todos na escola estavam também a condenando, ou foi ideia de poucos?


As atrizes acharam as cenas de nudez difíceis para elas foram traumática, mas tiveram bom efeito no sentido artístico do filme, porque exigiu uma certa naturalidade e inocência que não havia sobre o ato de nudez antes do cinema. Mostrar a nudez como uma marca de vergonha e não orgulho estético ou tesão sexual é a novidade do filme, quando a nudez é mostrada como suja.  A atriz que interpretava Chris (Nancy Allen) disse que as garotas só entenderam o resultado artística através da coragem de Sissy Spacek, que por ter a cena de nudez mais forte acabou inspirando as outras atrizes que se sentiram incomodadas com tanta nudez. 


Simone de Beauvoir escreveu "O Segundo Sexo" iniciando uma ideia de sociedade existencialista, onde o entendimento do que seria "ser mulher" não seria orgânico e natural, mas muito mais próximo possível das formas de subordinação social obrigatória e penalizante. Para Simone, as mulheres não nasceriam mulheres, se tornariam. Infelizmente, entenderam errada a profunda mensagem de Simone de Beauvoir, de que não é que é um 'privilégio', do estilo, "olha, que lindo, virou mocinha", alguns traços sórdidos e experiências que são extremamente artificiais e traumatizantes são ostentadas como políticas públicas, rituais de iniciação, como formas de "tiranias da intimidade", como obrigar um aluno a falar, a participar, ou mesmo negar a participação, como a professora fez ao excluir Carrie da atividade de "punição" das outras alunas. 


Também é visto isso na parte do baile, onde temos o ritual que seria em outras sociedades também, como uma forma de celebração, coroação, como se fosse família real, ou mesmo a estrutura de elites convencional. O rei e a rainha do baile seriam essa metáfora da participação em eventos de extensão na escola, ou a própria cultura da celebridade introduzido do cotidiano do cidadão americano da geração posterior a geração dos antigos baby boomers. Carrie, A Estranha pode ser considerado uma lição de como fazer filmes sobre jovens para além apenas do "besteirol" de costume. 


Disponível na Amazon, Netflix


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