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Aquarius (2016): Uma visão crítica sobre a modernidade que reflete gentrificação, especulação imobiliária, machismo e a indústria cultural


Clara (Sônia Braga) é uma viúva de 65 anos, que é a última moradora do edifício Aquarius, na orla da praia de Boa Viagem, no Recife. No decorrer do filme, acompanhamos o dia a dia da protagonista, sua relação com seus amigos e familiares, e a investida de uma construtora que pretende comprar o prédio. Filme é uma produção Brasil/França.

Aquarius é um filme franco-brasileiro, dos gêneros drama e suspense, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho. É produzido por Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd e Michel Merkt, coproduzido por Walter Salles e estrelado por Sônia Braga. Suas filmagens ocorreram no intervalo de sete semanas entre agosto e setembro de 2015, em vários bairros do Recife, bem como na Praia dos Carneiros, a 80 quilômetros da capital pernambucana.  


Primeiro, gostaria de lembrar quando vi o filme pela primeira vez na estreia no Cine Arte UFF. Onde eu moro, em Niterói, temos um lugar ligado a faculdade onde os ingressos de cinema são mais baratos e a curadoria é bem melhor que o circuito comercial, o que é um certo privilégio e como Aquarius fala sobre esses privilégios e uns e outros, é boa a comparação. 

Foi em uma sessão de estreia de Aquarius no cinema da UFF, em 2016, onde lembro ter apenas alguns jovens como eu, a maioria da plateia tinha um perfil padrão certo: moradores de Icaraí (bairro da elite/classe média alta niteroiense, onde a maioria é de eleitores de Bolsonaro, racistas de carteirinha em sua maioria). Foi nessa sessão de cinema, na cena logo inicial quando todos estão fazendo ioga na praia do filme e chega os rapazes de "fora" que eu vi esse racismo todo quando a plateia começou a reagir a cena dos jovens negros chegando. Nesse momento, a plateia do filme começou a chiar em vaias e perturbações, várias e várias pessoas a falar coisas: 

"Tava demorando" "pronto, essa gente vai incomodar", "ah, lá vão assaltar", e outras frase absurdas e que nem valem a pena lembrar porque entrou para a "caixa mental: tem muitos e muitos racistas na minha cidade". Mas a cena seguinte, onde a tensão momentânea é brincada com a desconstrução típica nordestina (totalmente ao contrário das "vibes de Rio de Janeiro"), os rapazes não estavam ali para "incomodar" (como a elite de Niterói pensou ali e se entregou em seus preconceitos usuais), eles estavam ali para participar! Essa para mim é a cena mais impactante do filme por perceber que o diretor brincou com o racismo das pessoas que ele sabia que também estariam na audiência com esses pensamentos. Prova de que Kleber Mendonça sabe mexer com sua audiência. Criando um bait.


O filme tem a presença impactante da diva Sônia Braga, em um papel que honra sua já destina carreira. Temos toda uma série de homenagem aos tipos de atuação e pessoa de Sônia que é memorável por si. Além de musa de músicas de Caetano e de ter ensinado a palavra "buceta" para as meninas de Sex and The City e chegou a namorar a Samantha (sim, a loira republicana). Sônia também já contracenou com o  Marcelo Mastroianni  no filme Gabriela (1983) e fez o memorável e inesquecível adaptação literária de Jorge Amado, o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), com José Wilker. Esse é o primeiro trabalho de Sônia Braga no cinema brasileiro em quinze anos, tornando o filme mais especial ainda.


Sônia é uma das grandes atrizes e agora fazendo esse lado guerreira e forte que também tem muito em Gabriela. Mas esse filme questiona os limites do naturalismo quando vemos que as pessoas em volta de Clara, observam a situação com impotência e acham que seria interessante pelo menos pensar em negociar o valor de 2 milhões que eles queriam pagar para ela. A cena onde ela dá em cima do bombeiro (Irandhir Santos) de maneira bem suave.




Na medida que a modernidade chega na forma quase do diabo, uma construtora que o filme parece sugerir tem acordos que datam da época da ditadura militar, como na referência de "tacar o cupim na mesa", seria essa ideia que estava em voga na época, tanto na esquerda quanto na direita de fazer accountabily administrativa contra os crimes da ditadura. Em todo momento, o arquiteto que é do mesmo nome da empresa que trabalha, vale lembrar, diz que estudou negócios nos Estados Unidos e que por isso merecia respeito. 


