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Corpo em Evidência (1993): Madonna e William Dafoe em filme que explora o arquétipo da "black widow" no cinema


O idoso e rico Andrew Marsh morre em decorrência de complicações decorrentes de um incidente erótico. A principal suspeita é sua amante, Rebecca (Madonna), que declara sua inocência ao advogado Frank (William Dafoe). Inicialmente acreditando nela, Frank concorda em representá-la. Dirigido por Uli Edel (Christiane F, 1981) e produzido por Dino De Laurentiis

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Já começo destacando que esse é um filme polêmico. Muitas pessoas simplesmente odeiam o filme, vide suas notas nos sites agregadores de filmes. Entretanto, como já disse algumas vezes, minha ideia não é dar nota aos filmes, afinal isso pode ser muito subjetivo e pessoal. Minha ideia é analisar o que tem ali enquanto mensagem e que pode ser interessante de destacar enquanto audiovisual.


Lançado em 1993, Body of Evidence surgiu no auge da febre dos thrillers eróticos que dominaram o início da década de 1990. O sucesso de Instinto Selvagem no ano anterior havia criado uma demanda por filmes que combinassem erotismo, crime e suspense psicológico. Nesse cenário, Madonna, então no ápice de sua fama e cercada de uma aura de provocação, parecia a escolha perfeita para protagonizar uma história em que o sexo é tanto o meio quanto a arma do crime. O resultado, porém, é um filme que escapa da simplicidade do gênero apenas para mergulhar em uma contradição: ele é simultaneamente uma caricatura e um comentário involuntário sobre a própria sexualização da mulher no cinema americano.

O filme tem aquela aura de filme jurídico: filmes sobre sistema de justiça e julgamentos, que ficaram muito populares no início dos anos 90, ao estilo Acima de Qualquer Suspeita (1990)


A principio, o filme faz um pacto com o espectador. Sabemos como o homem morreu e somos levado a pactuar com a personagem de Madonna, afinal tudo parece apenas um incidente durante a prática sexual. 

Entretanto, o problema vem na medida que o próprio advogado de Dafoe, que é um cara super sério e centrado, começa a se perder no desejo pela sua cliente. 


Tudo inicialmente indica que a personagem de Madonna é uma femme fatale. O arquétipo da femme fatale é uma figura feminina sedutora e perigosa que usa seu charme e sexualidade para atrair homens para situações de perigo ou ruína. Essa personagem é frequentemente retratada como misteriosa, inteligente e independente, aparecendo em diversas mídias como literatura, cinema (especialmente no gênero film noir) e jogos eletrônicos. O arquétipo tem raízes históricas e está associado a ansiedades sociais sobre o poder e a autonomia feminina. 

Ela começa gradualmente a seduzir Dafoe, mas não de uma maneira saudável. Ele começa a perder o foco no seu trabalho e na vida pessoal, em detrimento de seu desejo por ela. 


Aos poucos, começamos a desconfiar que ela não é apenas uma femme fatale, mas sim uma "black widow" ou na tradução uma "viúva negra". Na natureza, a aranha viúva negra é conhecida pela prática incomum de matar o macho após o ato sexual. No cinema, esse arquétipo é utilizado para descrever a personagem feminina que destrói seu parceiro ao longo da relação, fazendo ele tomar escolhas que o prejudicam e o destroem. 

Dafoe realmente se envolve com Madonna, só que só de pensarmos que ele está se envolvendo com uma cliente acusada de matar seu parceiro sexual, sabemos que além de se colocar em perigo, ele também está tomando uma postura pouco ética profissionalmente, uma vez que ao se envolver sexualmente com sua cliente fará que ele faça vista grossa para nuances importantes do caso. 


No auge do envolvimento dos dois, tempos uma cena impactante (mas pouco verossímil) quando os dois estão em um estacionamento e começam o ato sexual. Na cena, que é bem gráfica e explícita, vemos a personagem de Madonna colocando o advogado para fazer sexo oral nela em cima de um carro. A cena é bem memorável e marcante, entretanto muito psicológica e representativa, uma vez que sabemos que estacionamentos nessa época já tinham câmeras de segurança, e logo aquilo seria muito comprometedor para ambos. Mas acredito que aqui a cena tem uma dimensão de provocar ao mesmo tempo que nos entrega que o advogado está completamente controlado por ela. 



Madonna, em particular, é o centro dessa tensão. Sua performance parece feita menos para convencer e mais para afirmar um mito: a Madonna provocadora, dona de si, que usa o desejo como forma de poder. Essa sobreposição entre personagem e persona é talvez o ponto mais interessante do filme. Body of Evidence não funciona como um suspense, mas como um espelho da própria imagem pública da artista. Rebecca Carlson é Madonna julgada pelo que representa: uma mulher que fez do corpo uma arma de expressão. Nesse sentido, o filme é quase uma alegoria involuntária sobre a histeria moral que cercava a sexualidade de Madonna no início dos anos 1990.

Porém, em outro plano, o filme parecia ter a ideia interessante de questionar o arquétipo da femme fatale no cinema: é ela culpada pela forma como impacta os homens? "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"? Não exatamente, uma vez que o personagem de Dafoe tinha a opção ética de evitar o envolvimento desde o início. Entretanto, conforme essa tensão ser estende, essa ideia de tese de debater o arquétipo se perde, focando mais em estabelecer que ela é de fato uma viúva negra e quer de fato destruí-lo perdendo o debate com o noir que estabelece mais no inicio do filme.


