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Orfeu Negro e a visão estrangeira do carnaval brasileiro


      Orfeu Negro(1959), é o único filme “brasileiro” a ganhar o Oscar até hoje, mesmo que não seja considerado brasileiro. A co-produção retrata o Brasil, mesmo que esse retrato não seja tão fiel 


     Orfeu Negro(1959), também conhecido como Orfeu do Carnaval, possui uma das histórias mais interessantes da cinematografia brasileira. Sendo o único filme “brasileiro” a ganhar o Oscar até hoje. Digo “brasileiro” pois o filme é uma coprodução França, Brasil e Itália, sendo que o diretor do filme, Marcel Camus, era francês e todos sabem que geralmente filmes pertencem ao diretor. Mas o quê o filme apresenta é uma história sobre o carnaval brasileiro, filmado no Brasil e com atores brasileiros. Então o filme é brasileiro pois é sobre o Brasil e sua cultura, mas dirigido por um francês e produzido por três países diferentes, ou seja, uma confusão

          Primeiro de tudo, quero apresentar meu argumento de porque considero o filme brasileiro, começando pelo fato de quem escreveu a história contada no filme. O autor da peça que inspira o filme é ninguém menos que Vinícios de Moraes, famoso cantor e compositor brasileiro. A peça se chamava originalmente “Orfeu da Conceição”, uma adaptação da peça grega Orfeu, escrita em 1954 e tendo sua estreia em 1956. Ou seja, narrativa inicialmente havia sido elaborada como peça e escrita por um músico. Inclusive, a trilha sonora da peça foi escrita em parceria com ninguém menos que Antônio Carlos Jobim, o Tom, e lançada em formato de disco. A peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em setembro de 1956, com cenários de Oscar Niemeyer e encenada pelos atores do Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento.

       A ligação entre tantas figuras talentosas era a política. Tanto Vinícios de Moraes, como Niemeyer e Abdias são figuras carimbadas do antigo Partido Comunista Brasileiro, o PCB ou Partidão. Por isso o trabalho desses artistas era marcado por uma proposta estética de conscientização sobre a situação do povo brasileiro. Mas, menos por má intenção do que por uma leitura insuficiente das teorias marxistas, suas propostas artísticas não buscavam estimular o povo a se conscientizar enquanto grupo que era explorado pelo capitalismo e que deveriam se voltar coletivamente contra sua situação. A proposta artística acaba por ser calcada em uma noção que entende que o povo ainda é desinformado e ignorante para entender os preceitos da arte e cultura, e assim deve-se então inverter a pirâmide: informar para as elites sobre a situação dos pobres brasileiros, em busca de aumentar a empatia dos ricos com as classes populares, mesmo sem saber quais serão as consequências de tal movimento.

        Contexto explicado, vamos analisar a narrativa. O filme conta a história de amor entre Orfeu e Eurídice, assim como os desafios para que fiquem juntos. Orfeu é noivo de Mira, enquanto Eurídice, que é imigrante vinda do Nordeste que se estabeleceu na mesma favela que Orfeu, morre de vergonha de estar junto com Orfeu. Além disso, Eurídice é perseguida por um homem estranho e sem identidade, que busca matá-la. Com tantas adversidades para consolidar o romance, ambos bolam o plano de se encontrar no último dia do Carnaval para que possam consolidar o romance. Eles se encontram e curtem juntos o romance durante o Carnaval. Entretanto, voltando para favela depois de se divertirem na festa.




      Eurídice é encurralada pelo homem misterioso em situação trágica que acaba com a morte de Eurídice. Durante a quarta-feira de cinzas, Orfeu vai a uma sessão de uma religião de terra e Eurídice incorpora em uma senhora para mandá-lo um recado. Por curiosidade, essa cena do filme foi utilizada para o Lyric vídeo da música Afterlife, da banda Arcade Fire.




       Assim Orfeu decide roubar o corpo de Eurídice e levá-lo de volta a favela que morava. Sua noiva Mira ao ver a cena, se revolta contra Orfeu e taca uma pedra em sua direção, que o atinge na cabeça, Orfeu cai ribanceira a baixo para a morte, com o corpo da sua amada nos braços.




