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Pura Adrenalina (1996): Combinação de comédia com filmes de assalto dá tom peculiar e realista ao primeiro longa de Wes Anderson

filmes; cults; cinefilos; anos 90

No Arizona, Dignan "resgata" seu amigo Anthony de uma unidade psiquiátrica voluntária, onde ele se autodenomina esgotado. Dignan tem um plano de fuga elaborado e desenvolveu um que ele mostra a Anthony. O plano é realizar vários assaltos e, em seguida, encontrar o Sr. Henry, um paisagista e criminoso em tempo parcial conhecido por Dignan. Premiado com o MTV Movie Awards, é o primeiro filme do diretor Wes Anderson, que viria a fazer filmes de grande repercussão como O Grande Hotel Budapeste, O Fantástico Senhor Raposo e Ilha dos Cachorros.


Para praticar, os dois amigos invadem a casa da família de Anthony, roubando itens específicos de uma lista previamente combinada. Posteriormente, criticando o roubo, Dignan revela que levou um par de brincos não especificados na lista. Isso aborrece Anthony, pois ele comprou os brincos para sua mãe como um presente e especificamente os deixou de fora da lista. Anthony visita sua irmã mais nova na escola e pede que ela devolva os brincos. Dignan recruta Bob Mapplethorpe como motorista de fuga porque ele é a única pessoa que eles conhecem com um carro. Os três compram uma arma e voltam para a casa de Bob para planejar o próximo assalto, que será em uma livraria local. O grupo briga enquanto Dignan se esforça para descrever seu plano complexo.


O grupo rouba uma pequena quantia em dinheiro da livraria e sai "às pressas", parando para se hospedar em um motel. Anthony conhece Inez, uma das empregadas do motel, e os dois iniciam um romance, apesar da barreira do idioma (Inez fala pouco inglês e Anthony quase nenhum espanhol).




História por trás do filme


Wes Anderson se formou na St. John's School em Houston em 1987, que mais tarde ele usou como um local de destaque no filme Rushmore. Quando criança, Anderson fez filmes mudos com a câmera Super 8 de seu pai, estrelada por seus irmãos e amigos, embora sua primeira ambição fosse ser um escritor. Anderson trabalhou meio período como projecionista de cinema enquanto frequentava a Universidade do Texas em Austin, onde conheceu seu colega de quarto e futuro colaborador Owen Wilson, em 1989. Em 1991 ele se formou com bacharelado em filosofia.


Bottle Rocket (1994) surgiu como um curta de 13 minutos em Sundance e impressionou bastante o produtor James L. Brooks, que comentou: "Quando vi o vídeo de 13 minutos pela primeira vez, fiquei deslumbrado - a linguagem e os ritmos do peça deixou claro que Wes e Owen eram vozes genuínas. A posse de uma voz verdadeira é sempre uma maravilha, uma coisa quase religiosa. Quando você tem uma, não significa apenas que vê as coisas de uma perspectiva ligeiramente diferente da dos bilhões de outras formigas na colina, mas que também possui qualidades igualmente raras como integridade e humildade. A força do filme reside no fato de que ele estabelece Anderson como uma voz única no cinema por meio de seu roteiro espirituoso e estranhas caracterizações, e apresenta ao público o tom irônico e o clima excêntrico de um filme de Anderson." 


O curta faz uso forte do quinto dos parâmetros de personagem versus objeto e decoração, mais notavelmente em um close-up de uma banda marcial cuidadosamente arranjada na cômoda de um quarto que está sendo roubado e os close-ups de vários objetos significativos no plano de fuga de Dignan. O filme, embora contenha muitos aspectos temáticos e estilísticos aos quais Anderson retorna em seu longa-metragem, não faz uso dos pontos fortes do formato de curta-metragem. Em vez disso, funciona como um teste de tela para o filme futuro de mesmo nome. 


Pôster de Pura Adrenalina


O curta é desequilibrado de várias maneiras, principalmente no foco do personagem versus interação do personagem. Não há foco no personagem no curta, já que o filme apresenta dois personagens, Dignan (Owen Wilson) e Anthony (Luke Wilson), para nós simultaneamente, enfatizando a interação dos personagens. O apego empático aos personagens encontrados no Hotel Chevalier, por exemplo, não está presente. O longa-metragem causa mais impacto, pois centra-se em Dignan como o personagem principal. 


