Amnésia (2000) questiona cultura do esquecimento e da verdade linear com crítica do vigilantismo do herói e ao gênero policial
O filme começa com uma foto polaroide de um homem morto. À medida que a sequência vai para trás, a foto reverte para seu estado não desenvolvido, entrando na cena antes que o homem seja baleado na cabeça. O filme continua, alternando entre sequências em preto e branco e cores. As sequências em preto e branco começam com Leonard Shelby, um ex-investigador de seguros, em um quarto de motel falando com um desconhecido oculto. Leonard conta tem amnésia e é incapaz de armazenar memórias recentes, o resultado de um ataque de dois homens. Leonard explica que ele matou o agressor que estuprou e estrangulou sua esposa Catherine, mas um segundo bateu nele e escapou. A polícia não aceitou que havia um segundo agressor, mas Leonard acredita que o nome do agressor é "John G" ou "James G". Leonard investiga usando notas, fotos polaroides e tatuagens para manter o controle das informações que ele descobre. Dirigido por Christopher Nolan, com história criada por Jonathan Nolan e estrelando Guy Pearce, Jorja Fox e Carrie-Annie Moss, foi indicado ao Oscar de edição e melhor roteiro original
Leonard se lembra de Sammy Jankis, outro amnésico, de seus dias na indústria de seguros. Após testes confirmarem a incapacidade de Sammy de aprender tarefas através da repetição, Leonard acreditava que sua condição era na melhor das hipóteses psicológica e recusou sua reivindicação de seguro.
As sequências de cores são mostradas de forma inversa cronologicamente. Na cronologia da história, Leonard faz uma tatuagem da placa de John G. Encontrando um bilhete em suas roupas, ele conhece Natalie, uma bartender que se ressente de Leonard porque ele usa as roupas e dirige o carro de seu namorado, Jimmy Grantz.
Depois de entender a condição de Leonard, ela usa-o para fazer Leonard levar um homem chamado Dodd para fora da cidade e oferece-se para executar a placa como um favor. Enquanto isso, Leonard se encontra com um contato, Teddy, que ajuda com Dodd, mas avisa sobre Natalie.
Leonard descobre que ele já havia anotado sua Polaroid de Teddy, avisando-se para não confiar nele. Natalie fornece a Leonard a carteira de motorista para John Edward Gammell, o nome completo de Teddy. Confirmando as informações de Leonard sobre "John G" e seus avisos, Leonard leva Teddy a um prédio abandonado, levando aonde ele atira nele.
Na última sequência em preto e branco, Leonard se encontra com Teddy, um oficial disfarçado, que encontrou "John G", Jimmy, o qual Leonard procura, e direciona Leonard para o prédio abandonado. Quando Jimmy chega, Leonard o estrangula fatalmente e tira uma foto polaroid do corpo. À medida que a foto se desenvolve, o preto e branco transita para a sequência final de cores. Leonard troca de roupa com Jimmy, ouvindo-o sussurrar "Sammy". Como Leonard só contou a história de Sammy para aqueles que conheceu, ele de repente duvida do papel de Jimmy. Teddy chega e afirma que Jimmy era John G, mas quando Leonard está impassível, Teddy afirma que ele o ajudou a matar o verdadeiro agressor há um ano, e ele tem usado Leonard desde então.
Teddy ressalta que, como o nome "John G" é comum, Leonard vai ciclicamente esquecer e começar de novo e que até o próprio Teddy tem um nome "John G". Além disso, Teddy afirma que a história de Sammy é a própria história de Leonard, uma memória que Leonard reprimiu para escapar de sentimentos de culpa, e que na verdade sua esposa está viva e o abandonou.
História por trás do filme
Em julho de 1996, os irmãos Christopher e Jonathan Nolan fizeram uma viagem de Chicago para Los Angeles, enquanto Christopher estava mudando sua casa para a Costa Oeste. Durante a viagem, Jonathan apresentou a história para o filme para seu irmão, que respondeu com entusiasmo à ideia. Depois que eles chegaram em Los Angeles, Jonathan partiu para Washington, D.C., para terminar a faculdade na Universidade de Georgetown.
