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O Pagamento Final (Carlito's Way, 1993): Com Al Pacino e Sean Penn, De Palma adapta romance de ex-Suprema Corte sobre a situação dos latinos nos EUA



Após sair da prisão, Carlito Brigante jura a si mesmo que nunca mais vai voltar. Entretanto, sair da vida do crime não é fácil, uma vez que ele precisa resistir a várias oportunidades e tentações para voltar para o tráfico de heroína. Ele encontra seu antigo amor, Gail, que lhe mostra que a vida pode ser feliz. Ele decide juntar dinheiro para se mudar para as Bahamas, mas a fuga não será nada fácil



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Pagamento final talvez seja um dos filmes mais diferentes do gênero. A primeira coisa que vem a mente é Scarface, pois era Al Pacino colaborando de novo com De Palma. Só que aqui ao invés de Miami, temos Nova York. E no lugar de um violento gangster temos um cara que quer abandonar o crime e não admira a violência. Ou seja, é um "lado B" de Scarface. 


Charlie foi preso e desde que foi solto, ele só pensa em juntar dinheiro para se aposentar. Por isso, temos um filme de gangster chuvoso, sombrio e reflexivo.


Com gangsteres geralmente mostrados como livres, a vida de Charlie é um completo inferno. A garota que ele gosta é uma stripper, o advogado dele é um viciado que está passando a gostar da rotina de violência e possui uma rincha pessoal com a máfia italiana e seus funcionários consideram assassinar um entretenimento. 



Charlie é um gangster old school que acredita no código das ruas. Isso faz com que ele ao mesmo tempo que é admirado, também desperte o ódio de muitos, em rinchas e intrigas psicologicamente explorados muito bem pela direção, hora em planos fechados sufocantes e detalhistas, outras horas em planos totalmente experimentais e criativos, o que faz bem o estilo do Brian De Palma. 



A grande virada acontece quando o advogado de Charlie (que serviu de inspiração para o Ken Rosenberg do GTA Vice City e GTA SA) perde o controle e decide ele mesmo passar a fazer parte do mundo do crime de verdade. Nisso ele acaba envolvendo Charlie em um assassinato quando o plano original era ajudar na fuga de um prisioneiro da cadeia, algo que representa o próprio Charlie e sua jornada por ficar dentro da lei, projeto morto pelo advogado.



Charlie ainda descobre que o advogado queria o entregar para a polícia e implantou a informação de que ele estava traficando. Apesar disso, ele não vai na pressão da polícia e decide não entregar o amigo traidor.



Charlie decide fugir com a namorada da cidade, pois os rivais da máfia de seu advogado querem matar ele e Charlie por achar que eles formam uma espécie de grupo criminoso rival. Mas Charlie vê tudo com o olhar cético da independência de cada um por si.


Temos a cena perfeita da estação de trem, Central Station, local que De Palma visitava após os Intocáveis, onde o diretor já havia filmado uma grande cena de tiro que fazia referência a Encouraçado Potemkin. A cena de tiro aqui é clínica, precisa, uma habilidade de mostrar a violência crua que o De Palma domina. 



O final entretanto é provocante, na medida que é o início do filme. Desde a primeira cena, a edição escolheu nos mostrar Charlie levando um tiro, onde o filme só nos mostra a trajetória do que aconteceu e nos faz torcer para ele se safar. 


Isso é ressaltado pela narração em off do protagonista, que dá certo tom surreal ao filme, a final ele já está morto, ao estilo Brás Cubas. Isso se dá também pelo fato do filme ser baseado em baseado nos romances Carlito's Way (1975) e After Hours (1979) do ex-juiz da suprema corte dos EUA, Edwin Torres. Torres era filho de porto-riquenhos e cresceu no Harlem espanhol. Esse detalhe, apesar de não parecer, tem tudo haver com os caminhos do filme. Charlie na trama é um bandido de origem latina e também cresceu em um bairro latino. Seu código de conduta provém do sua origem. Entretanto, talvez o mais trágico aqui, é que como a visão de mundo que um imigrante ilegal deve ter para tentar a vida nos Estados Unidos, Charlie representa perfeitamente a visão de mundos dos latinos que tentam viver o "sonho americano". 



