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Um Toque de Sedução (1988): O arquétipo do bodyguy nos filmes e a herança escravista da elite sulista dos EUA

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Filme que estrela Sherilyn Fenn e Richard Tyson nos papéis de April Delongpre e Perry Tyson. A trama conta a história de uma garota sulista filha de uma tradicional família democrata do sul dos Estados Unidos em seus últimos dias de preparativos para o seu casamento. Dirigido pelo diretor de cinema, escritor, ator e produtor americano Zalman King, que sempre teve seus filmes conhecidos por incorporar a sexualidade como linguagem, o filme foi muito mal julgado pela maior parte dos críticos. Indo na contramão, nesse artigo vamos provar porquê Um Toque de Sedução é um cult moderno e suas críticas negativas foram baseadas em puro preconceito


Procurando a opinião da crítica em geral, é um filme bem odiado. Um dos críticos chegou a dizer que se tivesse 15 anos ia adorar o filme. Porém teria que observar o carácter de trash que o filme ganhou, como se fosse apenas um filme mais adulto. Havendo até mesmo uma sequência espiritual mantendo apenas a atriz Louise Fletcher que fazia a avó de April, em um filme de 1995.


O filme foi filmado no retiro da famosa atriz, Tippi Hedren, de "Os Pássaros". Ela emprestou sua propriedade, Shambala Animal Preserve, para Zalman King fazer sua filmagem. Famoso por fazer filmes com temáticas cults e ligadas a sexualidade, Zalman King também participou de um episódio da série de tv feita por Hitchcock.




April ganha o concurso da "Phi Gamma Kappa" uma espécie de fraternidade da elite, ela é apresentada na festa como noiva de Chad Douglas Fairchild. Essas festas de debutantes de seitas americanas da elite são como clubes seletos que ordenam carreiras profissionais e universitárias. Até aqui April fazia tudo como era esperado dela. 



Passando para a crítica especializada como um filme "zoado", o filme esconde uma crítica direta ao modelo de social democracia das elites sulistas, sendo referenciada o carácter histórico dos modos de vida dos personagens quase como se todos já soubessem sobre o que é a trama. 




O escondido no cinema pode ser remetido a questão daquilo que é oculto, como a sensação de ver alguém tomando banho em um filme. O fato dela abrir os azulejos e observar seu "desejo oculto", é direto mas também puramente cinematográfico. Como se uma uma metáfora de que ela está finalmente aberta ao mundo da sexualidade, mas com medo e por isso só observa. É interessante a construção voyerista de vermos ela no banho, enquanto ela mesma observa. 

Ao mesmo tempo que April está para se casar, ela conhece no Carnival (parque de diversões) Perry, um dos membros do circo que está passando pela cidade.  




Com certeza na cena mais marcante do filme, Perry e April estão juntos em sua despedida de solteira, mostra o seu noivo na sua própria festa de despedida de solteira. Na cena, a mais explícita do filme, eles transam ao mesmo tempo que a cena corta para Chad, o noivo, que está na sua festa observando uma stripper vestida de policial, enquanto seus familiares em volta aprovam. Como se fosse um ritual antropológico Chad vive uma fantasia projetada, enquanto o "real" já aconteceu sem consentimento ou conhecimento de ninguém.


O título do filme em português foi transformado em algo meio "cineprive", sugerindo já se tratar apenas do casal. Enquanto o título em inglês é uma referência as terras da família de April e a fazenda, "two moon juction", propriedade da família e da avó que fica no Alabama (local tradicionalmente conservador). Ela é obrigada a casar com Chad, herdeiro e aluno de Harvard, para ganhar a propriedade como herança. Dias antes do casamento, seu noivo está comprando uma casa em Tuscaloosa para os dois, Perry aparece em sua casa. 



Todo o filme é uma brincadeira de gênero de filme de baixo orçamento e que utilizam fantasias como objetos universais de entendimento humano. 