Bottle Rocket parece mais uma versão abreviada de um longa-metragem do que um curta-metragem em si. O desenvolvimento do personagem é limitado porque muito do curta é focado na ação do roubo, que nenhuma força rompe à complexidade da narrativa. Anderson estava pensando no longa-metragem enquanto fazia o curta, e o roteiro era longa-metragem antes mesmo de o curta ser feito. Anderson explica: “Esse curta era para ser apenas uma parte da produção”. No início de sua carreira, Anderson privilegiou o cinema de longa-metragem, vendo o curta-metragem como algo secundário. Ele supera essa maneira de pensar no momento em que começa a trabalhar no Hotel Chevalier e explora os pontos fortes inerentes do formato de curta-metragem para explorar a complexidade emocional do amor.


O filme foi rodado inteiramente em Dallas, Fort Worth e Hillsboro, Texas. As cenas na casa de Bob Mapplethorpe foram filmadas na Residência John Gillin, projetada por Frank Lloyd Wright.




Leitura do filme 


Warren Buckland, no livro Wes Anderson's Symbolic Storyworld: A Semiotic Analysis, aponta que a cena de abertura de Bottle Rocket manifesta uma estrutura hierárquica distinta. Tudo começa estabelecendo rapidamente um forte vínculo de amizade entre os dois personagens, Anthony e Dignan. No entanto, não é uma amizade entre iguais, porque existe uma hierarquia clara entre eles. Dignan é posicionado como subordinado: ele é incompetente, insensível e continuamente não entende as situações em que se encontra, mas Anthony é benevolente e protetor com ele. 


Dignan é dependente de Anthony, o que significa que Anthony é dominante e detém o poder em seu relacionamento, mas ele nega seu poder e finge delegá-lo a Dignan. Dignan é um personagem fictício cujos traços de personalidade - planejamento excessivo, hiperatividade e comportamento nervoso - seguem de perto o caso clássico de alguém que sofre de transtorno maníaco. Vemos isso na cena de abertura: a "fuga" de Anthony do sanatório é desnecessária. Mas porque Dignan planejou, Anthony decide realizá-lo. Essa cena de abertura estabelece um padrão para o restante do filme, em que Dignan planeja uma série de roubos, precedidos de cenas de planejamento excessivo e seguidos de cenas de celebração. Então, na visão do autor o filme seria uma mistura de Resevoir Dogs (o qual o filme muitas vezes é comparado até mesmo de maneira pejorativa) com Clube da Luta, onde um dos personagens é um duplo psicológico e imaginário. 




Não discordo totalmente da visão do autor, na verdade a tese faz bastante sentido analisando a cena que Dignan agride Anthony e vai embora, mas depois de dias volta do nada a amizade como se nada tivesse acontecido. Porém, sutilezas da história atrapalham e até mesmo colocam em xeque a tese.


Por exemplo, quando eles vão para o hotel e Anthony conhece Inez, uma moça latina. Mas o romance não é meramente um paixão: Como ela não entende inglês direito, ele começa a querer aprender espanhol para interagir com ela. Só que isso toma uma proporção maior na medida que ele começa ajudá-la em seu trabalho para passar mais tempo com ela e aprender sua cultura. Aqui a situação de "lost in translation" ganha conotação cultural e parece uma metáfora dos americanos estarem descobrindo e se apaixonando pela cultura do Brasil e demais países da América do Sul, na medida que notam que são um público em potencial para seus conteúdos; algo que impactou muitos cineastas da geração dos anos 90. Obviamente há uma influencia de novelas brasileiras nesse filme na forma do diálogo, da interpretação, espaços e sentimentos. 




É justamente talvez o romance com Inez que faz com que Anthony e Dignam não sejam o mesmo, pois é Dignam que não entende (e não busca entender) o espanhol e não dá o recado direito para Anthony. Em tal tese psicológica, todo um arco do filme seria desnecessário pois bastaria em si. 