Diferente dos mafiosos italianos e sua visão familiar, os criminosos latinos (como em Scarface) possuem uma visão individualista, que busca se ver como um micro empresário, onde apenas suas ações serão determinantes para seu sucesso. Porém, essa visão individualista apesar de tornar Charlie inimputável para a maioria das acusações, torna-o fraco perante os outros grupos criminosos, que são associativistas. 


Por isso também, já focando na trama do segundo livro e do final do filme, ele acredita que é possível "sair" e se tornar uma pessoa comum, quando na verdade isso será sua sentença de morte, uma vez que ele não terá mais a rede de proteção que o rodeia por ser um local. Em outras palavras, para ele crescer era se afundar, ter uma "oportunidade" era um golpe. 



Não há como não pensar a trama a luz do fato do autor ter sido alguém de origem latina que chegou a um dos postos mais altos do funcionalismo público americano. Se por um lado podemos ver alguém que é jurista fazendo uma análise sociológica dos casos que ele já havia visto em torno do crime local, por outro lado o personagem da trama, Charlie, é extremamente parecido com o autor, desde sua origem até a questão de estar em uma posição que todos consideram importante mas ele gostaria de "sair". 


A chave da interpretação de "O Pagamento Final" é tentar ver o mundo das gangues como um paralelo do mundo jurídico e vice e versa. Isso é reforçado pelo personagem do advogado, que pela loucura de ser alguém estudado que deve defender pessoas violentas e iletradas, torna-se confuso da sua posição perante a justiça. Indo de maneira mais profunda, da para refletir que o próprio fato de ser alguém de origem latina e ascender a um funcionário da justiça americana, faça ver que o autor é inimigo de si próprio. Para conseguir "sair" de seu local de origem, ele deve matar a si mesmo no final, deixar suas quimeras sobre a liberdade e passar interpretar a lei nos seus dois sentidos: dos diretos e dos deveres. 




Esse debate sobre a essência do que é ser latino ou estadunidense e a identidade confusa gerada por essas migrações é debatida em detalhes ao longo de toda a história do livro e do filme. Começa pelo nome do protagonista, que no título original consta "Carlito", abreviação de "Carlos", mas que na fase da vida a qual vemos todos já o chamam de "Charlie", americanizando para o inglês o nome do protagonista. Depois, pelo fato como todos, desde seu advogado ou funcionários, o tratarem como menor, como um "garoto de recados", em pelo menos algum momento do filme. Por último, por todos esperarem dele uma postura violenta e como ele se recusa a tal, todos passam a duvidar de seu respeito. Isso leva outra vez a questão de "não haver saída", uma vez que isso seria seguir uma postura pacífica, e logo deixar de ser latino para se tornar um estadunidense. 




Outra dimensão confusa explorada pelo filme em torno de ser latino ou estadunidense, é o fato da organização regida por um latino ser legal e funcionar como uma empresa tipicamente americana. Em outras palavras, não seria a provocação de De Palma aqui que o crime organizado americano é, na verdade, formado por imigrantes latinos? Ou seja, que os valores tradicionais dos Estados Unidos é uma cópia da ética e cultura da América Latina. Se pensarmos como a Constituição brasileira foi melhor utilizada para punir os invasores do 8 de janeiro, em relação a como a constituição dos Estados Unidos foi usada para pouco reprimir os invasores do capitólio; isso se reforça muito. É cobrado do latino que seja menos violento e mais "civilizado", quando na verdade a própria visão de "civilidade", principalmente politica e jurídica, é copiado da tradição latina (direito romano). Como acusar alguém de ser imigrante ilegal em um país formado por imigrantes e que se denomina uma união de estados independentes? 


É um paradoxo a nossa visão de mundo atual. Enquanto os anglo-saxões são vistos como pacifistas por advogar pelo uso da violência e guerra ne resolução de conflitos, os governantes da América do Sul são vistos como "populistas", "mentirosos" ou "cínicos" por defenderem que a paz deve sempre ser usada para acabar com conflitos. Isso faz com que a ideia ascensão social na América como um todo seja o mesmo que virar uma pessoa punitiva, dar voz ao conservadorismo das tradições, não importando o espectro político. 