Filmes como Henry & June (1990), At Play in the Fields of the Lord (1991), The Piano (1993), Legends of the Fall (1994), I.Q. (1994), The Bridges of Madison County (1995), Antonia’s Line (1995), Box of Moonlight (1996), Lawn Dogs (1997), Titanic (1997), The Horse Whisperer (1998), The End of the Affair (1999), Fight Club (1999), Enemy at the Gates (2001), Sweet Home Alabama (2002), The Notebook (2004), Asylum (2005), Fur: An Imaginary Portrait of Diane Arbus (2006), são filmes inspirados em Um Toque de Sedução e que demonstram o mesmo arquétipo de Lady Chatterley: do homem objetificado, uma versão masculina da "pixie girl". 


Em certa parte do filme conversando com o noivo Chad, ela diz que seu desejo é fugir para um ilha, sobreviver da caçada de ervas e comer mangas e mamão papaia, mostrando sua aparente falta de vínculo com a tradição, mas Chad nem capta a mensagem. 




Quero dizer, April não vai começar uma revolução marxista, toda a sua rebeldia é uma relação de fantasia com o bodyguy, que como ela diz no filme, como uma mantra, toda sua utilidade estaria no meio de suas pernas, esse é o carácter final de objetificação masculina do filme. 



Aqui entendemos que o casamento não é opção, é apenas uma reflexão do carácter obrigatório da herança e da permanência da tradição enquanto forma de papeis sociais na História. O tom do filme inicial, com as crianças brincando, me remete a pinturas como as de Diego Velázquez, em "As meninas".  




Até ela conhecer Perry, que está na cidade com o circo, é que finalmente ela conhece um cenário ao estilo Fellini de pano de fundo; um mundo mais "real", encenado no filme pelo "bizarro" e pelo "estranho". 


Isso favorece a visão do arquétipo do bodyguy enquanto alguém que possui o estilo nômade ligado aos "outros", como anões, e outros arquétipos clássicos do circo. Mas aqui eles parecem querer simbolizar o carácter de fazer filmes, da arte, em uma forma de remeter a estética de Fellini, por exemplo, que abordava sempre o circo nos seus filmes como metáfora do cinema. 


Ou o elemento do cachorro que simboliza também o naturalismo impressionista, algo mais típico ao cinema francês. Seu estilo é clichê em relação ao tipo americano de vivência. Em certa altura, Perry diz que não tem nada além de uma bike, um caminhão e uma caixa de correio em Clearwater, Florida. 






Contexto histórico e referências literárias: O Amante da Lady Chatterley


O livro de D. H. Lawrence, O amante da Lady Chatterley, não é exatamente a história que o filme quer aborda, sobre a vida sexual de mulheres da elite e suas experiências maiores do que as dos homens, uma mudança nos clichês de novelas do século XIX, para os tipos do século XXI, da repressão sexual vitoriana vista na figura de mães virginais, o arquétipo muda para a nova mulher que obtém prazer no sexo, uma mudança tremenda. Entretanto, os arquétipos e dinâmicas interacionais entre os personagens nos remetem em muito a esse clássico da literatura.


Lady Constance Chatterley se casou em 1917 com Clifford Chatterley, quando ele veio passar um mês de folga do exército em casa, com um mês de lua-de-mel. O livro faz uma metáfora da Revolução Industrial, um dos motes centrais da trama. Sendo parecida com a intenção do filme ao indicar mudanças em sistemas econômicos e seus impactos em dinâmicas entre classes sociais. 


Voltando para Flandres, depois foi embarcado de volta em cadeiras de rodas, aparece a figura do amante, apenas como uma forma de "diversão", sem subversão real de nenhuma das partes. É desse livro que surge o arquétipo do bodyguy, que Titanic roubou de Um Toque de Sedução.  


Se é apenas a estrutura que mantém April uma "princesa" do Alabama, pensamos que o romance original tem a metáfora da mudança de costumes mais correta para comparar, onde também esses "dever ser" são quebrados em nome dos tempos modernos, como metáfora de mudança dos padrões sociais. É apenas na sexualidade que grande parte da elite exorciza a noção de permanência da tradição. Todos observam como se a vida fosse orquestrada nos mínimos detalhes com aval de todos. 



