Da donzela inalcançável à esfinge do mistério machadiano: A mulher e seus desafios na literatura brasileira no século XIX
Da mulher idealizada do Romantismo clássico à protagonista que desafia o mundo ao seu redor, a literatura brasileira do século XIX navegou por córregos e meandros, muito sobre os papéis femininos atribuídos originais. Autores como José de Alencar, Machado de Assis, Bernardo Guimarães, Maria Firmina dos Reis e Emília Freitas e Taunay oferecem retratos sobre a mulher brasileira. Em meio a musas, enigmas e utopias femininas, essas vozes constroem e tencionam o lugar de ser na ficção nacional. Um convite à leitura que revela não só personagens, mas as estruturas históricas e sociais que envolvem a literatura do XIX. Um diálogo entre alguns livros e a figura da mulher na sociedade colonial. O Guarani (1857) Úrsula (1859), Senhora (1874), Inocência (1872), Miss Dollar (1869), Helena (1876).
Na sociedade Brasileira, tradição e modernidade pareciam ás vezes facas de dois gumes. Ás vezes nosso país que se vende como muito culturalismo e moderno, tem chagas e vergonhas históricas que quase não se recuperou, a maior mancha é a escravidão e o fato de ser quase o último país do mundo moderno a abolir tal terrível instituição.
Começamos não com o primeiro romance, como muitos dizem, mas um dos mais marcantes, o livro Úrsula. A autora fora uma mulher negra que usou suas estórias para denunciar o autoritarismo da relação com os escravos, a protagonista é uma mulher branca que sofre com as amarras do patriarcado, enquanto também dá voz a outros tipos de personagem, como Suzana
Liberalismo aqui entendido como uma "ideia fora do lugar", nas palavras de Roberto Swartz. Tenho até um texto antigo focado só nesse debate do "Liberalismo Tropical, Chiclete eu misturo com banana".
Para falar sobre algumas diferenças entre o liberalismo europeu e sua versão aplicada no Brasil e claro, isso envolve a imagem do país e parte disso é construído com a literatura, não apenas instigando comparação entre personalidades e personagens que simbolizam valores da sociedade, mas também na memória patrimonial da descrição de paisagens e ruas nas nomenclaturas antigas, mostrando essa distância do nome dado de memória ou mesmo o nome de uma rua que é lembrado de maneira efetivo pelos locais como outro nome, para citar um exemplo desse tipo de fenômeno.
Usarei primeiro um material de orientação, o artigo de Susan Sontag, e o livro de Antônio Cândido, "Literatura e Sociedade".
Antônio Cândido apontava que era através do elemento históricos e sociais que você interpreta um livro, não algo que vem do gênio individual ou de um expoente biográfico apenas. Por isso que os livros de romance históricos podem servir tão bem para interpretação dos fatores históricos.
"A literatura é um sistema de expressão que organiza a experiência humana, inserido na sociedade, como uma forma de estruturação da realidade."
“A obra literária é simultaneamente reflexo e criação da realidade social.”
O que eu quero dizer é que a literatura não somente documenta, algo que pode ser verdade ou mentira, a literatura altera e modifica, participa das mudanças, não apenas assiste passiva.
“O externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim, interno.”
(Literatura e Sociedade, p. 14)
Já Susan Sontag onde inspirada em Machado de Assis, desenvolveu toda uma argumentação do duplo padrão envolvendo mulheres e ideal de beleza. Sontag escreve um artigo chamado "On Woman" sobre "O Duplo Padrão de Envelhecer" em certo capítulo.
A beleza pode ser uma arma, mas pode ser também armadilha, nas palavras da sábia e tão conhecida acadêmica.
Ela diz que o único padrão de beleza autorizado para mulheres é o da garota jovem. Outra questão marcante do texto dela é que ela fala que mulheres mais velhas são consideradas feias e sem apetite sexual, enquanto os homens são considerados até mais viris ou experientes.
