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Garrincha, Alegria do Povo (1962): Documentário ao estilo do Cinema Novo inaugurou a linguagem da reportagem e cobertura esportiva no Brasil


Garrincha, Alegria do Povo é um longa documental do diretor Joaquim Pedro de Andrade. Inspirado em muito na estética e técnicas do movimento do Cinema Novo,  o filme tem produção de Armando Nogueira e Luiz Carlos Barreto, fotografia de Mário Carneiro, e foi distribuído pela Embrafilmes. Descrevendo o universo do futebol no Brasil como parte da constituição da própria cotidianidade, focando na identidade e na biografia do rei das pernas tortas, cujo nome de batismo era Manuel dos Santos. O filme foi realizado durante o auge da carreira do jogador, consagrado no Botafogo de Futebol e Regatas, onde eternizou a camisa número 7, e também como um dos mais importantes atletas da Seleção Brasileira de Futebol campeã mundial nas Copas de 1958 e 1962, auge dos governos desenvolvimentistas de JK e Jango. O filme foi escolhido para a 13ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 1963


Em homenagem a Antônio "Ton" Carlos Guedes, meu falecido pai e grande torcedor do Botafogo. Sem ele não seria botafoguense, fã do Garrincha e do glorioso como sou. 


Filho de uma família muito humilde oriunda de Minas Gerais, em Pau Grande, sua família cresceu no terreno de uma fábrica de tecidos, sua vida não mudou em termos de hábito com a fama, sendo pai de 14 crianças. Apesar disso, era difícil ser livre com tantos interesses para além de ser apenas a diversão do povo. Contando com depoimentos, imagens de dribles épicos de Mané Garrincha, o documentário é uma aula de demonstração objetivo do valor constituinte do futebol no seio da cultura popular nacional. Com a música Brasil Glorioso interpretada pela escola de samba, Portela.


A importância de Garrincha vai para além de seu valor para o glorioso ou como jogador com história única, que transformou uma deficiência em vantagem através de seu drible matador que confundia a defesa de qualquer time. 


Segundo o próprio Joaquim Pedro de Andrade, em entrevista da época recuperada pelo Estadão, que se vê na tela é o Brasil filtrado pela beleza cinematográfica, em seu sentido amplo. Diz ele sobre o filme:


“‘Garrincha" procura dar, através de uma linha principalmente objetiva de uma estrutura dramática, a verdadeira dimensão psicológica e sociológica desse jogo da vida brasileira. O filme é concebido como espetáculo, procura dirigir as reações da plateia, sugerir conclusões, atrair raciocínio e explicar as possibilidades estéticas.” 


Joaquim Pedro começou a fazer cinema no final da década de 1950, mas Garrincha foi seu primeiro longa. Ele conta, que fez "o curso de física na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, onde comecei a transar com cinema através do cineclube da escola (…) formávamos um grupo do qual vários se profissionalizaram mais tarde em cinema: Paulo Cesar Sarraceni, Marco Farias, Saulo Pereira de Melo, Leon Hirszman e outros. Além de projetar filmes e de editar um boletim informativo, começamos a filmar mesmo, primeiro em 16 mm, cinema mudo, filmes de ficção, em geral curtas. Quase todos os filmes fracassaram, pararam no copião, porque o resultado técnico era desastroso”. 


Depois de realizar três documentários curtas, em 1959, o último deles Couro de Gato, seguimento do filme coletivo 5 Vezes Favela, ele seguiu para a França, como bolsista de cinema do governo francês e da Fundação Rockefeller em 1961 e 1962. Lá fez estágios no IDHEC – Institut des Hautes Etudes Cinématographiques, na Cinemateca Francesa; também estagiou na indústria cinematográfica francesa com o produtor Sacha Gordini. Depois, na Slade School of Arts em Londres, com Thorold Dickinson; e com os irmãos Albert e David Maysles, em Nova York, para treinamento em técnicas de cinema direto. 


O documentário foi traduzido para o inglês com nome horrível: "Garrincha: The Hero of the Jungle" (Garrincha, o Herói da Selva), o que é muito racista. Demonstra como existe uma forma camuflada de racismo da descrição dos heróis do futebol, principalmente se pensarmos como o esporte brasileiro é referência em todo o mundo por conta da nossa tradição em Copas do Mundo. 


Muitos gringos acham que, ao viajar para o Brasil, vão ver onça no Rio de Janeiro ou que brasileiro fala espanhol tua sociedade normalizada Garrincha era um caso de sucesso dos estranhos, dos deficientes. Alguém que poderia facilmente ter tido uma vida de privações, mas que teve o talento ressaltado exatamente por conta dessa diferença em sua estrutura óssea. Ou seja, o defeito era uma benção.




