Esaú e Jacó (1904) Machado de Assis - A transição da monarquia para a república e as lições históricas de um romance eternamente oculto
Esaú e Jacó é um livro de Machado de Assis, com data de publicação de 1904, pela editora Garnier, começa o livro com a visita de Natividade, que na época estava grávida de homens gêmeos, e sua irmã, Perpétua, a uma cabocla do Norte, de nome Bárbara e que atendia no Morro do Castelo. A futura mãe queria conhecer o destino dos filhos gêmeos, Pedro e Paulo. A previsão era de "Cousas futuras", quem vira no destino dos gêmeos era a cabocla Bárbara do Norte, o prognóstico era bom aparentemente, ela vem dar a notícia animadora: “serão grandes homens” , porém serão inimigos e brigarão a todo momento. Isso, porém, não é suficiente para desfazer a inquietação de Natividade, a mãe dos meninos, que se preocupa com as possíveis brigas dos irmãos ainda no ventre que lhe tiravam o sono. Paulo, o advogado, é o simboliza da rebeldia, e da inquietude, é da a oposição republicana e admira Robespierre, enquanto seu irmão gêmeo Paulo, médico, é partidário da monarquia. Liberal republicano, versus conservador e monárquico. Mudando apenas quando o sopro do vento for mais forte. Os gêmeos, filhos da mesma mãe, representam a bússola do ideário político brasileiro, em duas tradições que herdaram a antiga tradição autoritária da política brasileira.
Esaú e Jacó se passa no momento histórico da passagem da monarquia para a república. O velório da moça jovem marca o ínicio do tumultuado período de começo do governo republicano e militar, começando a tradição de intervenção das forças armadas na política. O ideal romântico aqui é demonstrado pela inexplicável Flora, assim ela foi descrita por Aires. Se Flora era inexplicável, Aires é descrito como um cara que concordava em opinião com tudo e todos.
Muitos foram os artigos que eu li sobre esse livro. Depois de ler esse livro, vale a pena tentar pesquisar por aí a opinião sobre esse livro, pois ele é de uma interpretação complicada para ser digerido. Tem que ter 4 estômagos no cérebro mesmo para tentar dissecar tantos mistérios, o mestre tinha razão.
Primeiro, na continuação no diário, livro de memórias de Aires, lançado então algum tempo depois, como um lado b, ao estilo Barry Lyndon sobre a vida de Machado, focando nas estórias de corte, mesa e baronato carioca e de seu velado desprezo pela elite que o hospedava e saudava.
No Memorial, vemos o lado caçador de viúvas ricas de Machado, como sinaliza um outro mistério que passou incólume pelos olhos de todos, Aires havia apagado depois de uma crise parte substancial de seus escritos e de uma viagem para a Europa que ele fez para esquecer Flora, já sabendo que sua irmã leria depois, o livro começa sugerindo que ele apagou parte de sua vida de antes, dos traumas antigos e conta um conto de uma elite fingida até o último fio de cabelo com "padrinhos" gringos, britânicos e portugueses. Nesse sentido, pode-se ler os dois livros como parte do mesmo universo.
Ou seja, esse último livro de Machado de arremate com as estórias pessoais, aborda os detalhes da sua rotina de aparentar ser mais moderado do que é, e de ainda assim, trabalhar sempre nas sombras a favor das minorias desfavorecidas. Estava lendo esse livro que apontava que Machado de Assis foi um dos poucos defensores do voto feminino, ainda no fim do século XIX.
A maioria dos textos não clicou com esse sentimento, ou não analisou nada de substancial, apenas quando vi um de alguém da USP, vi que não pensei nisso só eu sozinha (que bom), o que eu tinha pensado sobre o livro era sobre o seu grande ar de mistério, dando um grande spoiler de leitura. Esse artigo foi o único que li que concorda com as minhas opiniões. Aires era apaixonado por Flora e até em em tom de brincadeira, propôs fuga em um navio sem passagem de volta, mas ela estava muito doente e morreria de desgosto.
O Aires era apaixonado secretamente pela Flora e fica muito mal quando ela morre, sendo esse o grande "tema guardado do livro", que pode ser visto e entendido na ótica da trajetória da vida de do conselheiro, amado pelos filhos abastados da elite e responsável pela orientação de alguns pupilos da elite, o tema absurdamente oculto seria a questão do romance não possível entre Aires e Flora ser a metáfora dessa nova república que passou a ser uma república em armas, demonstrando a força de um conservadorismo ultra autoritário, mas que perdia apoio até entre seus apoiadores por falta de esclarecimento mínimo sobre as estruturas básicas constitucionais de um país sob um regime democrático.
