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Cabeça de Nêgo (2021): Filme nacional reflete sobre o legado contraditório das ocupações nas escolas públicas de 2016

 


Filme dirigido e roteirizado por Déo Cardoso e distribuído pela Corte Seco Filmes. Abordando o movimento de ocupação secundarista em uma escola militar na Bahia, vemos a vida sofrida de Saulo (Lucas Limeira) que estuda na Escola Major Altair Andrade (descrito no filme como um militar "linha dura" e era torturador na época da ditadura militar). Saulo começa a se encanta com a história dos Panteras Negras e de nomes como Fred Hampton e Marighela. Ele sofre no dia-a-dia na escola entre ser ameaçado pelos antigos alunos expulsos da escola que rivalizam com ele, e ser ele mesmo um aluno que está sendo expulso do colégio. Depois de ser chamado de "macaco" por um dos alunos e de não acontecer absolutamente nada, ele ainda é culpado de ser "agitador" por ter "agredido" um colega pelo professor de inglês e pelo diretor. Ao ser pedido para sair de aula, Saulo começa um movimento de ocupação que chegará até mesmo em Gusmão, diretor corrupto e ligado a políticos que querem manter as precariedades da estrutura da escola. Ele passa dormir na escola, e de lá passa a denunciar a precariedade de sua escola pela internet. O filme busca debater o impacto e os dilemas das ocupações escolares


Saulo é um garoto sonhador e convicto que decide ocupar sua escola depois que sofrer racismo em sala de aula, ele decide ocupar a escola depois das aulas e começa a conviver com a vigia e o medo, junto com o porteiro e o segurança na escola. Depois de que seu movimento e seus vídeos de denúncia sobre a estrutura da escola começam a ser postados na internet enquanto denúncia e os vídeos começam a bombar, o conselho dos professores vota por maioria para expulsar Saulo. Ele ganha ajuda de seu grupo político que gerencia um movimento social que se inspira nos Panteras Negras. 




Mas Saulo não desiste mesmo com as ameaças, logo percebe o problema, como os Panteras conseguiam organizar a comida para tantos, quando a comida no Brasil vem logo do público, que é o mesmo lugar de onde vem a prática e a punição por essência. 



Vemos o lado obscuro da administração escolar, com o diretor, o Gusmão que quer expulsar Saulo mais que todos, mas que esbarra no seu "político de estimação". Ele acredita que se Saulo for expulso confirma que ele realmente achou corrupção na escola, pedindo para ele "pegar leve" por ser "ano eleitoral". Demonstrando a contradição entre o ódio ideológico do diretor, e a raiva aleatória do político que quer apenas mais vantagens. 





Uma professora fala com ele sobre sua Pantera Negra favorita e pergunta o dele. A mesma professora que demonstrou coragem ao defender o aluno de uma prisão no meio do protesto. O jovem aparece desmaiado depois da PM tentar invadir a escola e o movimento social fazer um protesto em resposta para proteger Saulo que estava sozinho na escola.   




Vemos Saulo com uma expressão séria e com cara de quem não é mais tão crente como antes. E aí, por fim, vemos imagens reais dos protestos e da repressão policial contra os manifestantes estudantes. 




Um grande problema e debate que teve no meio a esquerda foi a Lei Antiterrorismo, sancionadas em 2013 e 2016 por Dilma Rousseff, com vetos estratégicos, mas que foram uma má jogada política na época. Bolsonaro por exemplo se refere a essa lei como "um ponto final em todo ativismo no Brasil". A raiva de 2013 era contra a associação petista com o centralismo estadual, com alianças fisiológicos mas que eram estratégicas ao mesmo tempo. No filme o político típico do MDB de Temer é o senhor Gusmão, o diretor da escola estadual. 



Essa é a grande contradição final da associação com o MDB de Temer, quase 6 anos de políticas de austeridade por parte de Michel Temer e Bolsonaro. O que aconteceu é que a mídia começou a vender o movimento estudantil como terrorismo, ou como algo que fecharia as escolas. A brincadeira do filme é que um rapaz é escolhido como bode expiatório da situação toda. 




O nome "Cabeça de Nego" é uma "bombinha", utilizada em Festa Junina, mas em protestos é usada como uma mini bomba, muito mais de efeito MORAL do que realmente gerador de dano algum. É a bombinha que as crianças mais gostam por ser barulhenta, sendo a venda proibida para menores em muitos estados, por muitas crianças e adolescentes perderam parte do corpo por conta da febre que era. Explicando o próprio filme enquanto metáfora, o jovem do DCE, do movimento estudantil é mais barulho do que é um grande transgressor que gera danos para a sociedade. 