Críticos contemporâneos chamaram o filme de derivativo, acusando-o de ser uma imitação pálida de Instinto Selvagem. Há verdade nisso uma vez que o roteiro se apoia em clichês e em reviravoltas previsíveis. Mas muitos filmes faziam isso nos anos 90. Reduzir Body of Evidence a uma cópia barata talvez seja ignorar seu subtexto quase involuntário. 


Onde o filme de Paul Verhoeven explorava o poder do mistério, Edel expõe tudo de forma literal: o corpo, a culpa, o desejo e a própria fabricação da fantasia erótica. Há uma frieza clínica na maneira como o filme observa seus personagens, como se o sexo fosse apenas mais um experimento.


O erotismo em Body of Evidence é menos uma celebração do prazer e mais uma investigação do controle. Rebecca manipula, domina e se coloca acima da lógica do sentimento; para ela, o prazer é instrumento. Essa inversão, em que o feminino não é vítima, mas agente, foi recebida com desconforto pela crítica e pelo público da época, uma vez que o filme chama inicialmente para a desconstrução dessa ideia, porém ao final entregando aquilo que já se espera. 


Talvez por isso o filme tenha sido massacrado: o escândalo não estava apenas nas cenas de sexo (que são muito bem filmadas por sinal), mas na sugestão de que uma mulher poderia controlar os termos de seu próprio desejo. 


A atuação de Madonna também nunca foi das melhores. Ela sempre se interpreta. Até aí, tudo bem. Mas ao lado de Dafoe, que é um monstro da atuação, sua performance parece sempre muito maniqueísta.


Trinta anos depois, o filme sobrevive como um objeto curioso: um filme "cult" não cultuado. Parte documento de uma era em que Hollywood ainda flertava com o erotismo sem ironia, parte estudo de caso sobre os limites da persona pública de Madonna e os limites de como ela pode usar isso em diferentes mídias. 

Revê-lo hoje é notar como o tempo transforma fracassos em artefatos culturais: o que antes parecia vulgar, agora soa como um eco de uma década que explorava sem pudor a tensão entre moral e prazer. Você pode questionar o roteiro, a direção e atuação como falhas, mas não pode negar que a proposta era muito mais aberta, livre e sem censura do que hoje em dia. O filme podia fazer comentários políticos e sociológicos mais abertamente, questionando ética, sexualidade e poder de maneira aberta, sem subterfúgios ou infantilizações.


Body of Evidence pode não ter o rigor de um bom thriller nem a sutileza de um drama psicológico, mas permanece como registro de uma época em que o desejo ainda podia ser tratado como prova. E a prova, inevitavelmente, era o próprio corpo.


Curiosidades do filme


A onda dos thrillers eróticos: O filme foi lançado em janeiro de 1993, logo após o sucesso estrondoso de Instinto Selvagem (1992). Hollywood tentava reproduzir a mesma fórmula: erotismo explícito aliado a intrigas criminais e personagens femininas ambíguas. Outros títulos dessa leva incluem Sliver (1993) e Jade (1995).


A classificação NC-17: Inicialmente, Body of Evidence recebeu a temida classificação “NC-17” nos Estados Unidos, reservada a filmes com conteúdo sexual considerado excessivo. Para evitar restrições de exibição, o estúdio removeu cerca de dois minutos de cenas explícitas. Mesmo assim, a reputação de “filme escandaloso” permaneceu — e acabou sendo o principal foco da divulgação.


Madonna em tribunal público: O lançamento coincidiu com o auge da imagem provocadora da cantora. No ano anterior, ela havia lançado o livro Sex e o álbum Erotica. Assim, o filme acabou sendo interpretado como uma extensão de seu projeto artístico pessoal. Muitos críticos viram a personagem Rebecca Carlson como uma projeção direta da própria Madonna — e o público reagiu a ela como se estivesse julgando a cantora, não a personagem.


A trilha sonora: Composta por Graeme Revell, combina jazz e arranjos eletrônicos suaves, ajudando a criar a atmosfera sensual e sombria típica do gênero. A música, porém, é um dos poucos elementos elogiados de forma consistente pelas críticas da época.


Recepção e bilheteria: Apesar de um orçamento de cerca de 30 milhões de dólares, o filme arrecadou apenas 13 milhões nos Estados Unidos. A crítica foi quase unânime em sua reprovação: Roger Ebert deu meia estrela em quatro, classificando-o como “incompetente e risível”. Mesmo assim, a produção encontrou um público fiel no home video e nas reprises noturnas de TV a cabo, tornando-se um pequeno cult.


Filmado em Portland: As filmagens ocorreram quase inteiramente em Portland, Oregon, conferindo ao longa uma ambientação incomum para o gênero. O uso de locais reais — como o Pittock Mansion e o tribunal da cidade — dá um certo realismo à narrativa.


Reabilitação tardia: Décadas depois, críticos e acadêmicos começaram a revisitar Body of Evidence sob outra luz, analisando-o como documento do discurso sobre poder e sexualidade nos anos 1990. Nessa releitura, Madonna é vista não como atriz falha, mas como símbolo de uma tensão entre liberdade e julgamento moral que marcaria a cultura pop da época.


Assista (não sou responsável pelo link, apenas o indexei):


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