Isso confirma na cena que ela conversa com o jornalista e fica sabendo que todo mundo que conhece, a jornalista que a criticou de velha , o dono do jornal e o dono da construtora todos são é claro, apadrinhados pelo mesmo capital político, explicando porque fizeram uma matéria contra ela, que inicialmente parecia a favor, quando ela conta a história do LP raro,  só a fotógrafa presta atenção, enquanto a moça jornalista apenas sorri e diz de maneira bem estúpida algo do tipo "então nada de mp3, né?", e na matéria sai algo como "não escuto mp3", quando ela não tinha falado nada disso, essa cobertura é explicada pela jornalista ter o mesmo clientelismo da construtora, como o próprio filme produzido pela Globo filmes (a empresa da Rede Globo junto como Jornal O Globo apoiaram abertamente a ditadura militar). 

 

Aquarius teve sua primeira exibição mundial em 17 de maio de 2016 na 69° edição do Festival de Cannes, no qual concorreu à Palma de Ouro.  O filme também teve amplo debate na mídia brasileira devido a um protesto feito por sua equipe no tapete vermelho de Cannes, no qual questionava-se o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Clara, como Dilma, se viu no meio de pessoas que de maneira automática passaram a atacar as instituições com chancela de todos os meios de comunicação e com atuação de Eduardo Cunha que na época fazia o que queria. Foi em Cannes que o elenco todo fez um protesto para denunciar a situação lá fora e tomou muitas críticas dos "neutros da arte".


 O impeachment (o golpe) foi uma cartada de uma direita que pensava como a construtora do filme, e os filhos e as pessoas em volta que não sabem o que fazer e veem todo o processo são o povo brasileiro que assistiu sem fazer nada ao processo que praticamente acabaria com o país. Clara é a última moradora de um modo de vida para poucos, agora a especulação além de espantar os mais pobres, também pode "expulsar" os ricos de seus locais de paraíso, e é uma praga incontrolável e corrói o preço dos alugueis e condomínios.


Aquarius é dividido em três capítulos: "O cabelo de Clara", "O amor de Clara" e "O câncer de Clara". O enredo começa em 1980, no aniversário de tia Lúcia (Thaia Perez), onde a tia lembrava de seu primeiro amor na faculdade e por isso interrompeu o discurso de sala e homenagem para dizer "mas vocês esqueceram da revolução sexual". Em seguida, a trama salta para 2016, e vemos que Clara (Sônia Braga), agora viúva, vive no edifício Aquarius há mais de 30 anos, criou seus filhos ali e guarda grandes lembranças do local. 


Ela é a última moradora do Aquarius, que é situado em área valorizada do Recife; todos os demais apartamentos foram comprados pela Construtora Bonfim, que pretende demolir o prédio e erguer ali um maior e mais moderno.  Tem uma cena muito bonita, onde os filhos estão preocupados com a atitude "ideológica" da mãe de ignorar as mudanças em volta dela, e ela mostra para eles uma homenagem singela para os filhos no seu novo livro de crítica musical, um livro sobre o Heitor Villa Lobos (um dos maiores gênios da música nacional que misturava erudito com popular). 


Contudo, a personagem não vê motivos para se mudar, e então passa a sofrer variadas formas de assédio e a receber ofertas que não lhe interessam, principalmente de Diego (Humberto Carrão), o responsável pelo projeto do novo edifício. Ela gosta muito de seu sobrinho Tomás (Pedro Queiroz), e a sua namorada que vem do Rio de Janeiro. É nessa cena que ela fala algo que parece feito para virar meme, "escuta Maria Bethânia, mostra para ela que tu é intenso". Um momento bem divertido do filme.



 O longa obteve parte de seu financiado através da Lei do Audiovisual, que determina que a iniciativa privada possa patrocinar projetos e depois descontar parte do valor em seu imposto de renda. O filme foi autorizado a captar 2,9 milhões de reais pela Lei, e destes conseguiu levantar cerca de 1,95 milhões de reais. Somando-se patrocínio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), o orçamento total da obra foi de 3,4 milhões de reais.


A produção foi indicada a diversos prêmios internacionais, entre eles Independent Spirit Awards, César e Prêmio Platino. Além disso, foi incluída nas listas de melhores filmes do ano de diversas publicações estrangeiras como Sight & Sound, Cahiers du Cinéma e The New York Times; conquistando, inclusive, o 1.º lugar no ranking feito pelos alunos da mais prestigiada universidade de cinema do Reino Unido, a National Film and Television School. Também foi um sucesso de público, atingindo meio milhão de espectadores entre Brasil e França.


História por trás do filme


As filmagens foram gravadas entre 4 de agosto e 23 de setembro de 2015, algumas locações contaram com alguns bairros de Recife, na região da praia, na Boa Viagem, em Santo Antônio, Casa Forte, Campo Grande, em Pina, Setúbal, Brasília Teimosa e a Praia dos Carneiros, a 80 quilômetros de Recife também. Algumas cenas foram gravadas no "Restaurante Leite" e no "Clube das Pás", na Livraria da Praça de Casa Forte, no Cemitério Santo Amaro e no Edifício Oceania, que foi o local utilizado para as filmagens.