Até mesmo pelo autor do livro, Machado tinha essa de mistérios a todo tempo, por isso era chamado de Bruxo do Cosme Velho e em matéria de Machado era nítido a forma como seu processo criativo revelava em muito uma postura já muito moderna e nativista, que buscava afinar e criar o português brasileiro e parar de imitar as fórmulas e enrendos da literatura europeia. O autor de Dom Casmurro e tantos outros sucessos tem sido muito lido nos últimos anos.
No outro livro, a viúva que era cortejada pelo conselheiro acaba se casando com outro e se mudando para a Europa, aqui o segredo é que os dois já se conheciam e apenas mantiam a aparência de aleatoreidades românticas.
Ao publicar esse livro em 1904 fez no ano da morte de sua esposa e na sua fase final de vida, lançando o seu livro mais crítico, onde criticava a tradição dúbia da elite política de achar diferença mesmo entre os seus mesmos filhos abastados. A ideia de que a ideologia importa, mas que parecem iguais, igualmente autoritários, monarquia e república.
Muito detalhes, personagens, cores e valores percorrem a obra do nosso Shakespeare brasileiro, o Machado de Assis. Por exemplo, muitos "Josés", como o nome verdadeiro do conselheiro Aires Jose da Costa Marcondes Aires, o nome do nosso heroi. Tem também muitas Cesárias, muitos Jorges e Menezes e nomes de tipo do nacional brasileiro. Machado sabia ir na alma dos problemas nacionais e das contradições.
Dos nossos escritores, talvez Machado de Assis seja o brasileiro mais excepcional que existiu. Também mestre das peças de teatro e estórias curtas instigante como A Missa do Galo, de 1893 e reimpresso e anos anos depois em publicação formal. Muitas das obras apareciam nos jornais antes de publicação final.
O paradigma de Flora é o símbolo do povo brasileiro. Ela simboliza essa esperança em um possível terceiro reinado que seria seguido pela Princesa Isabel. Mas isso não aconteceu, apesar de todo mal que a monarquia havia feito no Brasil, ela caiu apenas por conta da abolição da escravidão. Logo, o que seguiu foi um período de constante intervenções militares.
A Flora morre na época de todas as mudanças mais drásticas, acompanhando seu espírito as contradições da mudança de polo político, o irmão conservador passa a gostar do governo republicano, e o irmão progressista passa a integrar a oposição, simbolizando um país que mantinha todo seu conservadorismo sob uma constante propaganda de renovação e progresso. No velório de Flora houve um momento apenas de paz entre os irmãos, no enterro de Flora, eles prometeram uma tregua em nome dela. Outra coisa interessante é observar é essa ideia de fechamento das crenças e de um Estado de sítio sem fim. O pacto não dura muito, mas sem dúvida a morte de Flora foi sentida por muitos.
Flora era disputada pelos irmãos, apesar disso, não conseguia escolher nem um nem outro, poderia dizer que Flora era namoradeira, mas o autor garantiu que não era esse o caso. Ele fala em uma hora : "Flora não dava para os namorados", assim, com todas as palavras. Machado era direto assim, nem um pouco pudico.
Parte do que precisamos saber sobre Esaú e Jacó já que como em Memórias Póstumas de Brás Cubas (o 'Barry Lyndon' de Machado), já está implícito nas primeiras páginas, antes de irmos aos personagens, ficamos sabendo da morte do Conselheiro Aires, diplomata e que seu diário (depois publicado seu diário no Memorial de Aires, último livro de Machado, de 1908), e já nos é informado que o último caderno do livro, o tomo I, correspondente exatamente ao livro que ser apresentaria aos olhos do leitor, ou seja, o capítulo perdido do diário pessoal de Aires é o que sentimentalmente e espiritualmente vamos ler no Esaú e Jacó.
E muito pode nos contar a história sobre dois irmãos que se odeiam, filhos de um casal, o velho Santos e Natividade, que pareciam com os "bons velhos judeus, Esaú e Jacó", em referência a ter filhos mais tarde na vida, coisa que não era comum naquela época. Machado também brinca de que queria dar o título de Pedro e Paulo e simplificar, mas preferiu a metáfora do simbolismo, que é todo o livro em si um grande símbolo das contradições da história do Brasil e de suas instituições mais sagradas.
