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Tenet (2020): Elipses de tempo criam clima "Great Reset" para um dos poucos filmes de 2020, ano impactado pela pandemia da Covid-19

pandemia

Em um ano de pandemia de Covid 19, Tenet foi um dos poucos filmes de grande produção a serem lançados no ano. Isso gerou polêmica, já que o filme foi lançado de maneira presencial durante pandemia, durante uma das reaberturas nos Estados Unidos. Em uma história que envolve uma trama de espionagem e guerra mundial, sobre elipses e resets do tempo, o filme parece uma metáfora perfeita de nosso tempo e de sua própria produção. 


Tenet é com certeza um filme essencial de 2020. Em um ano de pandemia mundial, o novo filme de Christopher Nolan, Tenet, é com certeza inovador em termos audiovisuais e polêmico por ter sido produzido em um ano de pandemia, sendo adiado três vezes, e tendo seu lançamento feito de maneira tradicional nos cinemas dos Estados Unidos. 


Sendo produzido desde antes da pandemia tomar conta dos noticiários, o filme teve toda sua produção influenciada pela Covid. Durante a pandemia, Nolan se solidarizou com a causa das salas de cinema e pediu ajuda do governo dos Estados Unidos para que as salas não falissem. De maneira geral, a pandemia representou um colapso da forma tradicional de assistir filmes e um ótimo negócio para o mercado de streaming. 


Indo direto para o filme em si, Tenet é um filme que conta a história de um agente sem nome (interpretado por John David Washington, que fez foi protagonista em BlacKkKlansman e escolhido por Nolan pelo papel). Ele é um agente da CIA, e já primeira cena (que pelo nível de ação parece mais um fim) participa de uma operação em uma casa de ópera de Kiev . De repente, sua vida é salva por um soldado mascarado com uma bugiganga vermelha, que "desarma" no ar uma bala em um atirador. Ele é capturado por mercenários e torturado, tentando consumir uma pastilha de cianeto para não entregar informações. Ele acorda para saber que o cianeto foi um teste de lealdade, mas sua equipe foi morta e o artefato perdido.


O agente e protagonista sem nome é então recrutado por uma organização chamada "Tenet"(princípio em livre tradução). Uma cientista mostra-lhe balas com entropia "invertida" , que retrocedem no tempo, e é aqui que está a charada audiovisual de todo o filme. 


A chamada "entropia invertida" do filme é usada como uma metáfora para a técnica audiovisual de Nolan de mexer com o tempo do filme, em sua estrutura e narrativa. Na prática, o efeito é usado para produzir cenas de ação que acontecem no "replay", de trás para frente, que dão uma sensação bem interessante de desconforto e tensão ao espectador ao acompanhar a cena, por exemplo, em uma luta em um corredor estreito. 


O protagonista, rastreia as balas até o traficante de armas Priya Singh, em Mumbai, na Índia  . Ele descobre que ela é contato da Tenet; e seus cartuchos invertidos foram comprados pelo oligarca nacionalista russo Andrei Sator. Ele se aproxima da ex-mulher de Sator, Kat, uma avaliadora de arte, que autenticou um desenho de Goya forjado por um homem, "Arepo", que Sator comprou dele; Sator usa o desenho para chantageá-la e mantê-la sob controle. O protagonista planeja roubar o desenho com Neil de uma instalação no aeroporto de Oslo . Lá eles encontram uma máquina, uma "catraca", e afastam dois homens mascarados.


Na Costa Amalfitana , Itália, Kat apresenta o protagonista a Sator, mas descobre que o desenho está intacto. Os três vão passear de barco, onde Kat tenta afogar Sator, mas o protagonista o salva. Ele se oferece para ajudar Sator a recuperar uma caixa, que, segundo ele, contém plutônio-241 . Em Tallinn , o protagonista e Neil emboscam um comboio e roubam a caixa, que contém o artefato perdido em Kiev. Eles são emboscados por um Sator invertido, que mantém Kat como refém. O protagonista dá a Sator uma caixa vazia e ele recua. O Protagonista salva Kat, mas é capturado e levado para o armazém de Sator.


Essa parte do filme é importante para perceber a primeira possibilidade temporal do filme: as cenas estão invertidas temporalmente nos acontecimentos mas não em suas falas e na forma como interagem os personagens. É como se todos já soubessem seus destinos e estivessem disputando na verdade o sentido desses acontecimentos. Por exemplo, no início dessa sessão de acontecimentos, Kat parecia emancipada e tratava Sator como um ex-marido, parecendo inclusive haver certo "clima" entre ela e o protagonista. Conforme rolam as cenas, é como se ela voltasse a ser esposa de Sator e o protagonista tivesse um caso com ela prestes a ser descoberto por Sator a qualquer minuto. Esse elemento faz com que aquilo que é dito pelos personagens, contradiz os acontecimentos. 


Kat revela que Sator está morrendo de câncer no pâncreas . Ele acionará o algoritmo, acreditando que o mundo deveria morrer com ele. Kat acredita que Sator vai se matar durante as férias. O protagonista, Neil, Kat e Tenet voltam para aquele dia, então Kat pode atrasar a morte de Sator, enquanto Tenet protege o algoritmo.


