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As Pequenas Margaridas (1966): A primavera de Praga e a questão da liberdade perante a burocracia soviética e o hedonismo burguês capitalista



O filme acompanha as aventuras de Maria I e Maria II. Maria I, sai com um homem mais velho e aparentemente casado. Maria II aparece, dizendo que é irmã de Maria I, e aproveita para comer o máximo possível enquanto zomba do encontro e interfere em suas intenções amorosas. Ela pergunta quando o trem do homem está partindo, e o trio vai para a estação de trem. Maria I pega o trem com o homem antes de fugir e voltar para casa com Maria II, cena que representa bem o que ambas fazem várias vezes com os homens ao longo do filme. Daises, ou "As Pequenas Margaridas", é um filme de 1966 marcado por um contexto de disputas políticas, no qual a Tchecoslováquia se encontrava em uma nova perspectiva econômica, política, social e cultural, principalmente pelo fim da Segunda Guerra Mundial e a expansão da União Soviética para os países da Europa Oriental. O filme foi proibido na Tchecoslováquia, além de censurado e banido em uma série de países, desde seu lançamento inicial em 1966 até 1967 devido às suas representações e imagens de desperdício de comida, mas em 1966 o filme ganhou o Grande Prêmio no Festival de Cinema de Bergamo, na Itália.


Este artigo é uma versão revisada e ampliada de meu artigo sobre o filme, publicado originalmente no site Obvious, em 2016



As Marias vão a uma boate de Praga, onde ofuscam um show de dança no estilo dos anos 1920 e irritam os clientes com suas travessuras bêbadas. Maria II tenta o suicídio enchendo seu apartamento com gás, mas falha porque ela deixou a janela aberta. Marie I a repreende por desperdiçar gás. As Marias flertam com outro homem para fazer com que ele pague a refeição antes de se despedir do trem. Eles choram quando ele sai, mas depois caem na gargalhada.


Maria II vai ao apartamento de um homem que coleciona borboletas. Ele repetidamente declara seu amor por ela, mas ela apenas pergunta se há alguma comida por perto. As Marias roubam uma simpática atendente de banheiro. De volta ao apartamento, eles cortam vários alimentos fálicos enquanto o colecionador de borboletas declara seu amor por Maria II pelo telefone. As Marias tentam enviar um homem muito mais velho em um trem, ele desce, então eles embarcam no trem em movimento e acabam deixando-o na estação.


As Marias olham todos os nomes e números de telefone escritos nas paredes de seu apartamento e tentam escolher um homem para ligar. Um homem bate na porta por causa de Maria II, mas Maria I a provoca e ela não o deixa entrar. Em uma piscina, cada Maria diz à outra que não gosta mais dela.


Em seu apartamento, os Marias mergulham em uma banheira cheia de leite e filosofam sobre a vida e a morte, a existência e a não existência.




História por trás do filme


Vera Chytilová é mais conhecida no mundo por esse filme, que foi considerado na época altamente polêmico. Daisies é conhecida por seus personagens antipáticos, falta de uma narrativa contínua e estilo visual abrupto. Chytilová afirmou a imprensa que estruturou Daisies para “restringir o sentimento de envolvimento [do espectador] e conduzi-lo a uma compreensão da ideia ou filosofia subjacente”. 


O filme foi proibido na Tchecoslováquia em seu lançamento inicial em 1966 até 1967 devido às suas representações e imagens de desperdício de comida, mas em 1966 o filme ganhou o Grande Prêmio no Festival de Cinema de Bergamo, na Itália. Margaridas cimentou a carreira de Chytilová tanto nacional quanto internacionalmente. Depois de Daisies, o governo tornou muito difícil para Chytilová encontrar trabalho na Tchecoslováquia, embora ela nunca tenha sido oficialmente classificada como uma diretora na "lista negra". 




Seu filme seguinte, Ovoce stromů rajských jíme (Fruit of Paradise, 1969), foi seu último filme antes da invasão da União Soviética em 1968. Após a invasão da União Soviética, foi virtualmente impossível para Chytilová encontrar trabalho e ela recorreu à direção de comerciais sob o nome de seu marido, Jaroslav Kučera.




Leitura do filme 


Daises, ou "As Pequenas Margaridas", é um filme de 1966 marcado por um contexto de disputas políticas, no qual a Checoslováquia se encontrava em uma nova perspectiva econômica, política, social e cultural, principalmente pelo fim da Segunda Guerra Mundial e a expansão da União Soviética para os países da Europa Oriental. Este artigo é uma leitura possível, mas nunca total, sobre o filme, buscando estabelecer alguns aspectos sobre o período histórico e como esse influência amplamente no desenvolvimento de uma estética única, muito apropriada posteriormente por outros filmes e videoclipes.