O filme ser visto como parte de um contexto atual é um alívio por associar a mobilização dos jovens com resquícios de autoritarismo que podem ser rastreados como da era da ditadura militar e a realidade de lidar com o senso comum de direita tão esmagador e supremo em relação aos jovens, a começar pelo nome da escola, que seria uma escola militar. Isso reflete sobre uma forte tendência, além das escolas militares, das escolas cívico-militar e sua estrutura que desde o nome enaltece uma certa visão de mundo que estrutura todo o corpo da escola. 


Por mais que tenha 3 ou 4 professores de esquerda que defendem os alunos, a maioria no conselho da escola decidiu que Saulo era transgressor e que tinha que ser expulso, os professores de ciências humanas o defendem e os outros o condenam. Nessa cena, um dos professores chama o aluno de "pivete".  Aqui vemos um racha entre os professores de exatas e humanas, sendo os primeiros retratados como mais punitivos.



O filme reflete o que foi, por exemplo, a assinatura por parte da esquerda, nos governos do PT, da lei anti terrorismo no Brasil, mesmo com o veto em algumas partes feito por Dilma, esse projeto foi encabeçado por Michel Temer, e está hoje como uma das principais pautas dos setores bolsonaristas. Associar o estudante jovem e esquerdista com a figura do "inimigo público" como foi na ditadura militar.




A situação das ocupações gerou um clima de paranoia e de desconfiança entre professores e alunos. Cada um achando que o outro está "fazendo de acordo com seu sindicato". 




História por trás do filme:


Filme dirigido e roteirizado por Déo Cardoso demonstra com uma perspectiva narrativa como seria sua visão sobre as ocupações nas escolas, a ideia do roteiro do filme foi selecionado em 2016 pelo Ministério da Cultura através de um edital secretaria estadual de cultura de Fortaleza. Ele convidou uma artista para ser uma das professoras engajadas do filme, o personagem é tão bom, que chega a bater em um PM para defender um aluno em uma manifestação. 


A história ganha uma outra áurea pelo enfoque em criticar o conservadorismo padrão das escolas públicas brasileiras, como fruto de uma estrutura burocrata e corrupta. Vale lembrar que é o primeiro longa de maior relevância do diretor que é jovem e dá entrevistas para veículos pequenos, mostrando ser acessível.





As escolas e as Ocupações de 2016




Em 2016, eu mesma era uma aluna de história. Vi a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) ir de ter uma das melhores estruturas possíveis para entrar em uma das suas greves mais paralisadoras da história, algo que quase destruiu a faculdade. A faculdade ficou 2 anos sem funcionar praticamente. Também houve ocupação na UERJ e em outras faculdades posteriormente, sendo um movimento que foi observando vindo de São Paulo originalmente, explicando a influência na ideologia, porém isso gerou inúmeros brigas de muitos que acharam que tiveram seu sonho de formatura adiados por uma visão de mundo, isso sendo em si um debate aberto sobre o valor e o legado desses movimentos. 


O movimento no Brasil de 2016 começou como uma série de manifestações contra alguns governos estaduais que começaram a dar a desculpa da "folha de pagamento" que não fechava para privatização geral dos serviços do estado.  Em alguns casos, o viés ideológico e político foi o que guiou muitos impulsos. O meu ponto é que admitir a logística e os poderes macros envolvidos nisso não torna o movimento menos "mágico" e "lindo". 


A questão é que creio eu, que NINGUÉM quer dormir na faculdade de nenhuma maneira por gostar. Isso é uma ideia americanizada, onde a faculdade e o dormitório andam juntos e custam caro. Se isso ocorre, significa que você mesmo não tem essa casa para voltar, o que reflete muito sobre as condições materiais de estudo que alguns alunos não possuem. Saulo do filme, por exemplo, tem medo de sair da escola, também por ser ameaçado por um antigo desafeto, que por coincidência era um dos antigos alunos expulsos da sua escola, e que entrou para o crime. 


Na época, eu lembro de, em um trabalho de pesquisa, ter uma missão de entrar em uma das escolas públicas que estavam ocupando e de ter algumas impressões sobre essa "sociologia dos protestos" toda própria que os movimentos estudantis possuem. Lembro de ver os alunos engajados, mas extremamente paranoicos em relação a não poder "ter líder" possível. Era necessário convencer a todo o tempo que não existiam ideologias, ou partidos, ou sindicatos, menos ainda, a figura do líder. Mas policiais, podiam ir e vir na ocupação sem problemas, sendo bem recebidos pelos alunos.


