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Desmundo (2002): As órfãs da colonização no Brasil e a limpeza étnica na Europa



Em 1570, acompanhamos Oribela, uma órfã enviada de Portugal para servir de esposa para um colono português, isso ocorreu a pedido da igreja católica que via com maus olhos o relacionamento de colonos portugueses com aa mulheres indígenas nativas. O filme aborda a história dessas mulheres, a dificuldade de permanência e adaptação e os casamentos forçados


Essa história é, em parte, real. No século 17 é que achamos os primeiros registros, porém essa prática podia ser feita as escondidas antes, o que é a teoria do filme e do livro. Alguns governos e companhias privadas junto com igreja buscavam se livrar das garotas "dispensáveis" através da imigração forçada de garotas brancas pobres europeias para o Brasil, tema do filme francês inspirado no romance histórico de Ana Miranda escrito em 1996. 


Outro filme que ajuda a entender esse contexto é The Mission (de 1986, sobre o contexto das guerras guaraníticas), mostra Robert de Niro tentando viver como esses homens portugueses lançados, e não conseguindo, diga-se de passagem. 


O roteiro do filme é de Anna Muylaert e é falado todo em português-galego. O título do filme brinca com a ideia da palavra em português "desmundo", um não mundo, um local inexistente dos costumes aos quais estão tentando passar. Essa tentativa, essa empreitada de "civilização" só mostra mais uma vez a natureza autoritária brasileira em conjunto com a explicação de que isso ocorreu por influência do projeto colonial. 


O próprio filme começa com a descrição de uma carta mandada pelo padre Nóbrega, um excerto enviado ao rei D. João, em 1552: 


"...Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra há de mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas órfãs. E se não houver muitas, venham de mistura delas e quaisquer, porque são desejadas as mulheres brancas cá, que quaisquer farão cá muito bem à terra, e elas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-ão do pecado”.  


A personagem principal é Oribela, com 16 anos (Simone Spoladore), que se vê agora nesse novo país obrigada a se casar com Francisco de Albuquerque (Osmar Prado). Levada na exposição de mulheres como em um mercado de escravos mesmo. 


Ela é levado ao engenho de açúcar do novo marodo e pode perceber a estranheza dessa nova terra sem nenhuma liberdade para as mulheres. Seu marido é truculento com ela, e ela tenta fugir mas é recapturada pelo marido. O filme também mostra bem a opressão absurda e a estrutura escravocrata, a escravidão indígena e também feminina. 



Companhias como Severim de Farias implementaram políticas de mandar órfãos de Portugal para Goa, como também algumas meninas francesas, jovens inglesas aos EUA. A realidade era bem diferente da literatura. Essas mulheres não eram agraciadas com nenhuma forma de poder decidir sobre a própria vida. Elas viviam em função da empresa colonial. 


Pensando o livro Jane Eyre, agora entendemos a extensão da denúncia e da substituição no inconsciente coletivo de um problema de nações com muitas pessoas pobres, como a própria Inglaterra, entendemos a intenção ousada de denúncia feita por uma mulher. Esse livro foi inspiração concreta para muitos romances e estórias diretamente, sendo quase que um mito fundador. Uma tentativa de dar potência para a pauta das "janes comuns", mas a realidade era o tráfico de mulheres para o casamento e feito com o agenciamento da igreja. Vale pensar isso, Jane Eyre, utopia e literatura, Desmundo, uma ficção sobre a históroa real. 


O que Bronte construiu foi um ideal de mulher inglesa mais pobre ainda do que ela, alguém abandonada no mundo, como a história de Oliver Twister ou ainda David Copperfield, onde á havia essa denúncia ao abandono parental e o já cruel mundo do trabalho influenciado pela revolução industrial. 


Charllote Bronte queria muito mais do que fazer um romance sobre seus traumas amorosos, queria denunciar (como quem escreve um conto de fadas). Por isso que muitos consideram ela uma "historiadora das emoções", e eu não poderia concordar mais. 


A falta de possibilidade para muitas dessas mulheres levava com que elas fossem responsabilidade do Estado, e assim dessa maneira utilizadas como moeda de troca no jogo da colonização. Elas foram usadas no jogo da colonização para tornar a linhagem dos colonos portugueses branca. 


Só que tinha um porém, os homens portugueses já haviam constituído família e negócios em torno de seus novos parentes, ou seja, as mulheres eram agenciadas para ser as "esposas oficiais" de homens que já tinham esposas indígenas. As mulheres acabavam entrando em conflito com essas outras esposas. 




A intenção era clara, os primeiros anos de colonização geraram apenas dois lugares de sucesso, Pernambuco e São Vicente, dois locais de apressamento indígena, mas também de miscigenação por conta das grandes famílias que colonos portugueses já haviam feito com as mulheres oriundas dos povos originários. 


Essa ideia do mito yankee era essa de se miscigenar pra poder dominar melhor e ter contato real com o país que se estava tentando dominar. A ideia interna de que você só realmente dominaria o local se você se misturasse ao povo local. Mostrando a diferença entre ingleses e portugueses. 


Oribela tenta fugir se disfarçando de homem, pede ajuda a Ximeni Dias (Caco Ciocler), é pega de volta e dá a luz a um filho.  Outro detalhe é que é insejado uma relação incestuosa entre a própria mãe do marido de Oribela e ele, mostrando essa ideia da ligação eterna entre mãe e filho e de como Oribela não tinha nenhum poder dentro de sua própria casa, era tão escrava quanto os índios. 