É um filme ótimo, um dos mais cabeças do gênero, onde a dupla Pacino e De Palma entregou tudo o que não tinha em Scarface. Diferente do calor, o clima frio, chuvoso e citatino. No lugar de um protagonista fanfarrão, um cara pacifico, calculista e que não quer poder, apenas fugir, algo que Tony Montana nunca pensou em fazer. A duplinha que Pacino faz com Sean Penn (que está positivamente irreconhecível) nesse filme também é memorável, imortal, ao ponto de ser quase inteira transportada para o mundo dos games (principalmente o GTA Vice City). 


Apesar de pouco reconhecida, a direção de De Palma nesse filme talvez seja a melhor de sua carreira. O filme é todo trabalho em suas expressões psicológicas e suas relações com a disputa em torno do poder. Cada cena, cada plano entre alguma coisa. O único grande defeito do filme é sua previsibilidade. Como o diretor entrega tudo na primeira cena, ele dá spoiler do próprio filme, onde se aquela cena inicial não acontecesse o filme teria muito mais apelo "replay", ou seja, daria vontade de assistir diversas vezes. Destaque também para trilha sonora, que é incrível desde o som dos barulhos ambientes, os merengues, a trilha de fundo ao uso impecável da canção de Joe Cocker, "You are so Beatiful", perfeitamente escolhida aqui. Um clássico moderno dos filmes de gangsters que é obrigatório para aquele que é fã do gênero.

 



História e bastidores da produção do filme  


Pacino ouviu falar do personagem Carlito Brigante pela primeira vez em uma academia YMCA na cidade de Nova York em 1973. Pacino estava trabalhando para seu filme Serpico quando conheceu o juiz da Suprema Corte do estado de Nova York, Edwin Torres (o autor que estava escrevendo os romances Carlito's Way e After Hours, ambos adaptados no filme de De Palma). 


Quando os romances foram concluídos, Pacino os leu e gostou, principalmente do personagem Carlito. A inspiração para os romances veio da formação de Torres: o bairro de East Harlem onde ele nasceu e sua atmosfera de gangues, drogas e pobreza. Em 1989, Pacino enfrentou uma ação judicial de US$ 6 milhões do produtor Elliott Kastner. Kastner afirmou que Pacino voltou atrás em um acordo para estrelar sua versão de um filme de Carlito, com Marlon Brando, como o advogado criminal David Kleinfeld. O processo foi arquivado e o projeto abandonado. 




Pacino procurou o produtor Martin Bregman com a intenção de fazer um filme de Carlito Brigante e mostrou-lhe um rascunho de roteiro, que Bregman rejeitou. Tanto Bregman quanto Pacino concordaram que o personagem Brigante forneceria uma vitrine adequada para os talentos de Pacino. Bregman abordou o roteirista David Koepp, que havia acabado de escrever o roteiro do próximo filme de Bregman, The Shadow, e pediu-lhe que escrevesse o roteiro de Carlito's Way. Chegou a decisão de que o roteiro seria baseado no segundo romance After Hours. Carlito nesta fase corresponderia mais à idade de Pacino. Embora baseado principalmente no segundo romance, o título Carlito's Way permaneceu, principalmente por causa da existência do filme After Hours de Martin Scorsese. Bregman trabalharia em estreita colaboração com Koepp por dois anos para desenvolver o roteiro de filmagem de Carlito's Way.


Koepp lutou com a narração durante todo o processo de escrita. Inicialmente a narração seria no hospital, mas De Palma sugeriu a plataforma da estação ferroviária. As cenas do hospital foram escritas 25 a 30 vezes porque os atores tiveram problemas com a sequência, com Pacino até pensando que Carlito não iria para o hospital. Com uma reescrita final, Koepp conseguiu fazer a cena funcionar de forma satisfatória para Pacino. Nos romances Kleinfeld não morre, mas De Palma tem um enorme senso de justiça e retribuição. Ele não poderia matar Carlito e deixar Kleinfeld vivo. 



