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Os Inconfidentes (1972): Herói ou contrabandista? Filme debate simbolismo de Tiradentes e os inconfidentes explorando paralelos com a ditadura militar



Um grupo de intelectuais, comerciantes e integrantes da elite brasileira se une para libertar o país da opressão portuguesa. Dos engajados no movimento, Tiradentes é o que está disposto a levar a revolução às últimas consequências. Dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, reflete as diversas narrativas e teses que envolvem a Inconfidência Mineira, movimento considerado um dos primeiros a pedir pela independência


Assista ao filme completo ao final desse filme


A inconfidência mineira sempre foi alvo de estudo histórico e de disputa de seu sentido e isso vai além de apenas Tiradentes. As teorias mais clássicas da historiografia, buscavam construir Tiradentes como um herói e a inconfidência como um processo de resistência contra o autoritarismo monárquico. Apesar dos contornos heroicos exacerbados que essa narrativa alcança, a versão (que me foi ensinada na graduação em História na UERJ) de que Tiradentes e os Inconfidentes eram meros contrabandistas, é uma farsa historiográfica mais vergonhosa ainda. Se o primeiro vendia um heroísmo a favor da República, a segunda versão vende o viralatismo antinacionalista típico dos estudos de História da época da ditadura militar. 


A verdade é que com a constante queda na receita institucional, devido ao declínio da atividade mineradora, a Coroa resolveu, em 1789, a aplicar o mecanismo da "Derrama" (que significa confisco e literalmente invasão da casa de pessoas para tomar seus bens), para garantir que as receitas oriundas do Quinto, imposto português que reservava um quinto (1/5) de todo minério extraído no Reino de Portugal e seus domínios. 


É claro que não estamos falando de "heróis bonzinhos", mas sim de uma elite do sistema escravocrata. Mas prática da escravidão essa que foi introduzido pela própria monarquia de Portugal, inicialmente com os índios, como esforço de colonizar o Brasil.  Assim, apesar de ser uma disputa do "sujo falando do mal lavado", apoiar o saque de uma monarquia que buscava se desvencilhar da missão de lidar com a escravidão no país, é no mínimo considerar o autoritarismo um método de política legitimo.


A partir da nomeação de Luís da Cunha Meneses como governador da capitania, em 1783, ocorreu a marginalização de parte da elite local em detrimento de seu grupo de amigos. O sentimento de revolta atingiu o máximo com a decretação da derrama, uma medida administrativa que permitia a cobrança forçada de impostos, mesmo que preciso fosse prender o cobrado, a ser executada pelo novo governador da Capitania, Luís Antônio Furtado de Mendonça, 6.º Visconde de Barbacena (futuro Conde de Barbacena), o que afetou especialmente as elites mineiras. 


Ameaçada de uma derrama violenta, os inconfidentes, entre eles, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, os poetas Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, marcaram um levante para a ocasião da derrama de 1789. Porém, antes que a conspiração se transformasse em revolução, em 15 de março de 1789 foi delatada aos portugueses por Joaquim Silvério dos Reis, coronel, Basílio de Brito Malheiro do Lago, tenente-coronel, e Inácio Correia de Pamplona, luso-açoriano, em troca do perdão de suas dívidas com a Real Fazenda.


É aqui que se posiciona o filme de Joaquim Pedro de Andrade, que talvez seja um dos melhores do cinema nacional, onde o diretor está consciente de todo esse debate envolvendo o heroísmo dos inconfidentes. 


Como um filme do cinema novo, há muito abstracionismo no filme que fica aberto para interpretações. A atuação de José Wilker inclusive está simplesmente incrível, expressando toda a dor das masmorras. Entretanto, por isso mesmo tentarei ser o mais breve e prático na análise.


O filme busca fazer um paralelo (um pouco anacrônico) entre os movimentos de resistência comunista, que por ter relação com as universidades sempre possuiu muitas pessoas das elites, e o movimento dos inconfidentes. Para corrigir o maniqueísmo que tal trama poderia ter, o filme coloca os inconfidentes como nossos protagonistas afetivos, com grandes atores de renome no elenco. O sistema monárquico é explorado como extremamente opressor e controlador, com práticas complexas de tortura, que o diretor obviamente buscou paralelo estético com a tortura da ditadura militar. 



Assim, temos uma elite liberal e que se vende como fabianista, contra um sistema hierarquizado, colonial, que emprega da tortura como método de coerção. O filme vagueia nesse debate, buscando explorar os pontos que são esquecidos pelo maniqueísmo da narrativa popularesca do herói, ao mesmo tempo que nega a teoria cordial de monarquia branda. 


Joaquim Pedro era um mineiro. Apesar de progressista, não podia ser chamado de comunista ou esquerdista. Assim, seu foco era mais retratar e questionar as dimensões e os exageros desse confronto, mas onde obviamente seu lado mineiro (estado que elegeu diversos presidentes da república), defende os inconfidentes pelo mito de nacionalismo que eles defendem. 


Para Joaquim Pedro não havia uma solução para o autoritarismo e para a ditadura, sem ser pela via democrática e nacionalista. Era preciso entender e questionar os mitos nacionais, assim como questionar a nossa necessidade de desmitificar histórias quando elas possuem identificação popular. 


Em termos de técnica, o diretor mistura isso com certo formalismo abstracionista que lembra bastante o de Glauber, mas em uma pegada menos política e mais psicologista, ao estilo dos cineastas russos do pós anos 60, como Sergei Bondarchuk. Isso faz com que mais que um filme panfletário, que perderia seu sentido com o fim da ditadura, é um filme profundamente histórico, que com a travessia e retomada democrática só ganhou mais sentido.