O misterioso personagem assassino conhecido apenas como "John G." era na verdade uma homenagem ao professor de roteiro da Universidade de Georgetown de Jonathan na época, John Glavin. Christopher pediu repetidamente a Jonathan para lhe enviar um primeiro rascunho, e depois de alguns meses, Jonathan cumpriu.
Dois meses depois, Christopher teve a ideia de contar o filme ao contrário, e começou a trabalhar no roteiro. Jonathan escreveu o conto simultaneamente, e os irmãos continuaram a corresponder, enviando-se umas às outras revisões subsequentes de seus respectivos trabalhos. Christopher inicialmente escreveu o roteiro como uma história linear, e então "voltaria e reordenaria do jeito que está na tela para verificar a lógica". Nolan também foi influenciado pelo conto "Funes, el memorioso", do escritor argentino Jorge Luis Borges. "Acho que Memento é um primo estranho para 'Funes, the Memorious'— sobre um homem que se lembra de tudo, que não pode esquecer nada.
O conto de Jonathan, intitulado "Memento Mori", é radicalmente diferente do filme de Christopher, embora mantenha os mesmos elementos essenciais. Na versão de Jonathan, Leonard se chama Earl e é paciente em um hospício. Como no filme, sua esposa foi morta por um homem anônimo, e durante o ataque à sua esposa, Earl perdeu sua capacidade de criar novas memórias de longo prazo. Como Leonard, Earl deixa anotações para si mesmo e tem tatuagens com informações sobre o assassino. No entanto, no conto, Earl se convence através de suas próprias anotações escritas para escapar do hospício e assassinar o assassino de sua esposa. Ao contrário do filme, não há ambiguidade para que o protagonista mate o homem anônimo.
Em julho de 1997, a namorada de Christopher Nolan (mais tarde esposa) Emma Thomas mostrou seu roteiro para Aaron Ryder, um executivo da Newmarket Films. Ryder disse que o roteiro era, "talvez o roteiro mais inovador que eu já tinha visto", e logo depois, foi escolhido pela Newmarket e recebeu um orçamento de US$ 4,5 milhões.
A pré-produção durou sete semanas, durante as quais o local principal de filmagem mudou de Montreal, Quebec, para Los Angeles, Califórnia, para criar uma atmosfera mais realista para o filme. As filmagens ocorreram de 7 de setembro até 8 de outubro de 1999, 25 dias. Pearce esteve no cenário todos os dias. Apesar dos três atores principais; Pearce, Moss e Pantoliano; terem atuado juntos apenas no primeiro dia, todas as cenas de Moss foram terminadas na primeira semana, incluindo as cenas em sua casa, no bar, no restaurante que ela trabalha e quando ele se encontra com Leonard pela última vez.
Pantoliano retornou para as filmagens na segunda semana para continuar suas cenas. No dia 25 de setembro, a equipe filmou a cena de abertura onde Leonard mata Teddy. Apesar da cena ser mostrada ao contrário, Nolan usou sons normais.
Para a tomada do cartucho da bala voando para fora da arma, o cartucho tinha de cair em frente a câmera, porém constantemente saia do enquadramento. Nolan foi obrigado a estourar o cartucho fora da câmera, porém na confusão, a equipe filmou a cena ao contrário. Eles tiveram que fazer uma cópia da cena e reverter a cena para faze-la ir para frente de novo. "Essa foi uma das altas complexidades do filme", disse Nolan.
No dia seguinte, 26 de setembro, Larry Holden retornou para filmar a sequência onde Leonard ataca Jimmy. Após as filmagens terminarem, as narrações de Pearce foram gravadas. Para as cenas em branco e preto, Pearce recebeu liberdade para improvisar sua narrativa, buscando certa verossimilhança típica da linguagem dos documentários.