Outra parte boa do artigo é quando ela aborda as formas de se dizer que uma mulher é bonita, uma mulher tem que ser "beautiful", já o homem, tudo que ele precisa é ser "handsome", ou seja na tradução literal da palavra, "apanhável", tudo que um homem precisa ser.
Aqui no Brasil, por exemplo, nenhum homem quer ser lindo, os homens querem ser "feios, fortes e formais", como dito pelo seu Madruga no seriado Chavés.
Ah Ceará, as mulheres e o poder feminino no Ceará, uma longa narrativa histórica. Outra referência marcante é A Rainha do Ignoto (1899), romance da escritora cearense Emília de Freitas (como José de Alencar) imaginava uma sociedade utópica governada apenas por mulheres. Bem coisa do matriarcado poderoso cearense tradicional. É considerada a primeira literatura fantástica brasileira. O livro que sonhava com uma distopia de mulheres mandando nas estruturas da sociedade.
Antes de entrar nos pormenores das comparações entre as obras do romance histórico nacional, precisamos lembrar de alguns detalhes.
Vou ignorar livros óbvios e sacais como "A Moreninha", onde a mulher é mais paisagem de fonte de desejo barato para homens tarados e vou focar nos melhores e mais reflexivos livros da literatura nacional, aqueles onde a mulher aparece para além de ser uma paisagem.
Machado chama para uma discussão sobre mulher em alto nível, a figura da mulher inexplicável, acima da baixaria masculina, Capitu (sexualizada), e Flora (casta) por exemplo, são figuras do mistério clássico machadiano em forma de contradição. Helena é uma heropina sem voz, enquanto Capitu tem uma voz própria que não é calada e acaba destruindo seu casamento, já as mulheres dos contos são expressões mais leves e menos enigmáticas, mas igualmente pomposas e idealizadas, para a Machado as mulheres eram demais e ele mostrava isso em todos os seuslivros.
José de Alencar escreveu além de O Guarani sua chamada trilogia urbana conhecida como "perfis de mulheres", para vender no Rio de Janeiro com estórias para voltadas para o tradicional quem casa com quem, mas que mesmo nesses romances forneciam uma discussão até que moderna de sociedade.
Os livros Senhora (1874), Lucíola (1862), e por fim Diva (1864), debate o poder e a submissão feminina focada no aspecto urbano e da corte. Aurélia é a heroína órfã que ganha uma grande fortuna e pode se casar com seu amor, mas ao fazer isso, ela passa a não achar Fernando digno de seu amor, uma baita contradição.
Como se o dinheiro matasse o romance, completamente diferente da literatura americana ou inglesa, por exemplo. Muito moderno era José de Alencar, apesar de todas as suas contradições. Aurélia não é mais uma heroína sem preconceitos, certa hora, ela vira para Fernando e diz para ele que ela o comprou como se compra qualquer escravo, um exemplo dessa mistura de feminismo e direitismo leve, ao estilo de Jane Eyre de novo.
Lucíola fala sobre Gloria, depois Lúcia, que virou prostituta depois que o pai morre para sustentar a irmã. Essa estória mostra que para uma heroína que foi tão sexualizada, a única solução para manter a sua pureza é a morte. Esse romance tem passagens na nossa cidade.
A antiga área ultra romântica da Praia Grande ficou conhecida também por fotos de Marc Ferrez antes do aterro. Nossa cidade de Niterói, Nictheroy ainda na época era considerada o berço do romantismo. Não tinha trânsito na época e poucas pessoas vinham para a "banda oriental" do território.
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Antônio Cândido falava sobre o ciclo romântico em Niterói, foto na região atual da Ponta da Areia, por Marc Ferro. |
Acho incrível como na literatura nacional, mesmo a mais conservadora como José de Alencar era muito mais progressista do que a literatura europeia.
Ainda envolvendo o tema da beleza feminina e. obra de Machado de Assis, tem o conto maravilhoso, chamado "Miss Dollar(1869)" publicado a primeira vez dentro do livro "Contos Fluminenses", vale lembrar que miss dollar é o nome da cachorrinha inglesa da viúva que Mendonça depois se casa, onde ele elabora um conjunto de arquétipos de mulheres, suas particularidades de acordo com as nações. A americana é a porca da fazenda, loira e de cabelos cacheados, a inglesa é a cachorrinha pequena e de luxo, sem sangue e sem cor.