Tenet rastreia o algoritmo até a cidade natal de Sator no norte da Sibéria. Em um " movimento de pinça temporal ", as tropas da equipe vermelha avançam no tempo, enquanto as tropas da equipe azul se movem para trás. O Protagonista e Ives são ajudados por um cadáver mascarado de um soldado da equipe azul com uma bugiganga vermelha em sua mochila, depois de vê-lo morrendo ao contrário. No Vietnã , Kat embarca no iate de Sator e o mata, enquanto o Protagonista e Ives garantem o algoritmo.


Há um certo clima de "Nova Guerra Fria", garantidos por uma intriga com vilão russo (como nos clássicos do cinema americano do século XX), confrontos heterotópicos entre pessoas de diversos países e nacionalidades e viagem no tempo.


No final das contas, com direito a uma cena onde o protagonista luta contra si mesmo na cena do aeroporto, a "bagunça" temporal do filme só estão lá com uma função: para entreter, e não para entender. 


Existe um princípio explorado pelos formalistas do cinema (principalmente Noel Burch) que qualquer transição de uma cena para outra sempre gera sentido, confirmativo, negativo ou dialético, pela seu valor de transição temporal, também conhecida como "elipse de tempo". Mesmo quando temos uma elipse de tempo curta, como transitar o olhar de um rosto para o outro em diálogo, ou quando um em uma cena alguém vai dormir, a dela esmaece até ficar preta e voltar em outra cena, ficando implícito que o personagem dormiu e o tempo e o dia passaram, estamos sempre falando de uma transição de tempo que não é necessariamente, automática.


Há uma pedagogia do olhar construída tacitamente ao longo da História pela cultura ocidental, que difere das demais culturas como a oriental por buscar sempre uma "resposta" e um "sentido" linear nas narrativas. Os primeiros cineastas, como Griffith e Eisenstein, que utilizaram isso em sentido de construir narrativas fílmicas construtivas e lineares, ganhando inclusive contornos nacionalistas de identificação coletiva. Hitchcook utilizou isso para desconstruir a lógica e criar elementos e personagens ocultos, que se escondem na não linearidade, como a protagonista de Psicose morrer na metade da narrativa e ser substituída por outra que investigará sua morte, ou começar o filme com um assassinato e a ocultação de um corpo embaixo de uma mesa de jantar, mudando todo o sentido afetivo que um jantar poderia ter, como em Festim Diabólico. 


Nolan leva isso a novo nível, usando a descontinuidade possível pelas elipses de tempos geradas pela transição de uma cena para a outra para poder "viajar". Ele usa esse mera transição para gerar uma não linearidade que segue tanto em sentido do texto, como dos acontecimentos e confrontos, criando um barato audiovisual pela decomposição ou reversão das cenas, como se fossem fantasmas. Ele enquadra esse efeito em uma narrativa sobre intriga e espionagem internacional para dar um sentido sócio-político-econômico, enquadrando a teoria de que viveríamos em um período de "guerra híbrida" e "desinformação" para propor uma narrativa futurista contemporânea para o gênero. 


O poder de "reversão entrópica" é utilizado na narrativa tanto para reverter acontecimentos como para descontruir e desfazer acontecimentos, logo desinformando sobre a propriedade desses acontecimentos, criando a possibilidade de colocar até mesmo o seu "eu do passado" contra seu "eu do futuro". A parte onde o protagonista volta no passado reverso e deve respirar em um tanque de oxigênio, foi ótima metáfora, mesmo que mais estética, da pandemia e dos diversos procedimentos de segurança que a atualidade exige.


 Isso é utilizado como uma forma estética por Nolan para criar uma metáfora da instabilidade democrática criada pela transição constante dos paradigmas das relações na política e na economia mundial, e disso parte o brilho do filme. Se você tentar entender, não irá conseguir. É muito mais um filme sobre "sentir" do que "ser". 


Entretanto, esse pode ser o maior pecado do filme, já que a relativização total do sentido do tempo, leva a possibilidade primeira de toda premissa ser falsa, ou seja, que desde o início poderia se ter viajado no tempo e feito com que nada tivesse acontecido, logo tornando a narrativa demasiada arrastada e enfadonha. Só que como no próprio filme, Nolan quer jogar com uma "consciência" que se sabe real pois e pensa, e logo existe mesmo dentro da aleatoriedade total de uma realidade fragmentada, onde a linearidade só está nos olhos de quem vê (fator reforçado pela ambiguidade do parceiro do protagonista interpretado por Patinson).  


Resumindo para concluir, o efeito temporal criado por Nolan, em sentido formal do audiovisual, é genial. Mas em termos de narrativa e entretenimento, pecam por ser um tanto formal demais para a proposta e logo ingênuo. Um filme muito divertido para quem acompanha as notícias internacionais e gosta de cinema, mas talvez uma viagem sem sentido para quem não está tão antenado. 




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