Um era Pedro, que se torna médico e é monarquista e conservador e o outro irmão era Paulo, um advogado liberal, fã de todo aparato jacobino. Os dois são apaixonados e disputam o amor de Flora, garota indecifrável nas palavras do Conselheiro Aires que indaga em certo momento quem seria que venceria essa batalha, seria um terceiro, alguém comentou ao fundo.
Flora enquanto personagem do romance representa bem o povo brasileiro, assistindo passivo ao mudar dos tempos, as fachadas dos prédios (da confeitaria do Custódio que tem mudar de nome aparentemente),na cena mais genial do livro, a cena da "troca das tabuletas", uma espécie de invasão do clima de Revolução Francesa e de pseudo mudança de tudo, só que muito tempo depois, nessa cena, Aires se lembra das "tabuletas da juventude", ou seja, sobre a atitude panfletária de ser mais jovem e acreditar mais.
Aires descreve como dar um passeio no parque e do nada e na volta, ele descobre com choque que tinham declarado a república. Apesar de cair a monarquia, o autoritarismo era mantido e acelerado mostrando a ideia de inconstância política e a alteração da esfera pública e das formas de festejo cívico e burocrático também. O que Machado de Assis soube demonstrar foi essa hipocrisia para "inglês ver" tão tradicionais nos movimentos políticos brasileiros.
Machado descreve a hipocrisia de uma sociedade de ideologia de fachada, onde a referência dos gêmeos simboliza a elite do Rio de Janeiro tão preocupada com "coisas futuras", e busca na cabocla vinda do norte a orientação orientalista que faltava na vida pacote e endinheirada deles, de evitar cheiros e pobres. Mas a revelação e a dependência desse tipo de orientalismo é comum na estética realista de Machado.
A ironia do livro capta o momento de troca de personalidade, os irmãos que se odiavam e tudo disputavam representa a elite achando clara em ovo para se diferenciar, como quando igual na bíblia, eles eram "filhos da mesma mãe", por isso que ideologia zoava tão confuso. A lição é que a republicana seguiu um ordenamento militar, e ali foi fundada a ideia de intervenção militar na política, em parte.
A lição de Machado é que ao compasso da proclamação da República, quem ficou feliz secretamente foi o irmão conservador, eles trocam de opinião e só se reúnem quando Flora está fora de alcance.
A inexplicável Flora adoeceu por todos quererem forçar ela a se casar com alguém, quando ela não queria. Em uma das cenas finais, Flora era diagnosticada com "mal de moça bonita", e que logo passaria, nas palavras cordiais de Aires que leva a moça Flora para morar com sua irmã para fugir um pouco da pressão que estava sofrendo, lá recebe uma proposta de casamento irrefutável, tão irrefutável que ela mesma ao negar acabou ficando doente. Aqui há todo um debate sobre a pressão e a obrigatoriedade de se casar que culmina na tragédia final.
Nem Flora escolheu um lado, nem o povo brasileiro se livrou do autoritarismo, os sonhos do terceiro reinado com a princesa Isabel e de uma ascensão dos tempos de letra e música eram apenas sonho para Flora e Aires.
Mermo coisa pensou em "Esaú e Jacó"(De Machado de Assis), o conselheiro Aires quando Flora morreu e não teve que casar com ninguém. O livro Inocência é um marco da literatura e foi "respondido" por Machado de Assis em uma de suas obras, Esaú e Jacó, criando uma personagem parecida com Inocência, Flora que também morre por não querer casar (mesmo tema). Algumas pesquisas chegam a comparar Flora com as mulheres de origem nordestina.
Aqui Flora significa Fauna e Flora (significa uma metáfora do Brasil), o que os cientistas e naturalistas vieram documentar de novo e diferente no Brasil, no livro Inocência (filme de 1983), por exemplo, é o estado de dúvida dos costumes medievais de uma terra que não teve Idade Média. Esse livro tem como inspiração pois o clássico antológico de Taunay que bebem da mesma fonte, falam da mesma coisa, só que com essa brutalidade toda já mastigada nas estruturas de boas maneiras e etiquetas da típica burguesia moderna, contrastando com o relato de Brasil Império.
Para entender o livro, precisamos, ver um pouco da linha do tempo anterior um pouco aos acontecimentos de Esaú e Jacó, que embora conte sobre a gravidez e a juventude da geração dos pais dos gêmeos, escolhe focar na transição temporal de 1888 para 1889 e toda a agitação política dessa época. Flora simboliza o feminino, o desejável, o neutro, o conspiratório e também o ideal de povo e sociedade perdidos nas nossas transições.