Tudo porque o seu protagonista enquanto pensava nas diferentes mulheres do mundo, filosofava ao contrário de Gonçalves Dias, dizia que tinha medo dos olhos verdes ou claros, pois ele nunca tinha visto antes.
Medo de se afogar no mar revolto. Isso significa que o protagonista da história começa o conto no ideal de beleza nativista, olhos castanhos, até que ele conhece uma viúva que faz ele mudar de ideia, mas não imediatamente, ele primeiro conhece e salva a cachorrinha da viúva Cecília e leva até ela. Mas ao contrário do que ele declara antes, ele acaba perseguindo a cachorra, digo a moça de olhos verdes.
Ou seja, mesmo com medo dos olhos verdes, o cara se casa com a viúva, assim como o autor Machado de Assis fez. Essa é talvez uma das mais românticas e positivas estórias de Machado. Ele pôde fazer isso por ser uma estória curta. Refletindo sua própria vida e gosto em mulheres. É interessante ver essa escrita leve e bem humorada que mostra um escritor disposto a mudar seu gênero completamente quando faz estórias curtas e brilhantes como Miss Dollar.
O primeiro deles é que os livros que hoje são referência e lidos pelas universidades, pós graduação e doutorado, eram literatura de folhetim, "coisa de mulher", era a novela popular do século XIX.
Se hoje são homens em sua maioria em faculdades, cheios dos métodos que "dominam" Machado, mas esse tipo de literatura que ele sabia como ninguém fazer era literatura para mulher ler, a paperback novel usando a palavra em inglês. Se hoje em dia Machado ganhou contornos de grandes revisões intelectuais sobre seus principais textos, muito é ainda ignorado das suas crônicas, peças de teatro, ou mesmo seu grande trabalho de cronista.
Machado de Assis e outros tantos publicavam ao público feminino, Machado era incrível, parece que tinha acesso a tardis do doctor who de tão moderno que ele era. Vale lembrar que Machado era um auto didata que nunca fez faculdade, mas que foi o escritor e funcionário público que foi.
O segundo detalhe é por isso que os folhetins buscavam a heroína, pelo menos inicialmente como objeto e forma de dar sentido aos homens. Machado de Assis não, apesar das mulheres ser prisioneiras do destino, elas também moldavam e assustavam os homens.
Vamos ao romance aonde o feminismo é mais claramente visto. Senhora, José de Alencar, Aurélia mata o romance por controlar seu destino, ao estilo Jane Eyre. Aurélia Carmargo é descrita como segura de si e boa de matemática, passou a administrar grande fortuna.
Outra referência seria o romance livro Desmundo, que apesar de ser escrito recentemente, refletiu a opressão e agenciamento de mulheres no período colonial.
Mas isso não significa que Aurélia seja bondosa, ela apenas é tão "funcional" quanto um homem. Nisso Machado de Assis é melhor, ele consegue de maneira existencialista e realista ainda assim, mostrar controle e potência por parte das mulheres em suas estórias. Isso porque ele estava fazendo romance na capital, na sede da corte. Por isso o tom mais utópico de feminismo.
Já O Guarani (1857) também de José de Alencar não é um dos seus perfis de corte, é o ultra romantismo nativista, típico da primeira geração do romantismo. fica no meio termo, a garota é um modelo de donzela aleatória e "sequestrável" e no inicio, ela mesmo era nem racista, mas a novela vê uma conversão em uma estória que eu imagino escandalizou a sociedade da época. Se você consegue superar o início ruim, o decorrer do livro é um eterno apaixonar-se pela paisagem e pelo casal também.
Guarani virou peça de teatro, de Carlos Gomes e dez sucesso na Europa, uma ópera épica que entusiasmou a todos em 1870 quando estreou em Milão. Foi um enorme sucesso, e depois no Brasil, também.
