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A Sina do Aventureiro (1958): O "faroeste feijoada" de quando José Mojica ainda não era "Zé do Caixão"

 


Após ser baleado fugindo de um tiroteio, o bandido Jaime cai à margem de um rio, onde ele é socorrido por duas belas jovens. Ele envolve-se romanticamente com Dorinha, filha de um fazendeiro e, por amor a ela, entrega-se à polícia. Ao sair da prisão, Jaime tem que enfrentar Xavier, um bandido sanguinário que planeja vingar-se do pai de Dorinha. O filme foi classificado como “Western Feijoada”, pelo pesquisador Rodrigo Pereira, autor da dissertação de mestrado “Western Feijoada: o faroeste no cinema brasileiro”. Dirigido por José Mojica Martins, que viria a ser conhecido depois como o Zé do Caixão disse ter, disse ter produzido o filme com uma grande miscelânea cultural brasileira, misturando em seu filme, roupa nordestina, gaúcha e americana, e creditou como um dos fatores do sucesso desse longa, que permaneceu no cinema por um longo período


História por trás do filme


O filme de José Mojica Martins, foi o seu primeiro longa sonoro completo, que seguiu a produção de Sentença de Deus, no qual três atrizes morreram, antes do filme ser cancelado. O filme foi classificado como o primeiro “Western Feijoada”, pelo pesquisador Rodrigo Pereira, autor da tese de mestrado “Western Feijoada: o faroeste no cinema brasileiro”. José Mojica Martins disse ter produzido uma grande miscelânea cultural brasileira, misturando em seu filme, roupa nordestina, gaúcha e americana, e creditou como um dos fatores do sucesso desse longa, que permaneceu no cinema por um longo período.


Depois da fundação de sua escola, a carreira profissional de Mojica Marins passou a ficar cada mais próxima. Mojica Marins tentou realizar o filme Sentença de Deus por três vezes e o filme acabou como inacabado. Semiprofissional, o filme Sentença de Deus é experimental no sentido mais genuíno e revela os primeiros passos de José Mojica Marins na arte do cinema.




Em 1958, veio a ser concluído A Sina do Aventureiro, em lente 75 mm, com apenas duas pessoas que não eram da escola de atores de Mojica Marins, mas que depois vieram a ter aulas de atuação,  como Ruth Ferreira e a Shirley Alvez. 


A Sina do Aventureiro é um "faroeste caboclo", mas desprezado pela historiografia clássica do cinema brasileiro. Insere-se na tradição mais ampla dos filmes rurais de aventura, território que compreende nomes tão heterogêneos quanto significativos como E. C. Kerrigan, Amilar Alves, Luiz de Barros, Humberto Mauro, Eurides Ramos, Antoninho Hossri, Victor Lima Barreto, Carlos Coimbra, Wilson Silva, Osvaldo de Oliveira, Reynaldo Paes de Barros, Edward Freund, Ozualdo Candeias, Tony Vieira e Rubens Prado.




Para lançar o filme, Mojica Marins contou com a ajuda dos irmãos Valancy, que eram proprietários do Cine Coral, em São Paulo, aonde o filme permaneceu em cartaz por muito tempo. O realizador do filme, Mojica Marins explicou, posteriormente, como foi o sucesso do filme:


"Para fazer sucesso, eu usei uma estratagema, porque já era difícil você entrar uma semana, e ficar três semanas em cartaz num cinema era mais difícil ainda. O que eu fiz? Eu pegava os meus alunos, numa época em que os cinemas tinham fila, e dividia um grupo de alunos numa fila, outro grupo em outra e mais outra. Todos eram atores, né? Então ficavam todos no meio da fila e diziam: 'Pô, a gente perdendo tempo nessa fila, passando um filme tão bom no Cine Coral!'. Com isso, eles saíam de lá e levavam o pessoal da fila junto. E ia todo mundo para o Cine Coral. A fila foi muito bem nas capitais. Estourou em Salvador, em Porto Alegre. Porque ela tem uma miscelânea de Nordeste, de roupa nordestina com roupa gaúcha, com roupa americana. Eu misturo tudo, tem uma miscelânea. No final, tem uma curiosidade: o filme realmente agradou, só não agradou aos padres. Aí eu tive uma desavença com os padres que me acompanharia a vida toda".



