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Polite Society (2023): Filme questiona a estrutura de castas e os casamentos arranjados, refletindo a própria linguagem do cinema

 


"Polite Society" (Sociedade Educada), é um filme britânico de ação, comédia e drama de 2023, escrito e dirigido por Nida Manzoor (uma mulher paquistanesa-britânica). O filme é estrelado por Priya Kansara, Ritu Arya, Nimra Bucha, Akshay Khanna, Seraphina Beh, Ella Bruccoleri, Shona Babayemi, Shobu Kapoor e Jeff Mirza. "Polite Society" teve sua estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance de 2023 em 21 de janeiro de 2023 e foi lançado no Reino Unido e nos Estados Unidos em 28 de abril de 2023 pela Focus Features. O filme recebeu críticas favoráveis da crítica. Em Londres, a adolescente britânica-paquistanesa Ria Khan quer se tornar uma dublê de cinema como seu ídolo, Eunice Huthart. Sob um alter-ego, "The Fury", Ria cria filmes de treinamento em artes marciais com a ajuda de sua irmã mais velha Lena, que abandonou a escola de arte e voltou a morar com seus pais amorosos, mas tradicionais, Fatima e Rafe, ambos deles desencorajando os sonhos das irmãs, então Ria planeja o sequestro da irmã no dia do seu casamento. 


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Quando você acha que o cinema morreu, nascem essas pérolas, podemos começar admirando o trabalho fora da caixa e inovador desse filme, sim, um filme de mulher e um dos melhores filmes de lançamento atuais! Já que o filme não pede nenhuma licença. Ria e suas três amigas incansáveis contra o patriarcado e o determinismo biológico. Para as jovens meninas, casamento seria o fim de todas as suas liberdades, por isso elas tentam de tudo para atrapalhar o casamento da irmã. 


O apelido de Ria "The Fury" pode ser uma referência as subculturas antropomórficas que agregam personalidade de animais aos seres humanos. Ainda não tem um título para a divulgação em português, mas a tradução literal do título faz você pensar: "Sociedade educada", sociedade educada é para a autora então, a sociedade que força relações sociais e até mesmo casamentos. E tudo tem a ver com educação, quando na falta dela, somos taxados e podemos até mesmo ser presos e internados, por exemplo. Esse é o "poder da educação", mais um poder de coordenação de falas e gestos permitidos para um fim.  


Tanto que Ria e suas colegas de turma que não se davam bem se unem contra a tradição ao decorrer do filme, pela elite paquistanesa-britânica tem a oportunidade de pensar de maneira moderna, de ter acesso a educação de ponta, porque as elites buscam a melhor educação para os filhos, por isso ela frequentava as melhores escolas onde teve acesso ao pensamento liberal, mas o questionamento do filme é, até que ponto esse acesso é real ou apenas um teatrinho das sombras das elites que buscam se modernizar porque modernizar é sinal de riqueza. Ou outros palavras, é melhor fazer a revolução antes que outros o façam. 



Manzoor cresceu em uma família muçulmana paquistanesa. Sua família morou em Cingapura até os 10 anos, depois se mudou para Londres. Manzoor frequentou a St James School. Ela foi criada em uma família musical e seu pai comprou seu primeiro violão quando tinha 8 anos. Manzoor descreveu a música como sua 'primeira paixão' e é citada como tendo dito "Eu queria ser uma garota morena Bob Dylan antes de querer escrever roteiros."  


Ela também começou a escrever muito jovem. Manzoor descreve ter sido incentivada por seu avô, que guardava tudo o que ela escrevia em um arquivo. As influências da infância de Manzoor incluíram filmes de Jackie Chan, os irmãos Coen, Edgar Wright e o antigo cinema de Hollywood. Se formou na University College London (UCL) em Política em 2011. Enquanto estava na universidade, Manzoor esteve envolvido na Film Society da UCL. A família de Manzoor esperava que ela fizesse um curso de conversão em Direito e se tornasse uma advogada de direitos humanos, mas ela os convenceu a permitir que ela seguisse a carreira de cineasta.