Não é suas grandes obras fundadoras ou sobre guerras regionais, mas ainda é um romance e do tipo que é tão fundador, que jamais ninguém vai fazer igual. Ceci até tenta ser uma garota comum, mas os obstáculos da vida, os conflitos locais fizeram ela se apaixonar por alguém totalmente fora de seu escopo social. Por fim, há a impossibilidade de conversão do nativo ao cristianismo, por mais que haja um amor quase infantil e ultra romântico entre os dois.
Antes do advento do feminismo como força organizada no Brasil, a literatura funcionava como espelho e moldura dos papéis sociais atribuídos à mulher. Entre a submissão romântica e a ambiguidade psicológica, entre o anjo do lar e a figura misteriosa que desafia as normas, o retrato da mulher nas letras brasileiras do século XIX revela tanto os limites quanto os respiros possíveis dentro de um sistema patriarcal.
Em autores como Machado de Assis, Visconde de Taunay e Maria Firmina dos Reis, nota-se uma variedade de representações que, mesmo sem intenções feministas explícitas, anteveem tensões de gênero que seriam mais tarde mobilizadas pelo movimento.
Outra marcante contribuição vem do livro da cearense Emília de Freitas, A Rainha do Ignoto, publicado no último ano do século. Também um romance abolicionista e ao mesmo tempo com elementos do sobrenatural. A esfinge machadiana está no corpo de sua crítica, sua ambivalência, sua textura não definida.
Na obra de Machado de Assis, a mulher raramente é uma figura passiva. Ainda que inseridas num mundo masculino e burguês, personagens como Capitu (em Dom Casmurro) ou Sofredora do coração (em contos como A causa secreta) são delineadas com uma complexidade que desafia os papéis tradicionais.
Capitu, com seus "olhos de ressaca", é a personificação da esfinge e do mistério machadiano: enigmática, ambivalente, capaz de provocar e desconcertar a visão estreita do narrador masculino que a descreve de maneira limitada. A suspeita que paira sobre ela denuncia menos a culpa da personagem e mais os limites da percepção patriarcal.
Já no livro Helena (1876), nossa heroína é uma garota que foi assumida pelo amante da mãe como filha oficial, mas ela não era filha dele biológica dele e a família do cara fica sabendo da indiscrição no dia da leitura do testamento.
Uma história pesada, nada romântica e que reflete pesadamente como o preconceito distorce até as melhores das intenções. Mesmo com Helena sendo um modelo de mulher, sua tristeza e profundidade pertubavam a nova casa onde ela veio morar após a morte do seu padrasto. É um livro para chorar pesado, um trauma que não se recupera. A parte do encontro com o pai biológico é de cortar o coração e o fim, já dou spoiler, totalmente trágico.
Longe de um modelo ou de donzela pura somente ou de ser esse o debate, o crime de Helena é o crime social dos pais. Ela esconde seu verdadeiro pai e o visita com seu amigo Vicente (escravo da casa e que faz surgir desconfiança de ser amante de Helena por estar os dois sempre juntos).
Helena me impressiona pela maturidade, ela nunca erra e mesmo assim, seu novo irmão, por ciúmes quer contestar sua narrativa. Mas aí o padre intervem a favor de Helena e Vicente e acusa o irmão de sentimentos incestuosos, Machado então mostra um lado "de esquerda" da igreja católica.
Machado não escreve sob uma bandeira feminista, mas sua ironia e seu foco psicológico desestabilizam os modelos normativos de mulher angelical ou pecadora. Ele somente fez um modelo donzela com Flora, em um dos seus últimos livros,voltando aos temas de ideario da literatura nacional fundadora, Flora e Inocência são personagens irmãs.
A donzela romântica em Taunay: sentimentalismo e apagamento são notáveis, essa ideia da mulher inalcansável, Já no caso de Visconde de Taunay, especialmente em romances como Inocência (1872), encontramos uma figura feminina moldada segundo o ideal romântico da pureza e da submissão.