       Contada a história, gostaria de apresentar alguns problemas presentes na trama. Primeiro deles que, como observado anteriormente, há uma obvia ideia política de conscientização no filme. Mas ao abordar elementos da cultura popular no filme, se desvia a ideia de conscientização voltada para o “trabalhador” de sua situação de exploração, para focar no “pobre”. Isso desvia da ideia de conscientizar o povo e vai para conscientizar a elite sobre a situação dos pobres do Brasil, desviando da consciência de classes para falar da consciência nacional e cultural perdidas. Até serve para conscientizar o povo, mas dentro de uma mensagem moralista: a diversão ingênua do Carnaval e adultério levou-os a morte, e se os pobres não querem ter o mesmo fim devem controlar sua lascividade. Como vai dizer o pesquisador da Comunicação, Jesus Martin Barbero, no livro dos Meios as Mediações:

Entre o povo-tradição e o povo-raça não deixará de haver
no transcurso histórico laços e tramas que os aproximam e confundem,
mas de todo modo estes dois imaginários nos permitem diferenciar o
idealismo histórico, o historicismo que situa no passado a verdade do
presente, de um racismo-nacionalismo telúrico em sua negação da
história. E frente a estes dois imaginários, o uso romântico de peuple
_ de Hugo a Michelet - fala antes de tudo da outra face da sociedade
constituída. Campesinato e massas operárias formam o universo do
povo enquanto universo de sofrimento e de miséria - "a canalha é o
começo doloroso do povo", dirá Hugo -, esse reverso da sociedade
que a burguesia oculta e teme porque é a permanente ameaça que ao
assinalar o intolerável do presente indica o sentido do futuro(...)Assim como o interesse
pelo popular no princípio do século XIX racionaliza uma censura
política. _ idealiza-se o popular, suas canções, seus relatos, sua
religiosidade, justo no momento em que o desenvolvimento do capitalismo
na forma do Estado nacional exige sua desaparição -, na
segunda metade do XIX a antropologia introduz-se como disciplina,
racionalizando e legitimando a espoliação colonialista.

      O povo é demonstrado de uma maneira “Disney”, onde nas cenas inicias são mostrados como felizes, ingênuos, alegres apesar da diversidade, onde algo como o “espírito do carnaval” contagia as pessoas e guia a narrativa de maneira emocional para seu desfecho. Entretanto, o que caracteriza a trama é a tragédia e a miséria final dos personagens, confundindo a tristeza da quarta-feira de cinzas do pós carnaval com a miséria do povo.

         
         É claro, tudo que um gringo pode ver do filme são cenas sobre o Brasil e sua cultura, encaixada em uma narrativa romântica e trágica baseada na jornada do herói. Aí vale a regra de ouro da exposição midiática: melhor ter alguma cobertura de sua cultura do que nenhuma. Mas tudo isso está cercado por uma lógica narrativa de cunho moral pouco embasada pelos fatos e mais pelas crenças.




       Para se ter noção, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, tem uma ligação pessoal com o filme. Era o filme favorito de sua mãe Ann. Um dia ele viu o filme com sua mãe e percebeu ali a diferença de visão racial que ele tinha, para a visão de sua mãe, que era branca:

Os brasileiros negros e mulatos cantavam e dançavam e tocavam violão como aves livres de plumagem colorida. Na metade do filme, decidi que havia visto o suficiente e virei para minha mãe para ver se ela estava pronta para ir embora. Mas seu rosto estava vidrado na tela. Naquele momento, senti-me como se tivesse olhado por uma janela para seu coração, o coração de sua juventude. Percebi que o retrato de negros infantilizados que eu via, o reverso da imagem dos selvagens do (escritor britânico Joseph) Conrad, foi o que minha mãe carregou com ela até o Havaí anos atrás, um reflexo da fantasia simplista que havia sido proibida para uma garota branca, de classe média do Kansas, a promessa de uma outra vida: quente, sensual, exótica, diferente.”

      Obama acreditava que o filme tira o mérito de pessoas como ele, que se esforçam, trabalham e estudam para fugir de ser apenas um arquétipo definido por sua raça. Ele estava certo, e essa visão sensual, exótica e tropical é bem similar aquilo que Edward Said chamou de exotismo do orientalismo Ocidental que tenta desqualificar países que consideram subalternos. A culpa disso, claro, é mais da produção do que dos autores da peça/disco, tanto que a versão de Orfeu de 1999, feita por Cacá Diegues e interpretada por Toni Garrido, é um bom filme, pois ele adaptou a história para os tempos modernos e tornou sua visão e linguagem mais reais. 

        A forma de expressão a poética no filme é totalmente diferente do teatro e da poesia, onde a expressividade vale enquanto sentido performático, e já no cinema estamos falando de uma brincadeira de montar. O que entra e saí de cena tem sentido político no sentido do filme. Logo, a ingenuidade que é um valor das peças valorizado por permitir a realização do teatro popular, não combina com a lógica do cinema do “combinado”, do “encenado”, onde a ingenuidade parece desrespeito ou desleixo com a inteligência do espectador. Mas até em sentido estético o filme também é problemático, já que apesar da bela fotografia o filme é mal montado e com uma direção com linguagem pobre. E isso faz com que sua visão estrangeirada seja renegada e recusando-o como filme brasileiro, fazendo com que se considere assim que o Brasil nunca ganhou um Oscar.




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