Daises é um filme interessante. Vários fatores realmente chamam atenção para o filme, e não somente a estética do filme, em conjunto com sua fotografia e montagem criativa. Em contraposição, o filme explora, de forma sutil, o contexto histórico de sua produção: foi feito na Checoslováquia (hoje República Checa e Eslováquia) em 1966, quando ainda estava sob tutela da União Soviética. A União Soviética havia, com o partido comunista nacional, dado um golpe na Checoslováquia em 1948, no evento que ficou conhecido como “Golpe de Praga”. O país perde grande parte de seus direitos de liberdade econômica (que mais interessava à União Soviética) e de imprensa, e é justamente isso e a sociedade sob o poder comunista que é abordado no filme, principalmente em suas tão amplas alegorias.




O enredo, se interpretado de forma narrativa, é bem simples e se resume à história das duas irmãs: Maria I e Maria II. O filme começa com ambas sentadas, e uma mexe no nariz (remetendo a uma forma de normalização e padrão de comportamento behaviorista) e a outra toca um trompete (remetendo a censura), reclamando sobre não poderem fazer aquilo que gostam, e por isso decidem ser, como elas mesmo intitulam, “devassas”. 


Daí, as duas começam suas aventuras, que se consistem basicamente em romper com estereótipos de comportamento, onde se nota uma possível influência da teoria de Michel Foucault a cerca da normalização. Elas costumam sair com vários homens, e costumam não gostar de nenhum deles, ignorá-los e os levar sempre no final a estação de trem (que parece ser uma alegoria para uma passagem para o Ocidente capitalista), enfatizando uma visão reversa a cerca dos estereótipos machistas do cinema.


Suas aventuras e brincadeiras costumam transitar entre uma dinâmica de peripécias e morbidez. O roteiro é alegórico e segue bastante a proposta de “barato audiovisual” das novas ondas do cinema, afinal faz parte da Czech New Wave, sendo o que de fato importa, a noção de liberdade das meninas, apresentada principalmente pela mimeses. Seus atos de “transgressão” são mais uma metáfora do real do que de fato uma obra narrativa, com algum tipo de moral. 


No período da produção do filme (1966) a União Soviética havia passado por um relaxamento das formas de arte, principalmente em detrimento da morte de Stalin em 1953, cargo que foi logo em seguida ocupado por Kruschev. 


Kruschev representava uma linha diferente do partido bolchevique (ligado aos setores de energia), e já no início de seu governo (1956 em diante), o ministério de cinema passa ser uma secretária dentro do Ministério da Cultura Soviético. Muda-se as leis para filmes do país e cria-se o sindicato dos cineastas.


Novas formas de arte cinematográficas são assimiladas tanto dos novos países do Leste Europeu, que passavam a compor a União Soviética, quando de países da Europa como a França. Transformado a forma dos filmes, que eram marcados pela perspectiva do realismo soviético, passando principalmente pelo sentido vanguardista de cinema de Vertov, de planos gerais objetivos. Deleuze, afirma que “Vertov cria um agenciamento maquínico de imagens-movimento, um sistema de variação universal, um sistema em que todas as imagens variam umas em função das outras em todas as suas partes e em todas as suas faces.”


Quando ocorre essa mudança, um novo grupo de cineastas, como Tarkovsky, ganham espaço e formam um novo tipo de cinema, ligado mais a perspectiva do indivíduo e da natureza. Entretanto, em 1965, Kruschev deixa o governo, que é assumido por Brejnev. 


Brejnev fazia parte da linha do partido mais alinhada aos ideais de Stalin, e os direitos já concedidos começam a passar por tentativas de boicote. É nesse contexto que a diretora, Věra Chytilová, realizou o filme, que após o lançamento foi considerado pelas autoridades da Checoslováquia como “depicting the wanton”, que traduzindo seria algo como “devasso” (será que tal classificação se dá só por que era uma diretora e não um diretor?). A diretora foi proibida de trabalhar em seu próprio país até 1975. Entretanto, apesar das dificuldades, seu filme teve uma grande influência no sentido estético, na utilização dos cortes dinâmicos relacionados às montagem; tanto no que tange os protestos do fim dos anos de 1960, tanto como influenciaria fortemente a estética dos videoclipes musicais, posteriormente.


Daises representa a crítica da própria crítica. O protesto ao sistema revolucionário, que ao se instaurar no poder, age por sua vez de forma centralizadora, impondo normas, formas de agir e de pensar, e até mesmo formas de estilo cinematográfico, onde a falta de normalização se contrapõe justamente ao construtivismo formalista russo de Eisenstein, como o realismo vanguardismo realista soviético, onde não existe uma forma mais certa (ou normalizada) para ser humano, onde a arte pode ser vivida tanto em seu sentido kantiano (pela elevação espírito), quanto pelo princípio humano (empirista), sendo Daises justamente uma mistura dos dois: estética e mensagem.