Inocência, a personagem-título, é uma jovem bela, recatada e aprisionada entre as vontades do pai e o desejo proibido por um médico forasteiro. Sua história é marcada pelo silêncio e pelo sacrifício, culminando numa morte simbólica e literal: a mulher pura não pode sobreviver fora do modelo patriarcal. Ainda que Taunay registre um Brasil interiorano e patriarcal com realismo, sua protagonista é construída mais como alegoria do ideal feminino do que como sujeito autônomo.
A insurgente maranhense Maria Firmina: resistência e denúncia de uma escritora negra na figura de uma personagem heroína branca. Algo fora do que se imaginaria, ela também foi professora e nunca se casou.
Maria Firmina dos Reis, por sua vez, rompe com os paradigmas do século ao escrever Úrsula (1859), considerado o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira e escrito por uma mulher negra. Em contraste com a passividade das heroínas românticas, Úrsula é uma jovem que, embora ainda presa ao sentimentalismo da época, já expressa inquietações morais e políticas.
O protagonismo feminino não está apenas no plano da sensibilidade amorosa, mas também na denúncia da escravidão e na solidariedade entre mulheres. Firmina antecipa questões de "interseccionalidade", ao entrelaçar gênero, raça e classe em sua narrativa, desafiando duplamente o cânone: como autora e como crítica do patriarcalismo escravocrata.
Nas vozes díspares de Machado, Taunay e Maria Firmina, o feminino aparece ora como esfinge, ora como donzela, ora como mulher insurgente. Ainda que à margem das formulações feministas modernas, essas obras oferecem uma rica tessitura de imagens e contradições, que revelam tanto a opressão quanto os primeiros gestos de resistência.
A literatura brasileira do século XIX, antes do feminismo mesmo propriamente dito, já havia, por exemplo, muitas escritoras na Inglaterra a Mary Shelley, Jane Austen e depois Charllote Bronte e suas irmãs (e que Machado leu por causa de sua esposa que amava literatura inglesa, acho que por isso o símbolo da cachorrinha perdida que ele resgata).
Tudo isso serviu de inspiração para o lado do debate moral em Machado, apesar dele secretamente brincar com a cultura das aparências britânica. Cecília em Miss Dollar escolhe o homem sem grandes dotes, afinal, ela já era rica. E foi difícil, osso duro de roer essa esposa de Machado.
Sua esposa, Carolina era de família nobre, de famosos poetas e intelectuais portugueses. Sua família fez de tudo para ela não se casar com Machado, afinal, apesar de famoso, era livro de um pai negro e de uma mãe imigrante e lavadeira (nascida no Açores). Se ele aprendeu francês na escola de meninas e com o padeiro, depois aprendeu inglês com sua esposa. Ela revisava mesmo seus textos, eles brincavam de escrever cartas e diários juntos com crônicas do dia-a-dia.
já carregava os germes de um questionamento mais amplo, talvez não como grito, mas como murmúrio que atravessaria o tempo até se tornar clamor. Eram as mulheres apenas objetos a ser contemplados, como a paisagem, ou elas teriam aquele poder de assustar e fazer duvidar como com Capitu?
E o fundamental para entender a construção do feminino idealizado no romantismo brasileiro. Ela acrescenta uma dimensão simbólica e nacionalista ao arquétipo da “donzela pura”, e pode ser integrada perfeitamente à análise proposta. Veja como podemos encaixar Ceci no rascunho e o que ela representa:
As virgens da pátria: Ceci e Iracema e o ideal feminino nacional. Em O Guarani, de José de Alencar, a personagem Ceci encarna a idealização máxima da mulher romântica: branca, pura, submissa, quase etérea. Filha de um nobre português, Ceci vive isolada na floresta tropical, o que a transforma num símbolo híbrido — europeia de origem, mas “aclimatada” ao Brasil. Seu amor casto por Peri, o indígena heroico, compõe uma alegoria de conciliação racial e de fundação da nacionalidade.