Com posters de filmes de ação e artes marciais, que já fizemos aqui como,  "O Dragão Chinês", ou de filmes feministas, como O Tigre e o Dragão e outras referências ao cinema clássico, dá para sentir também uma pegada de Tarantino em seus filmes pelo viés da ação.  Vemos como Ria é gente como a gente, e sonha com um mundo moderna, que contraditoriamente ela pode sonhar por ser membro de um tipo de elite que tem acesso a moderna educação liberal católica britânica, os pais das meninas "deixaram" elas estudaram em um curso bem ocidental de artes por um simples motivo, os pais podem fingir ser liberais, se os filhos fingirem que não objetivos na vida. A desistência dos ideais aqui é o faz a irmã mais velha ceder a tradição, em um esquema cínico. 


Ninguém obriga a irmã a namorar Salim, ocorre organicamente depois de uma festa onde as convidadas já eram as "possíveis esposas", mas toda a estrutura que leva ao namoro, seleção, candidato e vaga disponível para reserva, deixa Ria pensando que o determinismo biológico de sua cultura torna tudo que viveu de moderno na Inglaterra inútil, já que as paredes do tradicionalismo de qualquer cultura pode se acomodar ao mundo moderno, ser moldado por ele e até participar disso ativamente. 



Explicando o motivo dos pais das garotas não ligarem aparentemente para a faculdade que as meninas escolheriam. Também na cultura ocidental, as primeiras mulheres que passaram para a faculdade no início do século XX utilizavam isso de ter passado para se "casar melhor", Esse é exatamente o caso do filme, onde fazer artes foi a desculpa perfeita para o vício ao estilo "fases da vida". E mais uma vez a educação molda a atitude do homem ao ponto de mudar toda sua vida. 


Por isso que Ria quer que sua irmã "seja uma artista" por ela ver nas profissões liberais o truque para fugir do tradicionalismo; no filme ela tem uma dublê referência que ela manda mensagens e que nunca responde para ela, mas como ela é fã dela, ela continua teclando sozinha enquanto faz suas rotinas de dublê. 


Os estudos de comportamento que foram uma febre da psicologia moderna, chegavam a alguns conclusões sobre performance teórica, essa defesa de que mulheres seriam "mais educadas" que os homens, isso já é uma teoria dentro de uma visão estereotipa de que a linguagem feminina deveria se produzir para conversar em um formato de docicalização,. Ou seja, homens são produzidos para ter uma fala dirigente, grossa, como normal em suas interações em sociedade, já as mulheres são educadas para "já aceitar" a submissão no nível da linguagem de maneira coordenada com a grosseria masculina. Ou seja, é uma formulação compensatória. 



O modelo de comportamento de nomes como Brown e Levinson que desenvolveram seu "modelo de educação" que teoriza sobre existem certos atos serem intrinsicamente  considerados como educados ou não. Por isso não é a toa que a diretora é formada em nada mais nada menos do que o curso de Política, cursado em Londres, por isso que o filme é dinâmico e inteligente e vibrante, a antítese do cinema podre e não artístico de Hollywood atual. 


A diretora Nida Manzoor é uma diretora paquistanesa e inglesa, que é mulçumana e feminista, e tinha inclusive uma série chamadas "We Are Lady Part's" (Partes femininas), sobre uma banda de rock de mulheres mulçumanas. A diretora tem uma visão de cenas de ação incríveis, ângulos e técnicas muito inovadoras.   Nida ainda ganhou por isso o prêmio Rose d'Or Emerging Talent Award de 2021, além de ter dirigido dois episódios da série clássica britânica Doctor Who.



Em termos de debate feminista, as teorias que acabam na área de sociologia, psicologia ou comportamentalismo em geral, falam pouco ao que vieram sobre a real psique da sociedade moderna. Lendo os comportamentalistas americanos do século passado as definições universais (imperativos categóricos) dados em termos de estudo de gênero foram descontinuados por nomes como Foucault e Butler, e depois uma nova geração quis indagar sobre o senso comum da psicologia comportamental americana e suas definições "universais".