Muitos associam, contraditoriamente, o início do nosso período republicano com o nascimento do tipo de poder político associado a extrema direita (que se declara monarquista), dentro dessa ideia do poder sitiado e centralizado nos grandes centros militares positivistas que seguiam a doutrina de Comte mais que a própria França fazia.
Nas palavras um pouco radicais de Aristides Lobo, o povo teria assistido ao advento da república bestializados e retirados do processo. Até que ponto essa fala não seria uma forma de reflexão sobre a falta de participação política geral da participação da época, já que nossa primeira constituição na monarquia também tinha sido fora da participação geral e das outras províncias, gerando uma série de revoltas. Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente nosso do período republicano, por exemplo, tinha participado como o general responsável por reprimir os liberais revolucionários de 1848 da Praieira.
No livro Esaú e Jacó, publicado no ano da morte da esposa do escritor, mostra no primeiro capítulo a ida de Natividade na Cabocla que diria sobre o futuro de seus filhos gêmeos. Os gêmeos, fundamentais para o entendimento da trama, são Pedro e Paulo, completamente opostos e completamente parecidos, como veremos mais para a reflexão do fim do livro.
Santos fica feliz com a notícia de ser pai, como Rebeca, da bíblia, que era mãe de Esaú e Jacó. O enredo do livro aborda a transição da monarquia para a república e seus humores diversos. Conhecemos vários personagens importantes e integrantes da trama e que logo, "roubam" por assim dizer a cena no livro. Como Flora e Aires.
Vale comparar não apenas com Rebeca, mãe de Esaú e Jacó das estórias da bíblia, como o próprio livro, os irmãos brigam, cada um com sua ideologia. Na bíblia, a briga gerou duas nações, na política brasileiro, o problema detectado por Machado é que filhos de mesma mãe não teriam uma diferença tão radical assim, como se imaginava ter.
Aires é o narrador-diplomata (apenas vemos o que ele vê), um lugar melhor por assim dizer que Brás Cubas, um "defunto autor" é substituído aqui pela figura polêmica do Conselheiro Aires, o narrador-diplomata que analisa, distancia, cobre e encobre. Aires é conselheiro/diplomata e amigo da família de Santos e Natividade, os pais dos gêmeos Pedro e Paulo, que crescem idênticos fisicamente, mas completamente diferentes na personalidade. Paulo, republicano, ingressa na faculdade de Direito, e Pedro, monarquista, cursa Medicina.
Já Flora é o centro da explicação filosófica geral do livro e também é importante dar esse spoiler aqui para parar de ler se não quiser, Flora a inexplicável, era o motivo da disputa adicional dos gêmeos para além das tramoias políticas. Flora tinha 15 anos no início da narrativa, filha de Batista (um político meio submisso a mulher) e dona Cláudia, que queria que o marido ganhasse mais poder a qualquer preço.
Quando ao pai de Flora é oferecido a província de Mato Grosso, aqui temos mais uma vez a referência ao livro Inocência de Visconde de Taunay (sendo uma área em volta do caminho do sertão também), um livro que acaba aceitando, mesmo com Flora pedindo para Aires intervir e pedir ao seu pai para eles ficarem na capital, isso ocorre logo do início para o meio da trama, e Aires tenta ir falar com ele e quando se dá conta, ele dá parabéns ao amigo e diz que é perfeito para ele, ou seja, não se mete na questão que ia se meter.
Mas nada disso era necessário, ali Flora teve a primeira febre, é verdade. Foi engraçado a cena de Aires vendo os prêmios das caçadas de Batista, o pai de Flora, ele mudou de ideia na hora.
Natividade também é um destaque enquanto personagem, Aires lembrava de ter sido preterido nos bailes da juventude e que ela que veio de origem humilde se casou com Santos, importante capitalista local. Também era capitalista Nóbrega, sujeito que se apaixonou pela visão de Flora, quando esta doente passar um tempo na casa de Dona Rita, a irmã do conselheiro Aires. Natividade havia pedido ajuda com os gêmeos, temendo alguma rusga, ou mal dizer entre eles. Natividade é como Rebeca, mãe de Esaú e Jacó, cujo a briga gerou duas nações distintas na bíblia.
Já que foi quando em 15 de novembro a monarquia caiu. pouco depois do episódio do baile da Ilha Fiscal, localizada na Baia de Guanabara, foi ali o último baile da monarquia, por ali, os gêmeos acabaram não aparecendo.