No entanto, essa “harmonia” está profundamente marcada por hierarquias coloniais e patriarcais: Ceci é um objeto a ser protegido e salvo, não uma agente de sua própria história. Como um símbolo. Acho que o crédito que não dão a José de Alencar é sobre essa popularização da leitura com temas mais positivos e românticos. Além disso, ele soube enganar seus leitores. Vendeu inicialmente um romance altamente racista de início, mas que vai mudando ao decorrer de 500 páginas.
José de Alencar também parece ter seguido e muito o romance de Maria Firmina dos Reis, vale lembrar que apesar da romancista ser uma mulher negra, sua personagem principal era uma mulher, de olhos azuis.
Já voltando a análise do maior clássico nacional, O Guarani, Ceci representa, assim, a virgem que precisa ser resgatada, a mulher pura, porém frágil, tanto pelo herói quanto pela pátria nascente. Ela não possui agência: sua função é simbólica, decorativa e sacrificial. O erotismo é reprimido, o desejo é contido, e o destino final (partir para a Europa, no fim do romance) reforça a impossibilidade de uma mulher idealizada ocupar o centro da nação em formação. Diferente de Capitu ou Úrsula, Ceci não é enigma nem denúncia: é mito, vestida com a aura da pureza cristã e do nacionalismo patriarcal.
Ceci seria a donzela absoluta, símbolo da pureza nacionalizada. Em termos de estrutura, você pode inserir essa nova seção após a análise de Taunay, ou antes, já que Alencar é anterior a Taunay e representa o romantismo em sua fase mais idealista. Aqui está um possível resumo da progressão:
Podemos ver até a diferença nas heroína:
Ceci (Alencar) – a donzela pura, idealizada, símbolo nacional, Inocência (Taunay) – a donzela realista, submissa, condenada, Capitu (Machado) – a esfinge, ambígua, provocadora, aquela que dissimulava e mentia sem medo. Úrsula (Maria Firmina) – a insurgente e a sensível dialogavam o texto da escritora.
Ceci não é uma brasileira nativa; ela representa, na verdade, a projeção do ideal feminino europeu no espaço colonial. Ela tem uma mãe holandesa e um pai português, que teve uma filha com uma indígena que ele cria como sobrinha sua, mas todos sabem.
A virgem estrangeira: Ceci e o ideal de beleza europeu no trópico
Em O Guarani (1857), de José de Alencar, Ceci surge como o arquétipo da donzela romântica: bela, pura, recatada, mas também estrangeira. Filha de um fidalgo português e de uma
O amor entre Ceci e Peri, o indígena heroico, é construído como uma alegoria da submissão do “selvagem” ao “civilizado”. Peri renuncia à sua identidade e à própria cultura para tornar-se digno de servi-la. No fim do romance, os dois partem juntos em uma canoa que desaparece no horizonte — uma espécie de apoteose cristã que evita qualquer erotização ou concretização do desejo. Ceci não escolhe, não age, não fala com autoridade: ela é o prêmio, o totem, o mito a ser preservado.
Alencar, ao projetar esse ideal, não constrói uma mulher brasileira, mas sim uma estrangeira idealizada — cuja função é legitimar um Brasil aristocrático, branco e patriarcal. Diferente de Capitu ou Úrsula, Ceci não perturba o mundo masculino; ela o confirma, como imagem daquilo que deve ser protegido da mudança.
Antes do feminismo moderno como força organizada no Brasil, a literatura funcionava como espelho e moldura dos papéis sociais atribuídos à mulher. E esse papel social de personagens, locais e relações dão pistas sobre o costume das mulheres no século XIX. Entre a submissão romântica e a ambiguidade psicológica, entre o anjo do lar e a figura misteriosa que desafia as normas, o retrato da mulher nas letras brasileiras do século XIX revela tanto os limites quanto os respiros possíveis dentro de um sistema patriarcal.
Na obra de Machado de Assis, a mulher raramente é uma figura passiva. Ainda que inseridas num mundo masculino e burguês, personagens como Capitu (em Dom Casmurro) ou Sofredora do coração (em contos como A causa secreta) são delineadas com uma complexidade que desafia os papéis tradicionais.
que analisa representações femininas nas obras de Machado de Assis, Aluísio Azevedo (por extensão de Taunay) e Maria Firmina dos Reis, considerando o contexto pré-feminista do século.