Muito aconteceu com o Brasil desde a chegada do primeiro homem inglês no século XIX, chamado Charles Miller que trouxe uma bola de futebol para o Brasil pela primeira vez com o objetivo de ensinar o esporte. Um esporte que essencialmente lembra a clássica estrutura do trabalho e da fábrica, como também do próprio cotidiano coberto pela mídia. Alguns textos estrangeiros enfatizam o carácter de "lenda perdida" e de biografia regional que Garrincha conquistou, sem o tipo de assessoria midiática que Pelé tinha. A ideia do "beautiful game" (jogo bonito), tipicamente conhecida por ser a forma de jogar do futebol brasileiro da época. 



Em termos de fontes sobre sua história para além do filme clássico de 1962, foi lançada uma biografia em 1995 escrita por Ruy Castro, “Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha”. O tipo de narrativa romântica freyriana que associa o temperamento do atleta ao fato de ter "encentrais étnicos", no caso de Garrincha, ele era descendente de índios, é exemplo dessa forma de clichê que concerne o gênero de cobertura jornalística no esporte há muito tempo. Garrincha se formou como lenda através de jogar nos campos de várzea, onde garantia um lugar no time, mesmo que não fosse o "dono da bola", por seu talento poderia jogar em qualquer pelada e assim ficou conhecido. 




O próprio jornalista Mário Filho, que dá nome ao Maracanã, pintava as descrições esportivas sobre Garrincha da mesma maneira romanceada. Era toda uma época de flerte com o cotidiano, com a modernidade e com uma ideia de progresso insipiente. 


A implementação da carteira de trabalho trouxe para além de direitos trabalhistas uma cultura de acompanhar o futebol pelo rádio, como também de ir aos estádios para acompanhar seu time. O próprio Garrincha havia sido criado em um contexto patronal e fabril, em uma fábrica de tecidos e que fazia girar a economia da pequena cidade de Pau Grande em torno dessa fábrica. Depois de ganhar a Copa, os donos da Fábrica deram a casa da fábrica onde a família de Garrincha morava para ele como prémio. A América Fabril era uma fábrica têxtil de donos ingleses.  




Pensando como o Brasil tinha mudado em poucos anos, também mudaram os costumes dos jogadores. Por exemplo, em um pouco espaço de tempo o Brasil mudou de moeda umas 9 vezes. 


A primeira vez que Garrincha foi contratado pelo Botafogo em 1953 a moeda ainda era o "réis", no seu último jogo em 1982, era já o cruzeiro.


Quando o Brasil ganhou a Copa em 1958 na Suécia, o povo comemorou muito. Dessa vez o título mundial não fugiu do Brasil como antes havia em 1950, quando perdemos no Maracanã para o Uruguai. Em 1958 o grito preso na garganta de antes e o fantasma de 1950 voltou quando a Suécia abriu um gol em cima do Brasil. Tudo que se falava sobre o nosso tipo de futebol era que nós perderíamos a cabeça se o adversário fizesse gol. Mas Garrincha salvou a perdida e garantiu o título. O cara regional ganhara finalmente o mundo.



 

A ideia de cotidiano, de trabalho e de vida urbana, das bancas de jornal, do futebol jogado na lama e na várzea, a ideia da expectativa coletiva que espera e escuta no rádio o resultado do jogo. Nada mais nacional, nada mais nosso, até mais que Pelé, alguns diriam. 




Podemos aqui tentar entender o que significou Mané Garrincha como fenômeno nacional e também regional, como um crack único, com uma personalidade única, assim como Pelé também foi para o Brasil e para o Santos. Já Garrincha  nos remete a uma época nos anos de 1960 onde a principal rivalidade do futebol brasileiro estava em torno de Santos x Botafogo, era um clássico dos clássicos.  


Temáticas como a da alienação e consciência podem ser entendidos no filme ao compreendermos a força do futebol junto com as massas, isso significa em termos de linguagem levar a sério a força política das massas em si. 




Por exemplo, o historiador E. P. Thompson em Costumes em Comum ao comentar a tradição dos trabalhadores em sindicatos, abordava o carácter místico e iconográfico das pautas coletivas dos trabalhadores ingleses. Garrincha simbolizava uma cara de Brasil que era esperançoso com o futuro, ele tirou foto com Juscelino Kubitschek e também Jango. e também Jango, provando que era um jogador com viés mais de esquerda. 