Flora ali pensou muito sobre o que mais gostava de fazer, música, piano e pintura e como considerava um "tempo para si", percebendo que ela estava pensando algo ali, ele perguntou para ela o que era, e Flora passou um tempo falando que não era nada, Aires então repete como narrador aquilo que ela estava pensando, "Toda alma livre é imperatriz!", e aí acabou o que seria a metáfora da expectativa do "terceiro reinado" da Princesa Isabel e da própria liberdade de escolha de Flora, essa cena é misteriosa pois não vemos a descrição do baile ou de qualquer outra pessoa, só vemos esss conversa etérea onde Aires lê a mente de Flora e repete o que ela pensava em sintonia.
Quando Flora fica doente, Aires também ataca de médico e sugere de homeopatia e passagem para outro mundo com ingresso comprado por ele, mas Flora acredita com razão que ele estava caçoando dela pelo seu tom e fala que não gostava de médicos e nem tisanas.
Depois disso, Aires passa a tentar participar da "escolha entre os gêmeos", em um encontro na rua do ouvidor na porta de uma loja, ele comenta sobre a defesa de Flora contumaz entre aquele e o outro, muito como ele mesmo, de maneira diplomática defendia ambos os gêmeos, mas quando ela parte, ela ai embora como uma dessas tardinhas, e fala por último ao ser perguntada sobre os irmãos querendo vê-la,
Vi muitas interpretações creditando a morte de Flora ao fato de estar perdidamente apaixonada pelos dois e indecisa, mas se você ler bem, não é nada disso. É preciso uma leitura muito atenta aos detalhes e sabendo que tudo isso é um relato do nosso não tão confiável narrador, que em toda sua diplomacia do cargo, havia sido ótimo funcionário, com exceção da sua aventura na Venezuela com Carmem, uma italiana.
"Ambos quais?" perguntou ela antes de falecer elucidando que por fim ela confessou não ver diferença. Em uma das cenas que Aires analisa os desenhos de Flora, ela entrega um desenho dela não assinado, quase uma confissão de culpa, de duas cabeças unidas como se fossem uma só, Aires rasga o desenho em dois e guarda em dois pedaços no bolso. Cena mais simbólica não há e sinistra também.
Flora morre de febre ao recusar um prestigioso casamento com Nóbrega, que Rita havia falado que não se podia recusar, ela que era filha do político Batista e de Dª Cláudia, descrita um pouco como manipuladora e ambiciosa.
Com a nomeação de Batista para presidente de uma província do norte, a jovem, dividida entre os gêmeos, se desespera, sem querer deixar o Rio e pede ajuda a Aires. Com a proclamação da república, a moça acaba permanecendo na cidade. No entanto, ainda indecisa, resolve ir para a casa da Rita, irmã do Conselheiro Aires, e assim ter mais tempo para escolher um dos irmãos.
Antes de decidir, a jovem adoece e morre. Os irmãos sofrem, mas logo dão curso às suas carreiras. Flora morre de febre ao recusar um prestigioso casamento com Nóbrega, que Rita havia falado que não se podia recusar instigando a ansiedade da moça que veio para casa de Rita como uma flor que nasce no meio de concreto velho.
Os dois se enfrentam na vida política como deputados em lados opostos no parlamento. Com a morte de Natividade, atendendo a seu último pedido, cessam os desentendimentos. A paz dura pouco, logo os irmãos voltam a trocar farpas e terminam separados.
Um retrato do Brasil de 1888-1889, penúltimo livro de Machado de Assis, publicado em 1904, tanto Esaú e Jacó como Memorial de Aires tem como personagem o sujeito que escreveu o memorial (seu diário pessoal), o mais curioso de tudo é que Machado de Assis era cheio de mistérios biográficos, uma dessas lendas, diz que era conhecido como o "Bruxo do Cosme Velho" porque foi visto uma vez queimando cartas e papeis em um caldeirão, claro que ele escondia segredos. Existe até um livro de narrativa livre que imagina o conselheiro Aires dos dois livros como um político em Brasília hoje em dia.
Falo isso porque para o leitor atento, como disse o Machado no livro, é necessário 4 estômagos dentro do cérebro para entender alguns temas delicados, ou seja, não dá para ler esperando tudo se dizer e explicar, são quase como trabalho de detetive os livros de Machado de Assis, e Esaú e Jacó junto com Memorial de Aires, ambos os livros tratam da vida de Aires, mas o primeiro é um romance clássico e o segundo em formato de diário pessoal entregava uma impressão da conciência, que para muitos era em parte uma reflexão da grande vida de Machado, que era vista por ele como comum.