O que me pareceu que mostrava uma preocupação de vender uma ideia de neutralidade do movimento estudantil, como se fosse agora proibido ser até mesmo esquerda, ou petista em um movimento estudantil. Uma contradição bem exemplifica por ser uma escola na Bahia que se desenrola o evento, um estado governado pelo governador Rui Costa (PT). Muitos alunos, a maioria silenciosa, se colocarmos assim, indagaram sobre prejuízo real do erário e do patrimônio principalmente nas unidades que possuíam equipamentos de ponta naquela época. 


Quase 2 anos de universidade parada por conta do governo de Luiz  Fernando Pezão, mas contraditoriamente, em pleno governo de Dilma. Não é eufemismo dizer que a folha salarial do Estado do Rio de Janeiro jamais fechou depois disso e que isso, por sua vez, elegeu um aventureiro como Witzel. O manto do movimento era "Uerj resiste", ou seja, aderiram a "estética da resistência", como se fosse um movimento católico corpóreo. Isso pode ser visto como uma das críticas do filme. 


O atraso de pagamento no salário dos professores e houve também isso com as bolsas permanência e de pesquisa. Depois da prisão de Sérgio Cabral o Rio de Janeiro jamais seria o mesmo, e nem mesmo a UERJ ainda se recuperou da crise que foi. A faculdade chegou ao ponto de quase fechar, com o direito por exemplo se refugiando em prédio próprio, ou com a sequência de falências sistemáticas nas empresas terceirizadas que geraram uma situação perene, de quase escravidão do corpo de serviços da faculdade, algo que a UFF só veria, por exemplo, no governo Temer. 


Como é que todo lance das ocupações começou? 


É difícil precisar a história das ocupações escolares. Os debates sobre currículo, financiamento e educação em geral datam das grandes conferências internacionais feitas em 1990 que debateram o papel da educação em relação ao subdesenvolvimento envolvendo a educação de jovens e adultos. Os conceitos formulados na Cúpula Mundial para a Infância (realizada em NY, em 1990), outra conferência foi a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, também em 1990. A declaração de Hamburgo serviu para concentrar mais no sentido de erradicação da pobreza, mais do que uma proposta de mudanças no âmbito curricular, que era o mais esperado. 


No Brasil, programas como Bolsa Escola foram se transformando nos governos petistas no melhor aprimorado Bolsa Família. No mesmo momento que as universidades passavam por um processo de abertura para pessoas de fora dos ciclos das elites e começou a se democratizar, esse processo foi quase completamente revertido no período pós pandemia. Por conta da crise econômica, hoje em dia no Brasil é feio estudar, ou querer estudar. É considerado supérfluo, coisa e burguês e afins.


O movimento Anti-Bullying Day, chamado de Pink Shirt, criado em 2007 por estudantes do ensino médio, passou a ser comemorado anualmente. Já em 2012, o movimento estudantil no Quebec foi estimulado de 75% que levaram os estudantes as ruas. Depois do movimento, o primeiro-ministro Jean Charest prometeu cancelar o aumento das mensalidades. As ruas de Montreal chegaram a ver sobre meio milhão de manifestantes protestando contra o aumento das mensalidades. 


No Chile, desde 2011 passava por novos protestos estudantis, lá já havia acontecido a  "Revolução dos Pinguins" em 2006, 2011, 2012 uma onda de grandes protestos exigindo novos quadros par aa educação. Pediam por novos quadros na educação, dado a intensa privatização do sistema de educação no Chile, desde 1990, quando o Chile transitou para a democracia. 


Os protestos eram em conjunto com o corpo da sociedade que protestava contra a saturação do modelo ultra neoliberal praticado no Chile, lugar que recebeu vários membros da política nacional brasileira na época em exílio da ditadura militar.  Na Argentina, em 2012, pelo menos 24 escolas de Buenos Aires foram ocupadas por estudantes em repúdio a mudanças na grade curricular, enquanto o La Nacion escreveu sobre 29. A ocupação contra a mudança curricular na Argentina foi contra uma presidente também mulher e de esquerda, a Cristina Kirchner.


Em Hong Kong, o mesmo tipo de movimento, a juventude internacional participava de protestos contra o governo chinês, os protestos eram contra a implementação da disciplina de Moral e Nacional nas escolas da China, em protesto estudantis até a Revolta dos Guarda-Chuvas por eleições "mais transparentes". No Chile, o governo de Sebastián Piñera começou a ser contestado e teve que atender a algumas exigências, como a redução no aumento do preço da passagem.  O governo de Sebastián Piñera foi bastante abalado e se viu forçado a atender várias das exigências do povo, indo desde a revisão do preço da passagem, que originou o protesto estudantil inicial. 