O Travel Inn em Tujunga, Califórnia, foi repintado e usado como os quartos de Leonard e Shelby. As cenas na casa de Sammy Jankis foram filmadas em Pasadena, enquanto a casa de Natalie ficava em Burbank. A equipe planejou filmar o prédio abandonado, onde Leonard mata Teddy, em um prédio de estilo espanhol que era propriedade de uma companhia ferroviária.
Entretanto, uma semana antes das filmagens começarem, a companhia colocou vários vagões do lado de fora do prédio, tornando o exterior não filmável. Como o interior do prédio já havia sido construído como um cenário, uma nova locação teve de ser encontrada. Uma refinaria de petróleo perto de Long Beach foi usada
Explicando a estrutura e direção do filme
O filme é estruturado com duas linhas temporais: as sequências em cores alternadas com sequências em preto e branco. As últimas são colocados juntas em ordem cronológica. As cores, embora mostradas para a frente (exceto a primeira, que é mostrada ao contrário), são ordenadas ao contrário. Cronologicamente, as sequências em preto e branco vêm primeiro, as sequências de cores vêm em seguida.
Pode parecer complexo mas é simples, uma vez que essa transição suave da sequência em preto e branco para a sequência de cores, ocorre em nível temporal e espacial, que necessariamente nos remete a uma transição de tempo. Existe no Youtube um vídeo, legendado, do próprio Nolan explicando a estrutura do filme:
Nolan fornece ao espectador as pistas necessárias para decodificar a trama enquanto assistimos e nos ajudar a entender a cronologia. O embaralhado se torna atrativo. As sequências de cores incluem uma breve sobreposição para ajudar a clarear ao público sobre o fato de que eles estão sendo apresentados em ordem inversa. O objetivo do sequenciamento reverso fragmentado é forçar o público a uma experiência simpática da capacidade defeituosa de Leonard de criar novas memórias de longo prazo, onde eventos anteriores não são lembrados, já que o público ainda não as viu. Um gráfico tenta explicar em sentido técnico a linha temporal do filme, acompanhe:
Crítica do filme
Desde o seu lançamento, Amnésia tem sido um tema amplamente notável de discussão cinematográfica, principalmente por sua estrutura narrativa única e temas. Aqueles que procuram explicações sobre o enredo do filme ou recorreram a fóruns online, quadros de mensagens ou material acadêmico e fóruns para manter suas próprias hipóteses pessoais.
A primeira cena que vemos em tela de Amnésia é, na verdade, a última da trama: o protagonista mata um homem, que depois descobrimos ser Teddy, e tira uma fotografia do seu corpo caído. A passagem é mostrada em reverse motion, uma técnica cinematográfica que apresenta as ações na ordem invertida. A história vai sendo contada do fim para o início e percebemos que o protagonista matou Teddy porque ele, supostamente, tinha sido responsável pelo crime que destruiu a sua vida. Leonard decide avançar com a vingança e o mata, confiando no recado que tinha deixado para si mesmo na foto de Teddy: "Não acredite nas mentiras dele. Foi ele, mate-o". A partir deste momento, a narrativa vai dar conta do caminho que o levou até ali, o processo de investigação que o levou a concluir que aquele era o homem que procurava, pois afinal a amnésia de Leonard instaura a dúvida no espectador: será que ele matou a pessoa certa?
Eu já expliquei melhor a técnica de Nolan analisando outro filme seu, Tenet (2020), mas nunca é demais explicar de novo. Baseado em um dos meus livros favoritos de cinema, A Práxis do Cinema, de Noel Burch, podemos analisar como qualquer transição de uma cena para outra dentro do cinema sempre gera sentido, confirmativo, negativo ou dialético, pela seu valor de transição temporal, também conhecida como "elipse de tempo". Mesmo quando temos uma elipse de tempo curta, como transitar o olhar de um rosto para o outro em diálogo, ou quando um em uma cena alguém vai dormir, a dela esmaece até ficar preta e voltar em outra cena, ficando implícito que o personagem dormiu e o tempo e o dia passaram. Ou quando o casal se beija e a tela esmaece, voltando apenas no dia seguinte. Em todos esses momentos, estamos sempre falando de uma transição de tempo que não é, necessariamente, automática.