Logo na primeira página de Esaú e Jacó, vemos que Aires morreu e que seus pertences e memórias constituíram em alguns cadernos, mas logo o último, que corresponde a linha do tempo do livro do Esaú e Jacó que acabara de se iniciar agora, ou seja, começamos do fim de novo, mas com uma dica, todos os tomos são correspondentes ao período do Memorial de Aires (é lido como um diário do diplomata Aires, sua vida e suas conquistas).
Então o último capítulo desses tomos são apresentados na primeira página do livro, seriam os sentimentos pessoais não neutros que na verdade estão na interpretação correta do primeiro livro publicado, o Esaú e Jacó, se lermos com atenção ao livro, aquela mesma atenção que temos as screwball comedies americanas por causa dos códigos de censura, temos um livro que é honestamente, chocante, diz tudo na singela tentativa geral de explicação do caráter humano. É tão grave ali o que há dito que não se diz, se oculta. Tem que ser quase um detetive espiritual para descobrir. A arte da literatura faz a gente perceber que um livro pode ter mil temas e ainda assim, esconder outros.
Ou seja, se ficou faltando lógica no outro livro, que parece ao primeiro olhar um pouco sobre elites tediosas, na verdade, o todo do quebra cabeça mostra uma história toda diferente do imaginado inicialmente. Um dos momentos com os gêmeos, ele aconselha mesmo e fala com eles de livros e citações, sabendo que Paulo já se aventurava a escrever, mesmo que com tom de oposição, obtinha a ajuda de sua mãe para publicar, mesmo que esta procurasse prontamente esconder aqui e ali palavras que poderiam ofender demais os amigos e compatriotas gerais.
Como foram seus últimos dois livros acabam sendo muito biográficos, apesar de não ser também, como Brás Cubas ou Quincas Borbas não eram exatamente a pessoa de Machado de Assis, muito menos o Bento Santigo (Bentinho) de Dom Casmurro (1899) era Machado de Assis, eram o retrato do homem da elite, dos bem nascidos, aqueles que tinham escravos, a classe dominante, mas em ponto de vista que parecia muito familiarizado com esses caras, quase um estudo antropológico do extrato burocrático brasileiro da época.
Esse poder de crítica de Machado vinha também do fato de trabalhar no departamento da agricultura na efervescência dos debates sobre as leis de abolição progressiva e dos boatos de que teria a abolição a qualquer momento que o Memorial de Aires aborda.
Ele critica o reformismo da abolição feita para ser uma rixa entre os barões do café de 1850 em atitude contra monarquia de maneira simbólica, opinião completamente avessa ao do romântico Joaquim Macedo de "A Escrava Isaura". Se pensarmos José de Alencar, podemos ver a mesma crítica. Ele que era netro de Bárbara de Alencar foi logo ser senador pelo Partido Conservador.
Isso pintava os abolicionistas da época com cores muito utópicas e românticas, até de pensar na "escrava branca" (uma utopia ao estilo do socialismo utópico rural, um naturalismo ao estilo de Emile Zola), Machado um antecessor da pegada de novelas e realismo latino americano já trazia abaixo a ideologia do abolicionismo meia boca que impregnava a política da época. Isso sem pensar na necessidade do capital e renda dessas pessoas que jogadas a sua própria sorte, na espera da venda da propriedade.
Em Memorial de Aires vemos uma outra crítica, já que Fidélia, viúva com quem Aires flertava antes do tempo do livro de Esaú e Jacó era de uma família que reclamava de que com a abolição os escravos poderiam ficar desvalidos, claro que isso era apenas desculpa de uma elite que não aceitou muoto bem as novas leis e que foi ela mesma livre de responsabilidade de prover para os escravos mais velhos, que eram abandonados assim quando não podiam trabalhar mais.
Fidélia é uma filha do Barão de Pia-santa no Vale do Paraíba e como não agradou o pai com o primeiro casamento, esconde de todos que tem preferência já, esconde até de Aires, que tem ou um encontro ou um sonho com ela, com quem conversam sobre a necessidade de casar. Ela casa com o outro e os dois vão embora do Brasil, uma metáfora do liberalismo fora de lugar e que vai embora sem se preocupar com nada nem ninguém e ainda defendia o pai em uma das cenas, gerando desencanto em Aires. Pedro pode ser uma referência ao Imperador, e Paulo pode ser o Paulo de Lucíola de José de Alencar.