O filme mostra o universo do futebol como cercado de elementos místico. Envolvendo santinhos, alguns com mensagens pró sindicatos, programas de assistência direta, que eram sustentados em cima desse "costume em comum" que os trabalhadores possuíam. Esse universo de misticismo não é demonstrado como algo exclusivo dos pobres, como uma espécie de "ópio do povo", mas sim algo cultural que ultrapassa as classes, mostrando o próprio JK apreensivo e pedindo silêncio para ouvir o jogo. Logo depois, os prisioneiros ouvindo o jogo atrás das grades.


O raccord aqui é muito intelectual e dá sentido a montagem. Como ex-policial que se tornou presidente, é como se ao mostrar JK e os prisioneiros, estivesse recobrando esse universo sociológico por trás das imagens estáticas. Como se todo o misticismo ganhasse uma proporção de um universo cósmico, kármico, que a política se confunde e se inspira.  




Da mesma maneira, esse documentário trabalha a importância do futebol, quase como "uma boa alienação", como na cena onde Garrincha dança com as filhas "Hit the Road", de Ray Charles. Essa cena reflete muito o que era o Brasil logo em um momento anterior a tomada de poder pela Ditadura golpista. Ou seja, Garrincha é a lembrança da esperança nacional desenvolvimento com caráter popular.  




O estilo técnico, neutro, militar, de elite, educado de Pelé, contrastavam com o estilo popular, humilde, emocional e trabalhador que possuía Garrincha. A diferença ideológica e cultural entre os dois suscita debates sobre perfil e ideologia dos jogadores no futebol até hoje, sendo um dos debates mais recorrentes e intensos nas mesas de bar e rodinhas de debate de futebol até hoje quem foi melhor, Pelé ou Garrincha. Mas para além disso, na seleção, foi sem dúvida um lugar onde os dois brilharam juntos, mostrando um certo traço de visão em comum e sentido de nacionalidade que serviam de motor e diferencial nas partidas mais decisivas.


A técnica, mas principalmente a organização e espacial das jogadas e do tempo de bola, faziam com que os adversários ficassem confusos com as "possibilidades", com o inesperado, de cada drible. Daí o motivo das jogadas dos brasileiros soarem demasiado zombeteiras e maldosas para os jogadores de outros países, que de maneira geral ainda entendiam a vitória no futebol, como sorte ou outros fatores, e não como influenciada pela técnica dos jogadores em campo. Na verdade, os brasileiros estavam criando o futebol moderno, aprendido depois por todos e praticado nas ligas de maior renome de hoje, como a Champions League. A originalidade em torno disso tem muito do caráter do Brasil: uma organização técnica e racional da cultura.




Mesmo com o carácter de inauguração único do filme que serviu como modelo para todo um nicho específico de jornalismo, o filme de  Joaquim Pedro de Andrade é completamente mal estudado nas pós-graduações, artigos e na academia em geral. Um dos trabalhos se referiu ao filme como "de pernas tortas" já no título. Outro artigo mencionava que seria um debate sobre "profissionalismo e amadorismo no futebol", chega a doer os olhos para quem entendeu a técnica magistral do filme.




Garrincha, Alegria do Povo tinha a intenção demonstrar uma trajetória do herói, parecida com aquela do Joseph Campbell. Na verdade, é um consenso entre os especialistas e comentaristas de futebol de hoje, é que a profissionalização do esporte era exatamente aquilo que acabou com o futebol enquanto cultura orgânica e paixão verdadeira e inocente do esporte e da juventude, o "futebol arte", e que suscita almas e corações e não apenas o lucro e o dinheiro, geralmente conquistado com a ida para um clube do exterior.


O final do filme dá um clima de "fechamento", de encerramento, que parece quase prever no clima do Golpe Militar de 64, em cenas montadas de Garrincha e a vitória da Copa, com Lacerda discursando ao som de sua banda de música da UDN, aberto apoiador do golpe. Entretanto, esse clima de fechamento é contrastado com a energia e movimento do povo, saindo do trem e se movimentando vigorosamente e não de maneira amórfica. 


A prova disso é que o futebol hoje em dia é completamente profissional em termos de contratos e financiamentos, e técnico em sentido dos melhores equipamentos, bola e tudo mais. Porém sem graça e sem público. Não há mais aquela paixão, aquele encontro ao fim do turno da fábrica que suscitava Garrincha no povo brasileiro. 


Disponível no Globoplay.



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