Há uma pedagogia do olhar construída tacitamente ao longo da História pela cultura ocidental, que difere das demais culturas como a oriental por buscar sempre uma "resposta" e um "sentido" linear nas narrativas. Ao inverter toda essa premissa de aspectos visuais "dados", Amnésia reconstrói as noções de espaço e tempo de maneira a contar uma história com poucos personagens, elementos e objetos. Se contada de maneira tradicional e linear a trama é simples. A graça do filme é que ele teve seu roteiro propositalmente modificado para se encaixar na proposta estética e técnica do filme. A genialidade está em, através da compreensão ampla das técnicas de roteiro e como elas pode ser traduzidas em técnicas formais da linguagem temporal do filme, tornar o o mesmo atraente pela sua formalidade e linguagem única.
Nolan perturba completamente o senso de identidade do protagonista Leonard Shelby e cria uma situação na qual ele deve criar significado para sua existência. Só que essa condição é imposta também ao espectador, levando a identificação com Leonard pois afinal ele é o única fonte inicial da trama. A necessidade de Leonard de afirmar sua auto-identidade, porém, vem ao custo de sacrificar a identidade dos outros, particularmente a de Teddy ou qualquer outro suposto “John G". Aqui, há uma forte referência a Psicose (1960), tendo inclusive uma cena de chuveiro também no filme.
Ironicamente, porém, ao eliminar Teddy, Leonard inadvertidamente criou as condições de sua própria morte existencial, uma vez que a narrativa que Teddy ajudou Leonard a construir é o que deu sentido à sua existência. Sem a motivação de encontrar e matar John G., não há mais propósito na existência de Leonard para guiar suas escolhas morais. Ao matar o único John G. a quem os “fatos” que ele tatuou em seu corpo o levaram, Leonard só conseguiu esmagar sua própria identidade e senso de propósito.
O mesmo vale para Natalie. Ele sabe que está gostando dela, e isso compromete seu método e até mesmo seu foco em perseguir John G. O filme trabalha cuidadosamente a construção do método de Leonard, a ponto de em certo momento o acharmos um grande detetive. Mas ao perceber três detalhes ao longo do filme, comecei a questionar. Primeiro, a foto de Natalie já estava riscada antes. O quarto de hotel ser trocado, também. E por, último, quando percebemos que Natalie mente para ele, temos certeza: seu método foi pro espaço.
A ideia do filme é que a verdade não possui uma linearidade, podendo sempre mudar conforme a perspectiva. Essa perspectiva do filme lembra muito dos conceitos do livro Construção Social da Realidade. A realidade não está dada e nem há um sentido linear para interpretá-la. Existe uma série de ideias, sons, cores e imagens que selecionamos prestar mais atenção do que outras, por uma série de fatores culturais e psicológicos. Imaginemos que uma pessoa se envolve em uma discussão na rua, e a pessoa a ofende. Mas a pessoa vai para casa, encontra a família. Ela pode tanto esquecer a briga e curtir o resto do dia, ou pode não relaxar mais e ficar só pensando naquilo o resto do dia.
Essas pequenas escolhas entre tempo, espaço e opinião; são a exploração mais interessante feita pelo roteiro de Amnésia. A técnica de apresentação temporal embaralhada das cenas foi só um truque de marketing baseado na edição do filme, tornando um "filme puzzle" para chamar a atenção. Mas o ouro está nos insights temporais pré estabelecidos pelo roteiro, criando aliterações e gaps para serem completados pela direção e montagem, como o elemento de falta de memória do protagonista. Então, alguns elementos clichês e arquétipos de roteiro são desfeitos pelo filme.
Por exemplo, o afeto imediato a um protagonista violento e vazio, apenas porque ele é um cara que parece honesto e "bonitão". A escolha do ator Guy Pearce foi muito importante por causa disso, encaixando muito com a impressão inicial que vai aos poucos mudando que o diretor queria passar. Todo elenco é muito bem escalado para os papeis, contando com as musas Jorja Fox (CSI: Investigação Criminal), que apesar de aparecer pouco no filme, representa com sutileza e elegância a esposa do protagonista; e Carrie-Annie Moss recém saída do primeiro Matrix, dá um show de interpretação na ardilosidade de sua personagem, fugindo totalmente da atuação de Trinity.