Já Flora, a pretendente dos gêmeos, a inexplicável já lembra a ideia de inexplicável como alguém que não se pode rotular, ao tentar focar na música e nas artes, ela tentava apaziguar o medo da sensação de completa anarquia política. Também pudera, os ânimos da primeira república, a república em armas (momento triste do Estado de Sítio e do velório de Flora) com Deodoro da Fonseca, com mudanças, como o advento do Código Penal Brasileiro, a separação da igreja e do Estado e o casamento civil, laicização dos cemitérios, com uma crise econômica e uma grande inflação que culminou na crise do Encilhamento, como um estouro em uma bolha decido a políticas de Ruy Barbosa.
A contradição que Machado percebeu no livro da política brasileiro sobre as oposições consentidas (filhos de mesma mãe), sofreram quando no governo constitucional começou a ter forte intervenção das tendências federalistas da sociedade civil e de parte dos militares que levou a contraditória dissolução do Congresso Nacional.
Foi de completa transformação simbólica e semiótica, mas de extremo conservadorismo, já que a facção dos antigos donos de escravos agora estava reunida nas diretrizes também do novo governo, essa mudança na oposição política brasileira, fez de Pedro depois deputado eleito como o irmão agora ficar mais ao lado das pautas do governo (quando este era de oposição inicial a sua ideologia política) e de Paulo, que tinha festejado muito a república nas ruas e bares afora, agora se alinha com a oposição, o país passou por três constituições, a primeira promulgada em 1891, no ano também da eleição de Deodoro da Fonseca , e somente com Prudente de Morais que o voto voltou a ser direto.
Fidélia casou de novo sim, mas não com Aires. Casou com Tristão, português adotado por casal brasileiro que não podia ter filhos e que esqueceu fácil deles, e que era junto com Fidélia um retrato fingido do país, Fidélia fingia que ligada para as cerimônias, para sua fama de dama que instigou um "Romeu e Julieta" local com seu primeiro marido, para ser uma amiga íntima de Aires, mas casar, ele não casou, apenas quando jovem e não conviva muito com a esposa até ela morrer. Todos são sem coração no universo do "memorial de Aires", mas a piada de querer transar fixamente com a filha do barão de escravos é bem engraçado, pensando que ele coloca no plano do nojo alguns comportamentos dos "amigos".
Esaú e Jacó, penúltimo livro escrito por Machado de Assis, destaca-se pela narrativa consciente, segura, aliando perfeitamente o tom irônico e despretensioso à análise da fatalidade da condição humana. Sua maior importância se deve ao fato de ser o romance em que o autor examina as transformações políticas e sociais de modo mais denso. Nele, Machado compõe uma síntese do Brasil às vésperas da proclamação da república, um consistente retrato do espírito da época.
Machado, relativista, mostra que o destino do homem permanece uma questão de fé, tanto para a religião quanto para a própria ciência. O mesmo ocorre com a república e a monarquia, já que a disputa entre ambas é aqui levantada como mera questão partidária, de interesse de grupos políticos que não são diferentes na aparência e representam mera troca de poder. Machado compõe Pedro e Paulo nessa perspectiva, diferentes, mas análogos, e como, nesse jogo de contraditórios, Flora, metonímia do Brasil, se confunde e definha. A interlocução direta do narrador ao leitor acentua sua consciência de versão, de ficção.
Pedro: Jovem monarquista. Formado em medicina, apaixona-se pela jovem Flora e a disputa com seu irmão. É amigo do Conselheiro Aires, por quem tem grande estima. Torna-se deputado republicano conservador e, no fim da narrativa, rompe laços com seu irmão.
Paulo: Irmão gêmeo de Pedro, republicano, formado em direito. Como o irmão, apaixona-se por Flora e a disputa com ele. Sofre com a morte da amada. É amigo do conselheiro Aires. Elege-se deputado reformista ao final da narrativa, rompendo definitivamente laços com Pedro.
Flora: Jovem misteriosa, firme e ingênua a um só tempo. Apaixona-se pelos gêmeos Pedro e Paulo. Indecisa, acaba ficando perturbada mentalmente e morrendo. Pode ser entendida como a metonímia do Brasil, sem esperança entre os jogos de interesse políticos.
Natividade: Mãe de Pedro e de Paulo, Natividade é uma mulher forte e condescendente. Viveu para os filhos, os amigos e a família. Tentou, em vão, estabelecer a paz entre os gêmeos, sonhando toda a vida com a “grandiosidade” anunciada pela cabocla.