Antes do advento do feminismo como força organizada no Brasil, a literatura funcionava como espelho e moldura dos papéis sociais atribuídos à mulher.
Entre a submissão romântica e a ambiguidade psicológica, entre o anjo do lar e a figura misteriosa que desafia as normas, o retrato da mulher nas letras brasileiras do século XIX revela tanto os limites quanto os respiros possíveis dentro de um sistema patriarcal. Existe uma clivagem. Se em Taunay, a mulher era um símbolo, um objeto, em Machado, a mulher é viva em todas as suas cores, mesmo que essas cores sendo ás vezes cinza, o realismo de Machado não enfeita mas também não subestima as mulheres. Digo isso porque Machado era realista demais para escrever algo feminista e utópico.
Mas no conto "Pai contra a Mãe", Machado soube criar uma heroína escrava, que sofria na mão do dono de escravos. Há aqui toda uma denúncia do caráter capitalista da escravidão, já que na estória, o capataz responsável pela capturada de escravos, tem que abandonar o filha na roda dos enjeitados (uma cesta para abandono que era gerenciada pela igreja).
Já José de Alencar sim, escreveu romances femininas, mas elitistas. Estava ele na vibração dos franceses, mas também muito influenciado por Jane Eyre. Isso porque José de Alencar veio de uma família de poderoso matriarcado cearense, e sabia o quanto as mulheres podiam mandar.
Em autores como Machado de Assis, Visconde de Taunay e Maria Firmina dos Reis, nota-se uma variedade de representações que, mesmo sem intenções feministas explícitas, anteveem tensões de gênero que seriam mais tarde mobilizadas pelo movimento.
Chamo de esfinge pensando nessa ambiguidade e crítica social do próprio Machado de Assis mesmo. Na obra de Machado de Assis, a mulher raramente é uma figura passiva. Ainda que inseridas num mundo masculino e burguês, personagens como Capitu (em Dom Casmurro) ou Sofredora do coração (em contos como A causa secreta) são delineadas com uma complexidade que desafia os papéis tradicionais.
Capitu, com seus "olhos de ressaca", é a personificação da esfinge: enigmática, ambivalente, capaz de provocar e desconcertar a visão estreita do narrador masculino.
A suspeita que paira sobre ela denuncia menos a culpa da personagem e mais os limites da percepção patriarcal. Machado não escreve sob uma bandeira feminista, mas sua ironia e seu foco psicológico desestabilizam os modelos normativos de mulher angelical ou pecadora.
A donzela romântica em Taunay:
sentimentalismo e apagamento histórico ao mesmo tempo. Já no caso de Visconde de Taunay, especialmente em romances como Inocência (1872), encontramos uma figura feminina moldada segundo o ideal romântico da pureza e da submissão. Inocência, a personagem-título, é uma jovem bela, recatada e aprisionada entre as vontades do pai e o desejo proibido pelo forasteiro que a cura.
Sua história é marcada pelo silenciamento e pelo sacrifício, culminando numa morte simbólica e literal: a mulher pura não pode sobreviver fora do modelo patriarcal. Ainda que Taunay registre um Brasil interiorano e patriarcal com realismo, sua protagonista é construída mais como alegoria do ideal feminino do que como sujeito autônomo.
A insurgente Maria Firmina: resistência e denúncia no livro da primeira escritora negra do Brasil.
Maria Firmina dos Reis, por sua vez, rompe com os paradigmas do século ao escrever Úrsula (1859), considerado o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira escrito antes de Inocência — e escrito por uma mulher negra. Em contraste com a passividade das heroínas românticas, Úrsula é uma jovem que, embora ainda presa ao sentimentalismo da época, já expressa inquietações morais e políticas.