Depois de aceitar a proposta de Augusto de Cervantes, de fazer um filme que agradasse aos padres, Mojica Marins criou a história de Meu Destino em Tuas Mãos e procurou Ozualdo Candeias para fazer o roteiro, que não foi creditado. As tragédias familiares são apresentadas pelo cineasta com requintes de maldade, temperados por aquele neo-realismo involuntário das produções sem dinheiro. A direção de Mojica deixou o filme ainda mais cru e violento.




O filme conta o drama de cinco crianças pobres que vivem infelizes com suas respectivas famílias. Cansados de abuso e desprezo, os amigos fogem de casa e saem pelas estradas, acompanhados do violão e da cantoria de Carlito (vivido por Franquito), o mais velho deles. O jovem Franquito, o “garoto da voz de ouro”, foi uma aposta para embarcar no estrondoso sucesso de Pablito Calvo, astro-mirim de Marcelino, pão e vinho (1955). Mojica compôs três das dez canções interpretadas por Franquito. Meu destino em tuas mãos foi realizado com o dinheiro da venda dos long plays de Franquito, hoje uma raridade por ser um dos primeiros filmes a ter disco com todas as músicas lançado pela gravadora Copacabana. O filme, apesar de ter agradado os padres, não teve repercussão nenhuma e acabou esquecido.


Algum tempo depois, o produtor Nelson Teixeira Mendes contratou Mojica para ser ator no O diabo de Vila Velha, um bang-bang. Como condição, o Mojica pediu para poder levar o pai, que estava muito doente, para o Paraná, onde o filme ia ser feito. Após muitas discussões com o diretor Ody Fraga, este veio a se afastar e Mojica assumiu a direção filme, aonde demonstrou afinidade com o gênero faroeste. Até chegar no sádico e cruel coveiro Zé do Caixão, no filme "À Meia-Noite Levarei Sua Alma".



Leitura do filme


De uma maneira contraditória, esse filme é ao mesmo tempo um clássico do cinema brasileiro, ao mesmo tempo que se tornou raro e esquecido com o tempo. É que na época do filme, ele foi muito popular, mas ficou esquecido depois, muito devido ao impacto cultural gerado pela criação do personagem Zé do Caixão, no filme A Meia Noite Levarei Sua Alma (1964).


Como afirmou o próprio Mojica em uma entrevista para o programa "Sala de Cinema", Sina do Aventureiro foi filmado com cinescope, algo raro naquela época. Seu filme, cheio de estilo para época, foi muito assistido e depois apenas foi esquecido, muito em decorrência da fama que trouxe Zé do Caixão para Mojica. Mas vários diretores conhecidos assistiram ao filme e se inspiraram fortemente. Glauber Rocha, por exemplo, nunca escondeu sua admiração por Mojica, e chegou a lhe propor fazerem juntos um filme ou uma série, unindo Zé do Caixão e Antonio das Mortes. 




É possível identificar algumas influências de Sina do Aventureiro em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), ambos sobre um vaqueiro que vê sua vida mudar perante os acontecimentos de seu tempo. 


Sina do Aventureiro é um filme que reflete muito bem a época a qual foi feita. Em 1958, a Seleção Brasileira conquista o primeiro título da Copa do Mundo de Futebol ao derrotar a Seleção Sueca por 5 a 2 em Estocolmo, a capital sueca. 


É inaugurado a residência oficial do presidente do Brasil, o Palácio da Alvorada, em Brasília, e Após os incidentes durante a viagem do vice-presidente americano Richard Nixon pela América do Sul, JK troca cartas com o Presidente americano Dwight D. Eisenhower dando início a criação da Operação Pan-americana. Após o então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, ter sofrido tentativa de atentado por parte de manifestantes de esquerda, na Venezuela, o governo brasileiro de JK propôs a Operação Pan-americana, que tinha por base a ideia de que apenas a eliminação da miséria no continente americano propiciaria a contenção do comunismo e a expansão da democracia. Esta era uma proposta de cooperação internacional de âmbito hemisférico, na qual se insistia na tese de que o desenvolvimento e o fim da miséria seriam as maneiras mais eficazes de se evitar a penetração de ideologias exóticas e antidemocráticas, que se apresentavam como "soluções para os países atrasados".