A certa altura, o diretor de The Long Good Friday, John Mackenzie, foi ligado ao filme. Quando Carlito's Way e sua sequência After Hours foram adquiridos, Martin Bregman tinha Abel Ferrara em mente. No entanto, quando Bregman e Ferrara se separaram, De Palma foi contratado. Bregman explicou que esta decisão não se tratava de "reunir a antiga equipa", mas sim de aproveitar os melhores talentos disponíveis. De Palma, relutantemente, leu o roteiro e assim que surgiram personagens de língua espanhola ele temeu que fosse Scarface novamente. Ele disse que não queria fazer outro filme de gangster em espanhol. Quando De Palma finalmente leu tudo, ele percebeu que não era o que ele pensava. De Palma gostou do roteiro e imaginou-o como um filme noir. Bregman supervisionou o elenco ao longo das diversas etapas da pré-produção, e selecionou cuidadosamente a equipe criativa que tornaria o filme uma realidade. Isso incluiu o designer de produção Richard Sylbert, o editor Bill Pankow, a figurinista Aude Bronson-Howard e o diretor de fotografia Stephen Burum. 





Inicialmente, as filmagens começaram em 22 de março de 1993, embora a primeira filmagem programada, o clímax da Grand Central Station, tenha sido alterada quando Pacino apareceu de muletas. Em vez disso, a sequência do salão de sinuca que aumenta a tensão, onde Carlito acompanha seu jovem primo Guajiro em um malfadado negócio de drogas, iniciou a produção. Como o filme era fortemente baseado em personagens e apresentava pouca ação, a sequência inicial da piscina teve que ser elaborada e montada corretamente. Muito tempo foi gasto configurando e filmando. Depois que o estúdio de cinema assistiu a um corte da sequência do salão de sinuca, uma nota foi passada à equipe afirmando que eles achavam que a cena era muito longa. De Palma passou mais tempo acrescentando elementos à sequência e, com a ajuda do editor Bill Pankow, fez com que funcionasse. Os produtores voltaram dizendo “muito melhor mais curto”. 


Além da sequência do pôster, que foi filmado na Flórida, o filme inteiro foi filmado em locações em Nova York. De Palma percorreu Manhattan em busca de locais visuais adequados. Um cortiço na Rua 115 tornou-se o local da volta de Carlito: a cena do bairro. A sala do tribunal, na qual Carlito agradece ao promotor, foi baleada no local de trabalho do juiz Torres, o prédio do Supremo Tribunal Estadual, na 60 Center Street. O Club Paradise estava inicialmente em um prédio de arenito no West Side como modelo para as instalações pós-prandiais do livro. Mas isso foi considerado muito apertado para as filmagens. Um bistrô clube de vários níveis projetado por De Palma tomou forma no Kaufman-Astoria Studios em Long Island City, no estilo discoteca art déco dos anos 1970.


A fuga de Tony Taglialucci de Rikers Island, uma filmagem noturna no meio do rio, foi considerada impossível. Em vez disso, a produção utilizou um estaleiro do Brooklyn, onde o barco de Kleinfeld foi baixado para uma "eclusa" vazia para onde a água do rio era bombeada. Máquinas de fumaça e torres de luzes espaciais foram instaladas.


Para um final climático, De Palma encenou uma perseguição desde a plataforma da estação Harlem-125th Street (Metro-North) até as escadas rolantes do Grand Central Terminal. Para as filmagens, os trens foram redirecionados e cronometrados para que Pacino e seus perseguidores pudessem disparar de carro em carro. A duração da cena da escada rolante durante o tiroteio climático na Grand Central Station causou dor de cabeça ao editor Pankow. Ele teve que juntar as sequências para que o público ficasse tão envolvido na ação que não pensasse em quanto tempo a escada rolante estava funcionando.


Patrick Doyle compôs a trilha sonora original, enquanto o supervisor musical Jellybean Benitez complementou a trilha sonora com elementos de salsa, merengue e outros estilos autênticos.


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