Assim, aos poucos, de afeto e admiração pela técnica e ponto de vista de Leonard, vamos percebendo certo sadismo de suas atitudes e egoísmo criando repulsa a seu ponto de vista (se você é uma pessoa normal, claro). Nisso, o filme questiona também a violência implícita dos filmes de ação e policiais. Será que se o protagonista mata 50 pessoas para completar sua missão e salvar uma pessoa, ele ainda pode ser considerado herói? O filme insere um questionamento a cultura do vigilantismo como sendo uma espécie de milicianato, que se disfarça nas boas aparências.
A coisa mais obscura sobre o filme não é perceber que Leonard está errado em seu método ou que ele realizar ou que já realizou sua vingança. A coisa que mais surpreende é percebermos que por trás da fachada de bom moço e tadinho de Leonard, se escondia um assassino frio, e que Teddy, que parecia um cara comum e bobo, era um policial que executava criminosos para "limpar" as ruas, usando o ódio e condição de Leonard a seu favor.
Entre os clichês derrubados, além do herói vazio e de que todo mundo que parece simpático e inofensivo é bonzinho, ele não salva a esposa, e nem mesmo vinga o crime (em tela). Ela não morreu e ele está defendendo sua memória, ela terminou com ele. O bom funcionário, sem interesses, e que ajuda o agente a completar sua missão, é também derrubado uma vez que o funcionário do hotel parece também o enganar. A mulher indefesa, vítima de abuso do namorado mau, na verdade ela estava sobre controle da situação e relacionamento, e o namorado mau era Leonard mesmo. A partir disso, podemos pensar que ela é uma mulher má, manipuladora, que se aproveita de Leonard. Mas no final descobrimos que ele é mau, então na verdade ela só parece gostar bastante dele e saber lidar com ele.
No final em aberto, não sabemos se a mulher o abandonou ou se foi Lenny que matou a mulher com as injeções de insulina, a pedido tenha dela. Mas temos certeza que ela não foi morta por estranhos invasores.
É como se Leonard, como qualquer pessoa, escolhesse aquilo que quer recordar e aquilo que prefere esquecer, não registrando o episódio nas suas notas, para que desapareça. Ou seja, ele escolhe como tecer sua história.
O filme, através de sua técnica extremamente primorosa e temática, nos leva a questionar mentalidades dadas, principalmente por aquilo que se passa enquanto narrativa de gênero. Como Travis de Taxi Driver, não é só pelo fato do protagonista narrar sua própria história em off, utilizando do dispositivo da narração em off para aumentar sua autoridade, por ele se preparar constantemente e ter um método todo específico de preparo, que vamos gostar dele. Na verdade, o filme parece questionar um dos clichês mais fortes do cinema e das séries: por quê achamos mais inteligente, científico e preparado os personagens que criam rotinas de preparo, quando são as rotinas justamente que viciam o método e furtam a visão de análises mais específicas e objetivas? Serial killers são metódicos, e nem por isso geniais.
Amnésia põe por terra a necessidade de preceitos específicos de gênero, questionando na essência da forma da trama e da linguagem do filme o que é primordial ou não no gênero, no caso, policial. Na verdade, a proposta em si do filme é o questionamento da fórmula, sem apresentar nenhuma perspectiva em seu lugar. A graça para Nolan da trama policial, é tirar o máximo possível o glamour do gênero. Não há muitas armas, não há um fio de trama que vai se desenlaçando, não herói, não há vingança, nem mensagem final a não ser uma: questionar as narrativas policiais baseadas na vingança, que colocam homens como justiceiros punitivos, as mulheres como passíveis e indefesas, e a espera compulsiva por um final incrível e marcante que mude tudo.