A empresa colonizadora Dutch East Indian mandou as "filhas da empresa" para parte as Índias Orientais Índia, Indonésia, Malásia, Filipinas e Singapura, e as senhoritas francesas para a Nova França (atual região do Canadá). Isso aconteceu muito, mostrando o quanto foi um projeto social a construção do lócus de "países de primeiro mundo" ser uma ficção em fruto e extensão do projeto colonizador clássico. 


Eu te pergunto, como aceitar a narrativa de que "não há pecado ao sul do mundo", ou que existe uma natural tendência aos problemas de construção de sociedade, já que eles levavam o nosso ouro e traziam mulheres para acabar com um problema crônico europeu. 


Olha que boa ideia, coloca as janes comuns da Europa para ser uma das (mais uma das) esposas dos colonos portugueses, a igreja via como a ideia da criação de famílias entre os colonos e as indígenas o sinal de que a empresa colonizadora poderia virar a ideologia de um novo país.


 Ou seja, a fina flor da ideia da colonização portuguesa precisava garotas disponíveis para colonizar os trópicos. Por isso que parece toda uma ideia de te tira a potência, muito longe do lugar de potência ou mesmo de romance, nossa colonização foi bruta por simbolizar todo um projeto de agenciamento e de "superioridade" que foram planejadas séculos atrás. Isso mostra como algumas sociedades se manter ricas e outras pobres. Não é nada aleatório. 


Por isso que temos o contrário disso em termos de livro. José de Alencar, autor também de Senhora é considerado o pai da literatura nacional (era mais no século XIX), escreveu uma resposta a isso início torpe de colonização portuguesa. 


Não digo que a colonização holandesa seria melhor, mas deixou marcas (na literatura, na arquitetura e na história) de locais como Recife, Pernambuco e no Ceará também. Apenas como um local contrário ao ideário de colonização portuguesa. Um ponto de divergência. Um ponto de romantismo e (boas fundações). Não apenas aquela ideia "jogada" que te dá a colonização portuguesa. 


No clássico O Guarani (também sobre as guerras guaraníticas), ele elabora uma mitologia fundadora da resistência aos portugueses fazendo arquétipos daquilo que as empresas colonizadoras buscavam a evitar a todo custo, o romantismo, o nativismo e o indianismo como resposta a isso. 


Nos clássicos fundadores do tipo nacional, em O Guarani, vemos a história de amor impossível entre a garota holandesa, Ceci, e o índio Peri. O bom índio e puro não fica com a garota, já o índio mau quer roubar a garota. Aquele velho debate ao estilo de a antropologia de La Casas. 


 Já no livro Iracema, a virgem dos lábios de mel, é o processo contrário, cujo filho dava origem ao verdadeiro brasileiro, Moacir. O que a igreja católica buscava acabar e boicotar era essa ideia de criação dos tipos nacionais, a criação que seria fora do planejamento da igreja. 


Por isso forjaram a todo custo uma estrutura de sociedade cercada, chata e falsa. Como no filme, onde a moça foge para ficar com seu amante, um cristão novo, e quer voltar para Portugal. Nada nela mostra que ela gosta de sua nova vida e assustada, ela só pensa em fugir de onde veio. Mas claro que isso não era opção.  


Além de roubar as riquezas através da empresa colonial, escravizar os nativos e trazer os costumes do país de origem, eles ainda traziam agruras do social como a dispersão de jovens que trariam índices ruins para a estrutura de casamentos (sempre forçados e valendo dinheiro). Tema recorrente em Senhora, José de Alencar. A literatura aborda essa anomia social e tenta redimensionar esses traumas com uma estética literária ou outra. 


Pensando na história da criança de rua ou abandonada, a Europa viu a ascensão de um sério problema de fome e abandono endêmico deflagrado pelo constante flagelo dos mais pobres, para resolver esse problema e o problema do medo dos países do "Novo Mundo", eles resolveram mandar essas garotas como forma de manter a colonização e ainda manter a Europa "limpa" dessas mulheres indesejadas. 


A lei da época ditava que quando uma jovem perdia o pai, ficava sob a tutela do Estado português, outro lugar onde essa táctica aconteceu também para manter a elite branca foi Goa, na Índia. O filme mostra esse susto, esse choque de cultura, toda essa forma de medo desconhecido, das outras religiões. 


A temática do incesto, casamento forçado, também debate a escravidão indígena por parte dessas fazendas de colonos. Caco Ciocle interpreta o Cristão Novo, os judeus que eram forçados a se converter ao catolicismo. 


Se a maior parte dos documentos data do século XVII, é possível que antes mesmo disso, sem documentação, já pudesse ter havido casos assim. Eram medidas para manter o domínio da colonização europeia e impedir a criação de novos países. Órfãs inglesas, por exemplo, foram retiradas de Londres e mandadas para as Virgínias (EUA). 


Eram as Company Daughters" e "Filles du Roi" mandadas para arranjos de casamentos onde elas mal podiam opinar sobre algo. 


Era uma forma de manter a forma europeia e impedir a miscigenação, e ainda por cima, "limpar" a Europa de garotas pobres órfãs, era uma solução dupla que vinha em conjunto com as preocupações da igreja, da própria sociedade europeia. Garotas que eram em sua maioria garotas judias, mas também haviam as órfãs portuguesas de família católica, é claro. 


 É por isso que podemos dizer que não é por acaso a condição de "primeiro mundo". Além da escravidão, da dominação de todas essas empresas coloniais, a sociedade ainda buscava canais e meios se manter os "ideais" europeus de sociedade e família. 


Mostrando certa história de opressão de gênero e controle biológico. Além de tentar usar um problema crônico europeu para solucionar o comportamento que eles consideravam como pecado. Uma reflexão das origens sociais desse molde de sociedade que reproduzia o pior do Velho Mundo no Novo Mundo. 

 



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