Em uma cena que é possível ver o início da utilização do arquétipo do "bodyguy" ao mostrar Perry como operador dos brinquedos e sem camisa, uma referência quase literária de objetificação masculina. Embora não seja a exata adaptação do livro clássico que se passa no contexto da Segunda Guerra, é uma visão em paralelo com alguns arquétipos literários desse tipo de gênero narrativo. A novela O amante da Lady Chatterley é de uma revolução total dos costumes em um livro publicado em 1928. 

 

Se excluirmos todas as cenas mais picantes do filme, que é o próprio gênero em si, temos um filme sobre o conservadorismo da elite americana, em especial a elite democrata e social democrata. Em uma das cenas, April diz para Perry que seu antepassado era um pirata, e que atacava navios com escravos. Em uma das cenas, um dos colegas do circo chama Perry e "índio" como referência a ele ser sem raízes e errático. 


Apenas uma conversa trivial entre dois amantes, mas significa muito mais do que isso. Perry em resposta diz que quando esses piratas ingleses chegaram na América inventaram a democracia e escravizaram pessoas em suas fazendas,  momento que ele revela saber as origens da família de April. 




Em 1845 através da Bill Aberdeen ( Slave Trade Supression Act)  autorizou a marinha inglesa de afundar navios que transportavam como se fossem piratas. Também foi uma medida conhecida como um pilar de nacionalismo insipiente inglês da época. 


A referência de que a família de April era ligada ao partido democrata é bem forte, pois reconhecemos a família de April como uma família escravocrata de carterinha, com toda a semiótica, ligação com clubes, fraternidade, bolsas de faculdade, casamentos arranjados. Uma sociedade na moda nas roupas e engessada nos costumes.


Em certa certa, a avó de April nos informa que  sua família é composta por linhagem de poderosos políticos, como senadores e presidentes, tanto republicanos, como Gerald Ford (através de sua esposa Betty Ford), quanto de democratas como o Presidente Wilson, Jimmi Carter, Gen. Patton, Lyndon Johnson, e associados de Pinochet também! Uma das melhores cena do filme com certeza. 


Enfim, a família de April é a metáfora de que entre democratas e republicanos, o que permanência é a estirpe da elite nos negócios, agendas e encontros; a etiqueta e os costumes tradicionais, como arranjar casamentos. 


Em uma das cenas, a avó de April desconfia da insegurança da neta em se casar e pede para o chefe de polícia local Xerife Earl Hawkins (Burt Ives) para prender Perry mesmo sem motivo. Então é revelado que avó de April pagava a faculdade do filho do policial. Dessa forma, observamos o problema da estrutura fixa da sociedade americana. Quem estuda são os filhos de policias, através de uma bolsa dada pela elite para a qualquer momento fazer o que quiser em um esquema miliciano. Esse é o ponto alto do filme demonstrando a cultura de poder local de famílias da elite que "mandam" em certos territórios. Através do pedido da avó de April, o xerife local prende Perry e o ameaça, além de o colocar para fazer serviços "voluntários". 




Os elementos freyrerianos do filme, como a cordialidade e a miscigenação, falam por si só. Como o fato de todos os ricos da elite se vestirem com roupas brancas, a empregada negra que possuía joias e falava sobre a riqueza da família, até mesmo o elemento da avó simbolizam uma referência ao processo de dominação de famílias através do casamento. Depois das ameaças, no fim do filme, a avó dela pede para matar Perry, ele tenta mas não consegue.  





No final mesmo do filme, vemos Perry entrar em seu quarto de hotel, e a cena é de April em seu chuveiro. Talvez uma referência a literatura, no sentido de que não acabou com o casamento com Chad, como no livro O amante da Lady Chatterley. 


Como existe um sistema fechado em si de repetição da tradição, existe igualmente a completa falta de respeito com esses valores, e isso pode vim de qualquer um. Quando April surpreende ele no chuveiro, faz isso já imitando o que ele fez na casa dela. O filme termina com um zoom na aliança, comprovando que ela casou para manter as aparência e a propriedade mas ficará com Perry como amante.