Sendo bem sincero, diria que para os irmãos Nolan todos esses elementos nos filmes policiais são táticas punitivas para defender a ausência de princípios legais e garantistas na apuração e investigação de casos e crimes. Somos ensinados que resolver "na força" resolve, que o bom policial atira primeiro pergunta depois, salva moças indefesas, quer pegar o bandido a qualquer custo e se vinga de quem meche com ele e sua família, mesmo que tenha que executar o bandido sem respeitar nenhum preceito legal. Os Nolan estão inserindo a crítica ao gênero, basicamente afirmando que, mesmo de maneira incubada ou sem querer, muitos filmes defendem a ideologia do "CPF cancelado", ensinando para a população que é assim que se lida com bandidos. Mas se a verdade está em constante mudança, como garantir que suas atitudes não vão se voltar contra você ou o tipo de pessoa que você é?
No final, em vez de interromper o ciclo vicioso em que vivia, ele opta por sacrificar Teddy, para que a história morra com ele. Assim, Lenny monta uma armadilha para si mesmo, ele fabrica a memória que quer ter, como todos nós fazemos conscientemente ou não. Aqui pensamos não só quantas vezes ele pode já ter feito aquilo e vamos além: quantas vezes nos não fazemos a mesma coisa? Nolan questiona a noção de identidade enquanto legitimadora do discurso de verdade e autoridade, inserindo no seu lugar uma dúvida: não será toda a nossa cultura midiática baseada no esquecimento? Notícias sensacionalistas, catástrofes, denuncias, flagrantes, imagens bombásticas, lançamentos... todas formas de comunicação que contem em si a noção de efemeridade, de que notícias ficam velhas e não podem ser muito embasadas e históricas, pois fazem as pessoas lembrar de seus traumas, tornando-as difíceis de prever em suas decisões e de controlar socialmente.
Assim, somos estimulados a esquecer, esquecer, e esquecer tudo todos os dias. A superar os traumas e esquecer tudo que faz mal, pois num passe de mágica aquilo já não aflige mais. Pode até funcionar para o sujeito comum, mas o que significa para ciência, para a política e para História viver em uma sociedade calcada no esquecimento como estratégia de poder, sem utilizar da própria razão? O filme dá a resposta: é mesmo que sentir afeto e dar poder aos assassinos, seria killers e milicianos que buscam nos governar. E assim, chegamos a lógica que governa nossa sociedade atualmente, onde as pessoas que melhor esquecem as coisas ganham melhores oportunidades, principalmente profissionais. A burrice, a ignorância e o apagamento histórico são estimuladas e louvadas todos os dias, recusando oportunidade e voz para quem está mais capacitado ou possui consciência social ou política.
Dentro disso, a linguagem e técnica do filme forjam formalmente um clássico complexo, reflexivo e difícil de analisar, remetendo ao cinema clássico e dos primórdios, principalmente do mudo para o falado, onde a forma conta tanto sobre o filme como sua trama. Pode parecer demasiado enrolado e complexo à primeira vista, buscando complexificar a forma de contar a trama do que facilitar seu entendimento. A edição genial de Dody Dorn, que editou também Insomnia, Zack Snyder's Justice League e Army of the Dead, deu o toque final que o filme precisava, sendo uma montagem quase soviética em sua técnica e rigor. A seleção e transição das cenas é sempre pensada em sentido geral do filme, sempre fazendo sentido com o resto das cenas.
Isso obviamente fez o filme não ser reconhecido pela Oscar e por muitos cinéfilos, que buscam uma narrativa mais fácil para se entreter. Entretanto, é um filme super complexo, que trouxe de volta para os anos 2000 o debate da forma e do gênero para o cinema contemporâneo, ensinando para muitos alguns dos preceitos formais de direção e edição de cinema. Um filme introdutório para cinéfilos que buscam entender os filmes mais profundamente e se aprofundar em filmes mais técnicos e diferenciados da fórmula e narrativa padrão. Para quem nunca assistiu recomendo muito, para quem já viu, vale apena rever, pois o filme envelheceu bem, com vários debates do filme fazendo mais sentido hoje em dia do que para a época.
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