Em janeiro de 2016, antes do impeachment de Dilma, um levantamento pelo Sindicatos dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, a (Apeoesp) mostrou que 913 classes foram fechadas em todo o Estado, mas a secretaria do Estado negou a informação, sendo dados coletados de 39 regiões, restando outras 54. Um programa que era muito visto antigamente era o CQC (um programa bem de direita, vindo de um formato argentino), mostrou uma série de matérias sobre desvios de merenda em cidades do interior de São Paulo.





O protesto das ocupações originais eram contra o governador do Estado de São Paulo da época, Geraldo Alckmin e também houveram protestos contra outros governadores, como Marconi Perillo de Goiás, José Ivo Sartori no Rio Grande do Sul, Beto Richa no Paraná e Luiz Fernando Pezão no Rio de Janeiro. O descaso de governadores com a educação é antigo. 


Quando o Brasil era colônia de Portugal vigorava um controle rígido de proibição de publicações e periódicos locais e de instituição de escolas e faculdades em geral. Havendo apenas o ensino jesuítico e católico. A educação no Brasil obedece a alguns ciclos históricos específicos. A primeira lei de responsabilidade no ensino em relação ao Estado, isso ocorreu 15 de outubro de 1827, com a publicação do Império que mandava construir pela primeira vez escolas de primeiras letras (alfabetização, escola primária) em cidades, vilas e lograis mais populosos do Império. Essa lei trouxe uma novidade de deixar a responsabilidade do orçamento educacional a cargo das câmaras municipais, o que não deu muito certo... 


A "reorganização" proposta por Alkmin seria uma violação de uma lei antiga como essa por fugir da responsabilidade de preservar o arquipélago antigo do Estado. Claro que havia um apoio total de grupos, até mesmo liberais ao contexto desse protesto, pois Dilma ainda estava no governo, mas já não conseguia se projetar e governar e o movimento da ocupações foi como se fosse uma centelha que protestava ao mesmo tempo contra e a favor da esquerda, isso que tinha de tão contraditório.


 O argumento dos jovens que desde os protestos de 2013 reclamavam das alianças "centralistas" do PT, davam como motivo para os protestos a falta de governo de picaretas estaduais clássicos e típicos. Foi o fim das "alianças fisiológicas" principalmente quando Dilma e o PT decidiram votar contra Eduardo Cunha na Comissão de Ética. 


Hoje em dia, é inegável que tudo esteja pior, principalmente em terreno da educação, mas com certeza a lembrança de que tudo isso começou há muito tempo atrás ajuda-nos a perceber os erros mútuos do processo. A juventude para mim está certa em se rebelar esteticamente, faz parte sim, sem moralismo patrimonialista nesse sentido. Mas a impressão que fica é que hoje em dia não se protesta mais, pois ninguém liga mesmo para a educação. Só havia protesto, pois havia essa preocupação de participação. 


Tentando aqui imaginar de maneira mais neutra o possível sobre o legado das ocupações, pensando sobre o que é ser estudante em um país que não valoriza em nada a educação. Esses estudantes enquanto grupo político eram um grupo político muito ligado ao PT nos anos de 1990 e que aos poucos, com a chegada do PT ao governo, foi cada vez mais se distanciando. Primeiro com a saída dos quadros antigos que geraram o PSTU, depois com a criação e debandada pesada dos quadros do magistério e dos sindicatos na época para o recém formado PSOL, depois da expulsão de alguns quadros socialistas do partido (isso em 2005). 


Depois dos protestos de 2013 e da saída de Dilma da presidência, essas lembranças se tornaram um pouco liberais e agridoces. Mas um movimento em si, seja ele com líder, ou com pouca projeção posterior, também nos ensinam um pouco sobre a dor do jovem perdido que está lendo sobre os Panteras Negras e não poder fazer nada absolutamente pela sociedade parecido, não apenas agir como eles sempre.


Esse é o primeiro longa do diretor, Déo Cardoso, que só fez poucos curtas até hoje, sendo um diretor ainda pouco conhecido. Mas sua direção é bem madura e conseguiu abordar o tema delicado das ocupações sem tomar lados de cara, nem para condenar completamente e nem aceitar aquela condição emergencial apenas como solução histórica mais adequada da esquerda. Acredito ser um diretor que tem potencial para próximos filmes, principalmente com temática social. 


Disponível no Globoplay




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