O protagonismo feminino não está apenas no plano da sensibilidade amorosa, mas também na denúncia da escravidão e na solidariedade entre mulheres. Firmina antecipa questões de interseccionalidade, ao entrelaçar gênero, raça e classe em sua narrativa, desafiando duplamente o cânone: como autora e como crítica do patriarcalismo clássico.
Capitu, com seus "olhos de ressaca", é a personificação da descrição da tal esfinge machadiana: ela é enigmática, ambivalente, capaz de provocar e desconcertar a visão estreita do narrador masculino, e isso desde a infância. Uma das frases marcantes de Dom Casmurro é "Capitu era mais mulher do que eu era homem", explicando a desconfiança eterna de Bentinho. No final, é um enígma por conta da ambivalência na leitura. Como já disse Machado, o maior defeito desse livro, leitor, é você.
A suspeita que paira sobre ela denuncia menos a culpa da personagem e mais os limites da percepção patriarcal. Machado não escreve sob uma bandeira feminista, mas sua ironia e seu foco psicológico desestabilizam os modelos normativos de mulher angelical ou pecadora.
Nas vozes díspares de Machado, Taunay e Maria Firmina, o feminino aparece ora como esfinge, ora como donzela, ora como mulher insurgente. Ainda que à margem das formulações feministas modernas, essas obras oferecem uma rica tessitura de imagens e contradições, que revelam tanto a opressão quanto os primeiros gestos de resistência.
A literatura brasileira do século XIX, antes do feminismo, já carregava os germes de um questionamento mais amplo — talvez não como grito, mas como murmúrio que atravessaria o tempo até se tornar clamor de novos tempos, sim a literatura muda e é mudada, age e sobre ação sobre ela. O tempo modifica, acelera e consagra algumas ideias, livros, obras e romances que antes passariam apenas como um simples índice.
A análise das obras O Guarani (1857), Úrsula (1859), Senhora (1874), Inocência (1872), Miss Dollar (1869) e Helena (1876) nos permite observar traços psicológicos e estéticas, frutos das escolas literárias da época. A transição do romantismo, passando pelo naturalismo, chegando na dúvida do realismo machadiano é um caminho que essas obras podem mostrar nitidamente.
As obras compartilham ainda valores em comum se cruzadas, como os elementos de estrutura do "romance romântico", o amor idealizado, a ideia também de destino trágico, redentor ou mesmo a discussão sobre conflitos sociais e o heroísmo. Na figura da mulher escravizada com Maria Firmina, ou mesmo na representação da mulher burguesa mias moderna proposta por José de Alencar e Machado de Assis, a análise mostra a postura da mulher que variava da submissão até a autonomia e independência, como visto em "Senhora"
Por sua vez, O Guarani contribui para o projeto de construção de uma identidade nacional idealizada, ao mesmo tempo em que reforça valores eurocêntricos e patriarcais por sua vez. Inocência, de Visconde de Taunay, e Miss Dollar, de Machado de Assis, propõem diferentes olhares sobre o feminino, ora enfatizando a fragilidade e a obediência, ora sugerindo a complexidade psicológica das personagens que molda o pensamento feminino, como Helena (de Helena) e Capitu (Dom Casmurro).
As mulheres também seriam agentes aparentemente secundários e ocultos, mas que se analisados de perto, não eram tão secundários assim, faziam parte da construção do ideário nacional, porque faziam parte da estrutura mitológica do romance (como em O Guarani), muitas das vezes essas musas eram o retrato das próprias contradições nacionais, como Inocência, Capitu e Flora foram retratos fieis do nosso próprio país em época de ebulição histórica, principalmente Flora em Esaú e Jacó.
A literatura permite que comparando obras e épocas de publicação possamos perceber que a mesma foi instrumento de legitimação e não apenas reflexo automático da história, mostra alto grau de questionamento e denúncia daquilo que se conhece como cultura, abrindo espaço para uma análise mais ampla não apenas do ideário nacional (identidade nacional).
Literatura é não apenas uma janela onde se pode ver a história factual, literatura é no fim também espelho da própria sociedade e reflete seus valores, preconceitos, sistemas de classr e casta também.
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