Conselheiro Aires é aquele que as mães empurram para orientar seus filhos, já que ele teria experiências diversas. A principal tarefa dada ao Aires era simples, descobrir se Flora gostava de Pedro ou Paulo.
Conselheiro do império, Aires é um homem viajado, diplomata experiente e tido em alta conta pelos amigos. ajuda Flora a lidar com seu sofrimento. É refinado, discreto e um tanto cético. Vale observar o papel de Santos, pai de Pedro e Paulo, marido de Natividade, queria ele que os gêmeos fossem uma menina e um menino, para "não ter disputa", e não adiantou nada, eram dois varões. Homem de origem humilde, que fez fortuna com usura e tornou-se banqueiro. De fé duvidosa, converte-se ao espiritismo.
Batista: Pai de Flora e marido de D. Cláudia. É um oportunista, sem opinião firme e influenciável facilmente. Considera-se conservador, mas quando se dá a queda destes, alia-se aos liberais. Não consegue ter o seu sonhado retorno à política concretizado.
O resultado é que Aires fala com ele pensando que Flora iria com o pai para uma das províncias, por isso ele tenta conversar com ele. Mas isso não importa, com advento da república, Flora permanece no Rio de Janeiro e depois acaba ficando uns tempos na casa de Rita, irmã de Aires.
Acho que a principal metáfora de Flora e os gêmeos é que eles representam a ideologia de esquerda e direita, liberalismo e conservadorismo. Flora Batista representa o Brasil e o povo, que não sabem ideologicamente quando que as reformas ficam só mo papel ou na intenção do político.
Aires que em tudo concordava com os outros, exercia a diplomacia, e ele tinha a publicação do Memorial onde abordava alguns temas que escrevia e ponderava. Flora defendia os gêmeos e defendia eles e a diferença entre eles, assim também se encontrava o povo brasileiro dessa época, sitiado em posições aparentemente antagônicas. No capítulo "Entre Aires e Flora", Flora observa que Aires fazia isso de agradar a todos e ele fala então para ela, "a senhora é boa" e arrematou com, - - posso concordar com a senhora porque é uma delícia ir com as suas opiniões, disse Aires para a ruiva, essa interação aconteceu na Rua do Ouvidor.
E é exatamente Rita que falou para o irmão com as folhas do ano correspondente a proclamação da república período que Flora viveu, 1889, é a parte removida do diário, ou seja, a poética aqui é que jamais saberemos. Ficou rasgada na página do livro de Aires.
Muitos questionam se Aires era biograficamente Machado e que ele teria lapidado o personagem com críticas a si próprio, ou mesmo a junção de vários tipos que circulavam no Rio de Janeiro nessa época. É o romance de escrita mais densa e rebuscada, revelando a total maturidade de um dos últimos livros de Machado de Assis, o nato brasileiro que soube ajudar a criar a forma de escrita do novo português brasileiro.
Algumas cenas marcantes do livro são a da tabuleta, a primeira cena de esoterismo com a vidente, a cena onde os irmãos compram amuletos e antiguidades de suas ideologias políticas, comprando retratos de Robespierre e Luis XVI.
Outra cena boa é o baile da Ilha Fiscal, o último baile da monarquia, onde a elite gastou tudo e mais um pouco ao se despedir do poder e Flora e Aires conversam sobre toda alma livre ser imperatriz e ele adivinha o pensamento dela. Outro bom capítulo é "O terceiro", sobre a possibilidade de um terceiro pretentente.
Outra cena marcante está na minha edição na pagina 211, quando Aires se despede de Flora e que ele enseja para eles fugir juntos de maneira galante, sabendo que ela ia morrer mesmo mas ela sabe que ele está só brincando, a cena na Rua do Ouvidor onde eles conversam e são espiados, a cena do enterro marcando a tentativa de paz entre os irmãos.
No fim, todos morreram um pouco com a morte de Flora. Ela foi descrita como uma menina ruiva e apaixonada pelas artes.
Citação do último diálogo entre Aires e Flora:
" -Por que não vai a Petrópolis? Concluiu.
-Espero fazer uma viagem mais longa, muito longa.
-Para outro mundo, aposto?
-Acertou.
- Já tem bilhete de passagem?
- Comprarei no dia do embarque.
- Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas passagens; melhor é comprar antes, eu me encarrego disso, comprarei outro para você, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve ser fastidiosa; ás vezes, os próprios conhecidos aborrecen, como sucede neste mundo.
-A gente de bordo é vulgar, mas o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as duas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.
O senhor está caçoando comigo, eu creio que até estou com febre. "
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