Soma-se a isso o fato de JK ser um ex-policial, tendo aumentado bastante o poder das forças de segurança durante seu governo. A narrativa de Sina do Aventureiro parece ter bastante haver com isso. No inicio do filme, nosso protagonista é um fora da lei. Mas ao se apaixonar, ele desiste da vida do crime e encontra um local para se estabilizar, casar e viver uma vida calma (essa é a sina do aventureiro). 


Porém, como ele cometeu um crime antes, deverá ir para prisão e cumprir a pena antes e concretizar seu amor. Entretanto eu reflito: isso é amor? É uma ótima metáfora das noções e "bom" e "amor" da época, a mocinha querer que seu par vá para a cadeia para se redimir e poderem ficar juntos socialmente. Uma representação que, mais do que critica, faz uma boa caricatura do que era o clima do governo JK. 




Em outras palavras, somando as questões de discurso e promessas, políticas moralizadoras e o resultado econômico do governo da época, muitos pesquisadores e sociólogos não se furtam em dizer que JK foi um grande populista, no sentido técnico do termo. Vocês podem ler melhor sobre isso aqui. Mas a questão é que, como líder típico dos anos 50, no discurso, JK apontava para o progresso, o combate a fome a miséria e a industrialização e superação do Brasil do paradigma da dependência externa. Na prática, politicas anticomunistas e contra a esquerda tomaram conta do seu governo, junto com uma postura econômica que não se sustentou e, para muitos, foi o que gerou a ditadura militar de 64. A esquerda apoiava um rico, ex-policial, das melhores famílias, para manter a "governabilidade", um discurso que obviamente demonstrou os limites do próprio governo. 


Sina do Aventureiro representa esses sentimentos mistos. Ao mesmo tempo que vivíamos os "anos dourados" dos anos 50, o que se reflete na técnica e estética de Mojica no filme; temos um faroeste, representando tempos duros e de subdesenvolvimento latentes no imaginário nacional. Um filme que, com pouco recurso, surpreendeu pela técnica de produção, execução e profissionalismo dos atores, que levam o filme muito bem. Temos aqui os elementos do "interior real", onde vemos os sotaques, roupas, locais e costumes do interior do Brasil de maneira bem verossímil. A batalha final na cachoeira é simplesmente épica. Ali notamos todos os elementos da construção fílmica no ápice climático e psicológico da narrativa, onde a agua combina com toda a tensão do filme. 




Os elementos típicos ao faroeste, como a dualidade do caráter, da passagem do tempo, do romance e da prisão; são muito bem construídos, ao mesmo tempo que respeita a nossa própria cultura e costume. Aliás, esse é o grande brilho de A Sina do Aventureiro: representar um faroeste com elementos tipicamente nacionais, e não buscando imitar construções e elementos dos Estados Unidos para "respeitar o gênero". 


A experimentação de Mojica, construiu um filme raro, tipicamente brasileiro, com a "cara do Brasil" em termos culturais, mas debatendo e adaptando o faroeste, um dos gêneros de filme mais aclamado do mundo, para os nossos próprios paradigmas e problemas. Apesar de produção de baixo orçamento, uma pena que o filme tenha perdido sua qualidade de som e imagem com o tempo, demonstrando como no Brasil mesmo filmes dos anos anos 50, quando já se tinha equipamentos para preservação, o armazenado e cuidado não são prioridades, o que acaba com a memória dos filmes nacionais. Uma pena, pois o filme é representa um pedaço da história do Brasil que ficou esquecida e merece ser revista, tornando o filme praticamente um documento histórico de uma época do cinema brasileiro. 


Disponível no Looke e no Youtube






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