Mesmo que seu posicionamento político e moral possa ser questionado, a ideia de vincular a trama, temática e arquétipos do cinema americano, com as técnicas de montagem edição do cinema soviético; moldaram os filmes modernos, principalmente a partir dos anos 90. Uma morena e uma loira que enganam os homens lembra perfeitamente, Os Homens Preferem As Loiras (1953), mas a montagem é de Eisenstein


O mais interessante do filme é que a crítica ao sistema soviético por parte da diretora e idealizadora do filme, Věra Chytilová, focou sua lente no aspecto machista de uma sociedade baseada na burocracia, valorizando assim as mulheres mais "pixies". Entretanto, hoje em dia, com a desagregação da União Soviética e o fim da Guerra Fria, a crítica de Věra Chytilová parece voltada mais ao posicionamento e estilo das meninas perante as oportunidades de uma sociedade socialista, levando-as sempre a um fim trágico e a infelicidade, pois elas também são vazias. Logo, o filme parece refletir o próprio idealismo vazio do que significava uma nova onda do cinema e juventude em um lugar como Praga, tendo uma certeza quase primordial do fracasso real de um movimento libertário naquela região e época, mesmo antes da eclosão da famosa Primavera de Praga de 1968. 


As reformas da Primavera de Praga foram uma tentativa de Dubček, aliado a intelectuais tchecoslovacos, de conceder direitos adicionais aos cidadãos num ato de descentralização parcial da economia e de democratização. As reformas concediam também um relaxamento das restrições às liberdades de imprensa, de expressão e de movimento e ficaram conhecidas como a tentativa de se criar uma “social-democracia” (ou, segundo outros, "um socialismo de rosto humano"). Dubček também dividiu o país em duas repúblicas separadas; essa foi a única reforma que sobreviveu ao fim da Primavera de Praga.


As reformas não foram bem recebidas pelos soviéticos que, após as falhas nas negociações, enviaram milhares de tropas e tanques do Pacto de Varsóvia para ocupar o país. Uma grande onda de emigração atravessou o país. Apesar de ter havido inúmeros protestos pacíficos no país, inclusive o suicídio de um estudante, não houve resistência militar. A Tchecoslováquia continuou ocupada até 1990. Após a invasão, a Tchecoslováquia entrou em um período de normalização: Os líderes seguintes tentaram restaurar os valores políticos e econômicos que prevaleciam antes de Dubček ganhar poder no Partido Comunista da Tchecoslováquia (KSČ, em tcheco). Gustáv Husák, que substituiu Dubček e também tornou-se presidente, retirou quase todas as reformas de Dubček. A Primavera de Praga imortalizou-se na música e na literatura pelas obras de Karel Kryl e de Milan Kundera, como “A Insustentável Leveza do Ser (1984)”.


Logo, é controverso pois muitos podem descartar "As Pequenas Margaridas" como um filme idealista, utópico e escapista, por propor a crítica ao socialismo, mas não propor nenhuma alternativa a ele para além da própria ciranda dentro do socialismo, afinal tão pouco o filme abre os dentes para o capitalismo, tão criticado na interação com os homens e situações. 


Entretanto, é curioso ver esse escapismo dentro de um sistema socialista, já que o que sempre é vendido para o Ocidente pelas narrativas da mídia, é que os sistemas socialistas não toleram o desviante e divergente, algo que está mais do que desmentido aqui. Além disso, também é curioso ver a tragédia anunciada da liberalização que nunca vai acontecer, pois será sempre incipiente. Logo, o quanto os homens também não as usam? Não seria também a liberdade dos costumes e do sexo uma prisão mora para o fracasso político e econômico de uma sociedade fraturada?


É por esse lado que o filme de Chytilova se tornou um clássico ao marcar uma "ruptura para dentro", ao vez que se o machismo burocrático soviético era um problema, tão pouco a solução estava no hedonismo capitalista. Era necessário algo mais, um ser novo tal como metáfora da própria democracia e política. Por isso a estética do filme é impactante: pois tudo tem que ser novo, justapondo a complexidade do cinema e da política, com a simplicidade de curtir e usufruir a própria vida tal como pegar um fruto no pé. O fotógrafo, Jaroslav Kučera, representou muito bem isso com suas experimentações e estilos ao longo do filme que tem uma das fotografias mais palatáveis que vi em um filme. Com certeza um marco estilístico e de linguagem entre a transição do cinema mudo, para o sonoro; do cinema movimento, para o cinema tempo.  


Disponível no MUBI.



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