Leitura do filme


De maneira geral, é um pouco triste e pouco realista o final do filme, o que provavelmente explica a chuva de críticas que ele sofreu na época e sofre até hoje na internet. A maior parte das criticas se centra em dizer o como os personagens e situações são pouco críveis, e por isso cômicos. Gostaria de apresentar alguns argumentos a seguir que fazem de Two Moon Junction um cult moderno e mal compreendido. 


Primeiro, acredito que grande parte das críticas ao filme parte do modelo de análises e críticas cinematográficas que há por aí, principalmente na questão de dar notas aos filmes. Muitas vezes, os críticos apontam mil fatores interessantes em um filme, mas no final temendo ele mesmo ser criticado taca um 3 na nota do filme. Como reais cinéfilos apaixonados por cinema, nesse blog somos contra ranquear os filmes, afinal existem muitos filmes ruins que divertem e dão boas histórias para contar. 


Só que Um Toque de Sedução nem ruim é, apenas explícito demais, sexual, algo que a crítica repudia nos filmes assim como a ideologia. Claro, sua construção é simplória e cheia de arquétipos para dar conta das brechas da história. Entretanto, essa estrutura simples do filme dá um certo charme a narrativa, pois tudo pode ser alegórico.


Vários planos do filme são ricos em linguagem. Por exemplo, na cena onde ela procura Perry no circo, a câmera sustenta o mesmo plano através do caminham até vermos a garota dançando e Perry jogado admirando, e nesse momento o sorriso de April se desfaz. 




A cena do diálogo de April e Perry no café da manhã discutindo História e o sistema econômico do plantation, baseado na escravidão e nas lavouras do Sul, mas logo em seguida o policial pega Perry e o bota para trabalhar a força, o filme brilha. Aqui tempos a encenação perfeita da sinhazinha, filha do fazendeiro, que se apaixona pelo escravo, mesmo que Perry não seja negro. 


Pode parecer algo a principio bobo, mas essa mensagem de miscigenação irrita elites conservadoras e racistas, à esquerda e à direita. Entretanto, as metáforas sexuais de Zalman estão falando e representando a História e a primeira possibilidade de "liberdade" para mulheres do Sul dos Estados Unidos. 


Não estamos falando de Nova York, mas sim do Estados Unidos rural, do interior escravista. Toda a opressão ali sempre foi assumida: anti-negros, anti-comunistas e anti-feministas. Logo ali, as mulheres sempre tiveram que se acomodar ao conservadorismo e dar um "jeitinho" para ter liberdade. É daí que vem o arquétipo do body guy como um experiência única que ela terá para depois se casar e viver uma vida conservadora. Só que no caso de April, não é o que acontece, fugindo do arquétipo geral do gênero.


Daí a mensagem interessante do filme: para April sexo é marxismo. Ter a liberdade de fazer o que quer e com quem quiser na sua perspectiva representam verdadeiros avanços históricos, já que todo aquele cenário de exploração e conservadorismo gerado pelo sistema escravista, estaria definhando de vez e se convertendo. 





A mensagem pode ser um pouco conciliadora demais, entretanto ela é alegórica, filosófica, onde a remissão sexual serve como reparação pela dívida histórica da escravidão. Faz todo sentido se pensarmos o contexto da época de fim da Guerra Fria e a mensagem de conciliação que os Estados Unidos queria passar: o rompimento das barreiras do preconceito. 


Zalman tem um estilo sexualizado que para muitos é desconfortável, mas perto de Lars Von Trier, ele é leve. Em Um Toque de Sedução o erotismo funciona bem pois ele é colocado como metáfora da ideologia e da ruptura histórica de um sistema. Isso faz com que o estilo sexual do diretor ganhe um caráter teatral, uma vez o estilo explícito parece uma tentativa de teatralizar a submissão de April perante Perry; como se a atração dos dois fosse a própria História em si. Um filme para quem for menos rígido e queira se divertir.








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