Na verdade, acredito que há uma certa genialidade perdida em Pura Adrenalina e pouco analisada, que é a verossimilhança das situações constrangedoras geradas por um filme que mistura o gênero de filmes de gangster e assalto, com o gênero de comédia. Particularmente gosto de conteúdos audiovisuais com essa aproximação, como Sopranos, Os Bons Companheiros e outros, por eles representarem o tipo de situações que envolvem o crime. 


Nos adaptamos tanto com a retórica do noticiário cotidiano e policial ao ponto de acharmos realmente que os crimes acontecem apenas pelo fato dos bandidos serem maus, descartando fatores econômicos e sociais envolvidos naquele processo, como a pobreza e a fome. Se vamos representar bandidos no cinema, eles não podem ser sempre gangsteres charmosos, gananciosos e conquistadores que só perdem no final pela sua ambição exacerbada, como em Scarface. Porém aí se descarta um fator importante: quem precisa de dinheiro a tal ponto está com necessidades, e logo a eficiência e habilidade podem ser fatores menores do que a oportunidade. 




Ao mostrar que os dois rapazes são desajustados e atrapalhados, desmontamos esse bicho de sete cabeças dos filmes de assalto, levando o espectador diretamente a se sentir como se fosse ele tentando fazer um crime, principalmente nas cenas que eles demonstram ser um fracasso total e totalmente atrapalhados para cometer o tal crime. A cena do assalto desse filme lembra muito o valor da cena do assalto de Sailor em Coração Selvagem. 


Há claro uma valorização psicológica na trama, como nos planos existenciais do descampado verde. Mas acredito que elas estão ali muito mais para questionar os valores e os limites da broderagem. A ideia de que os amigos devem vir em primeiro lugar, até mesmo antes das mulheres, é um pouco ultrapassada e subestimada, e Dignam representa bem isso. Seu valores são ultrapassados e desatualizados para o mundo atual, e Anthony acha que é melhor não discutir, apenas concordar e prosseguir para não perder a amizade de longa data. Mas até quando ele vai ter que concordar, entrar em furadas e tudo mais para não desagradar o amigo? Esse é sempre um paradigma importante em qualquer grande amizade. 


É claro, filmes de assalto sempre parecem a metáfora de fazer um filme em si, e oposição entre os dois protagonistas parece uma metáfora do próprio diretor da mentalidade autodestrutiva que as vezes pode te atrapalhar no processo criativo, acreditando talvez que o sucesso possa mudar todas as coisas.


Considero Wes Anderson um grande cineasta, um pouco superestimado talvez. Sua direção é muito mais marcada por recursos visuais e estéticos, que podem ser realizados pelo direto de fotografia, editor e sonoplasta, do que por técnicas de direção convincentes e formais. Ele também sempre teve muitos bons atores a seu dispor desde seu primeiro filme. Isso dificulta um pouco para mim conceituar seu cinema como "indie" ou independente. Mas com certeza, se julgarmos dentro de uma relação geral de cineastas atuais, ele sabe arranjar e dispor muito bem todas as relações que implicam um filme. As músicas de Pura Adrenalina, são ótimas, passando por Sonny Rollins, Chet Baker, Love, Rolling Stones e mambos latinos, e perfeitamente justapostas aos momentos do filme. 


É essa palavra que marca o cinema de Anderson: justaposição. Entre música, fotografia, montagem e roteiro; de maneira que mesmo utilizando inspirações diversas nessa construção, acaba saindo algo totalmente novo e geralmente com um grande arrojo estético, com cenas muito plásticas e vivas, canalizando muito bem os sentimentos e sensações do espectador justamente por sua inocência e falta de sentido. De uma certa maneira, essa aleatoriedade e simplicidade dão um tom poético e emocional bem próximos da vida real. Um filme que pode parecer bobo no início, mas se repararmos na quantidade de filmes de comédia com assalto que vieram depois, diria que Anderson demonstrou sua sagacidade por fazer o filme certo, na hora certa, prevendo todo um movimento e estilo estético. 


Disponível no MUBI. Deixo vocês com a trilha sonora do filme:





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