Aparentemente, o filme foi inspirado no edifício Caiçara, erguido em 1930 e parcialmente demolido em 2013. Os planos eram para gravar no próprio prédio, mas a demolição ocorreu antes disso. A equipe do filme chegou a fazer 12 horas de filmagens por dia, 7 dias de semana, mas segundo o próprio diretor na entrevista no programa novo da TV Brasil Cine Resenha, onde o diretor falou um pouco da produção do filme, ele disse que ao filmar, ouvia coisas do tipo "vai trabalhar, vagabundo", e que na época ele achava esse tipo de coisa aleatória e que depois ele viu que não. 


O filme foi inspirado no Edifício Caiçara, erguido na década de 1930 e parcialmente demolido em 2013. Os planos iniciais eram que ele fosse gravado no próprio Caiçara, contudo, a demolição deste acabou impossibilitando a equipe de realizar as filmagens na locação. Com isso, as cenas tiveram que ser rodadas no Edifício Oceania, um prédio vizinho e com características bem parecidas com as do Caiçara. Antes de encontrar o Oceania, a produção buscou locações também em João Pessoa e Maceió. O ritmo de trabalho foi intenso, com a equipe chegando a fazer doze horas de filmagens por dia, seis dias por semana.


 Além disso, ela vê muito de si mesma em Clara. De acordo com Mendonça Filho, Clara não foi escrita pensando na atriz, mas o perfil de ambas se revelou muito próximo; várias outras atrizes foram cotadas para protagonizar o filme, e houve, inclusive, a ideia de descobrir uma desconhecida para o papel. Foi o diretor de elenco, Marcelo Caetano, quem lembrou de Sônia Braga; ele descobriu que ela participava de filmagens no estado americano do Texas, e então lhe enviou o roteiro. O diretor pensava em Clara como uma projeção de sua própria mãe. Ele define a personagem como uma "heroína clássica" do cinema, comparando Clara com a atriz Anna Magnani (italiana) dos anos 1960. 


Nesse sentido, o diretor vê Aquarius como "um filme clássico de herói" e usou como referências as produções italianas dos anos 1950 e 1960.  Temos aqui uma ideia muito bonita do filme de refletir que as nossas referências culturais, pensando o que o diretor disse na entrevista que deu na TV Brasil recentemente, dessa ideia de "envelhecer em torno da cultura" e de que a perspectiva nossa muda também com o tempo em relação aos valores culturais, eles não são absolutos, é como dizer que a arte acompanha a visão ideológica geral e que costuma a ser escondida ou ignorada por medo ou censura. Todo o filme tem uma direção de arte, produção, design de objetos geniais. Temos além dos discos marcantes de LP antigos, poster do filme Barry Lyndon na casa de Clara.  


A trilha sonora do filme também conta a história e vemos uma Clara nos anos 1970, com "cabelinho de Elis Regina (nessa fase interpretada por Bárbara Colen) na cena nos anos 1970, e que celebra o aniversário da tia no presente, com direito a proclamação dos feitos dela como uma das primeiras mulheres da família a cursar universidade e do orgulho matriarcal de todos com ela. Nessa época, Clara era crítica musical e abandonou a família por 2 anos mas depois voltou, como nos fala uma de suas filhas.


 Ainda que a trilha sonora não tenha sido lançada para compra em formato físico ou mesmo digital, a distribuidora Vitrine Filmes produziu cerca de 100 fitas cassetes com as canções do longa-metragem e as enviou para um público selecionado. As fitas vieram acompanhadas de uma carta escrita numa máquina de escrever, assinada pela personagem Clara. As músicas do filme:


1. "Another One Bites The Dust - Remastered 2011"  Queen 3:34

2. "Hoje"  Taiguara 3:05

3. "O Quintal do Vizinho"  Roberto Carlos 3:04

4. "Sentimental Demais"  Altemar Dutra 2:32

5. "Recife Minha Cidade"  Reginaldo Rossi 4:57

6. "Dois Navegantes"  Ave Sangria 4:16

7. "Toda Menina Baiana"  Gilberto Gil 3:45

8. "Pai e Mãe"  Gilberto Gil 3:52

9. "Canções de Cordialidade III - Feliz Natal"  Heitor Villa Lobos, Sonia Rubinsky 0:30

10. "Fat Bottomed Girls - Remastered 2011"  Queen 3:22

11. "Sufoco"  Alcione 3:59

12. "Nervos de Aço - Remaster 2012"  Paulinho da Viola



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