O filme é um perfeito elo e debate entre a fonte e o objeto histórico. Além de refletir internamente o contexto histórico do filme, reflete com genialidade as teses que envolvem e divergem sobre tal fenômeno histórico. Isso faz com que esse seja um dos melhores filmes históricos, não só nacionais, já feitos, pois reflete profundamente como a elaboração da história envolve uma construção de narrativas, elaborada em diversas fontes diferentes, como a oral, a visual, a oficial e a popular. 


É claro que está longe de ser perfeito ou o melhor filme de Joaquim Pedro, pois justamente pela complexidade e divergência de visões sobre o tema, pode acabar desagradando "gregos e troianos". Sua estética e narrativas são tristes e isso não é aleatório. um contraponto a outro filme do mesmo ano, Independência ou morte (1972, e que já foi analisado aqui no blog), que celebrava os 150 anos da independência do Brasil de forma heroica e ufanista. 


O problema é que, como analisamos em Independência ou Morte, o roteiro deste filme teve a participação de Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas) e estrelado por Tarcísio Meira. Assim, apesar de heroico e positivo, o filme é uma grande piada, uma caricatura, que busca exagerar para ridicularizar o mito da independência. Por sua vez, se os inconfidentes buscavam explorar as várias visões do debate, entregou um filme depressivo, derrotista, que estava certo ao pensar na longa durabilidade do regime militar, mas não dava potência a superar tal sistema.


É um filme incrível, um dos meus favoritos do cinema nacional de todos os tempos. Por seu caráter expositivo e explicativo, ficou esquecido, não sendo quase nunca lembrado, exibido em curadorias ou transmitido na televisão. Quem já viu, sabe o poder inesquecível desse filme. Quem nunca viu, esse é o momento perfeito.



História e produção do filme


Na vida real, após os eventos já mencionados, estavam presos todos os inconfidentes, onde aguardaram durante três anos pela finalização do processo. Alguns foram condenados à morte e outros ao degredo; algumas horas depois, por carta de clemência de D. Maria I, todas as sentenças foram alteradas para degredo, à exceção apenas para Tiradentes, que continuou condenado à pena capital, porém não por morte cruel como previam as Ordenações do Reino: Tiradentes foi enforcado.


Os réus foram sentenciados pelo crime de lesa-majestade, definida, pelas Ordenações Afonsinas e as Ordenações Filipinas, como traição contra o rei. Tiradentes foi o único conspirador punido com a morte por ser o inconfidente de posição social mais baixa, haja vista que todos os outros ou eram mais ricos, ou detinham patente militar superior.


E assim, numa manhã de sábado, 21 de abril de 1792, Tiradentes percorreu em procissão as ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no trajeto entre a cadeia pública e onde fora armado o patíbulo. O governo geral tratou de transformar aquela numa demonstração de força da coroa portuguesa, fazendo verdadeira encenação. A leitura da sentença estendeu-se por dezoito horas, após a qual houve discursos de aclamação à rainha, e o cortejo munido de verdadeira fanfarra e composta por toda a tropa local. Bóris Fausto aponta essa como uma das possíveis causas para a preservação da memória de Tiradentes, argumentando que todo esse espetáculo acabou por despertar a ira da população que presenciou o evento, quando a intenção era, ao contrário, intimidar a população para que não houvesse novas revoltas.


Executado e esquartejado, com seu sangue se lavrou a certidão de que estava cumprida a sentença, tendo sido declarados infames a sua memória e os seus descendentes. Sua cabeça foi erguida em um poste em Vila Rica, tendo sido rapidamente cooptada e nunca mais localizada; os demais restos mortais foram distribuídos ao longo do Caminho Novo: Santana de Cebolas (atual Inconfidência, distrito de Paraíba do Sul), Varginha do Lourenço, Barbacena e Queluz (antiga Carijós, atual Conselheiro Lafaiete), lugares onde fizera seus discursos revolucionários. Arrasaram a casa em que morava, jogando-se sal ao terreno para que nada lá germinasse.



O filme é um contraponto a outro filme do mesmo ano, Independência ou morte, que celebrava os 150 anos da independência do Brasil de forma heróica e ufanista. Os inconfidentes, ao contrário, mostrando a mão de ferro da Coroa portuguesa, é uma metáfora do regime autoritário da ditadura militar. Os roteiristas construíram diálogos que se inseriam no contexto da falta de liberdade do período militar. Para que o filme não fosse proibido, o diretor concordou em inserir propaganda pró-governo, e o que ficou foi um apêndice sarcástico e irônico (ao fundo, Aquarela do Brasil, de Ari Barroso), com o qual conseguiu exibir o filme. Fernando Torres voltou a repetir o papel do poeta Cláudio Manuel da Costa, que já vivera na telenovela Dez vidas, na TV Excelsior. 


Os inconfidentes foi filmado em Ouro Preto, Minas Gerais. O filme é baseado no livro Autos da devassa, compilação dos documentos levantados nos processos contra os inconfidentes, e em O romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Além de Aquarela do Brasil, o filme apresenta a canção Farolito, de Agustín Lara, com João Gilberto. Para saber mais sobre a Devassa, consultem o livro A Devassa da Devassa, de Kenneth Maxwell.


Assista ao filme aqui: 




Comentários

  1. Tem um outro filme sobre Tiradentes, que assisti esses dias. "O Mártir da Independência, Tiradentes" (1977). Talvez seja o contraponto desse. Já de 98 tem "Tiradentes, o filme", estrelado por Humberto Martins, e também disponível no youtube. É biografia, mas assim como o analisado acima peca nas declamações, o que faz o grande público perder o interesse.

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