Esse tipo de teoria engloba ordenações coordenados, de ordem de fala e discurso também obedece um recorte racial e de classe. Os homens "naturalmente mal educados" são os homens de classe média, brancos, e as mulheres são as mulheres brancas e de classe média, que são moldadas a ter uma certa educação de "modos" coercitiva, onde esse comportamento padrão passa a ser cobrado como um imperativo categórico (nas palavras de Kant), como algo esperado para todos os seres humanos, mesmo aqueles que não estão na mesma classe social e racial dessa "educação" específica. 


E qual a importância disso? A ideia de que o "educado" é aquele que obedece implicitamente ao discurso social padrão e que coordena e dirige sua fala em direção única, onde a única possibilidade para ser você mesmo é não ser educado. Digo, essa "educação" de modos e costumes, a chamada "pequena ética", a etiqueta, que nada tem a cultura com conhecimento real ou prático ou mesmo com algum conteúdo, essas normas são ordenamentos, obedecemos na vida cotidiana. 


No caso da moça do filme, obedecer as regras de casamento combinado comuns em muitas elites do mundo, inclusive nas orientais (afinal, se você tem muito dinheiro, você pode manter o conservadorismo dos avôs junto com possuir Iphone, não tem nenhuma diferença). Mas a irmã que quer ser dublê sabe disso e admira sua irmã mais velha por saber que ela poderia ser uma artista (alguém liberal e livre na metáfora), mas que se vê no meio de ser "escolhida" como a melhor reprodutora para um casamento arranjado. 


Como a Inglaterra dominou ambas as regiões da Índia e do Paquistão, eles tem uma língua franca em comum. Muitos mulçumanos vieram da Índia para o Paquistão, e os hindus que eram da terra originária dos Paquistaneses, vieram para ocupar a Índia, foi uma forma de troca cultural e difusão que gerou a tradição do sistema de castas e casamentos arranjados.  Em termos de genética, para exemplificar a diferença entre Índia e Paquistão, os Paquistaneses são descendentes dos Australo-melanésios que são caucasianos, enquanto os indianos são os Australo-melanésios com ancestrais caucasianos. Isso quer dizer o que é contato é do Paquistão em conjunto com a Índia como uma só nação, um estado inventado, significa "terra pura". Esse sentimento em conjunto durou até 1947 com a independência da Índia.


Aqui há uma ironia pesada, onde todo mundo quer ter um conto de fadas (na fantasia), mas não quer lidar com a realidade cínica e não romântica do casamento tradicional entre duas pessoas da mesma classe social, ou seja é um automático anticlímax e com o tempo a paranoia da irmã feminista e considerada "maluquinha"  é confirmada, quando ela invade o laboratório do noivo da irmã (cujo estudo é genética, como da empresa da família), e descobre que eles fizeram exames para garantir a fertilidade de sua irmã para perpetuação do clã rico ao qual ela estava se unindo.  


A ideia de "vou recusa e ser grosso", como na música de rap parece apenas uma atitude intempestiva, porém contém uma verdade, a chamada "educação" pode ser manipulativa, vários racistas podem usar do argumento da "educação" para ser mais racistas ainda, por exemplo. Ou seja, "educação de modos" pode ser apenas uma forma de manipulação de comportamento que busca induzir aceitação através de argumentos psicologistas que buscam esvaziar o debate dos elementos estruturais da sociedade. Sendo uma forma de coordenar as falas para outros indivíduos. Quis falar um pouco dessas teorias por ter lido um livro sobre feminismo que parece inspirar uma parte conceitual importante desse filme. 


Na escola, Ria é inseparável de suas amigas Clara e Alba, mas a professora reprovadora a incentiva a seguir uma carreira mais "séria". Os e-mails de Ria para Eunice sobre uma possível orientação ficam sem resposta, e ela é derrotada pelo valentão da escola Kovacs. A família Khan é convidada para um sarau no Eid Mubarak por Raheela, a líder do círculo social de mães paquistanesas de Fátima, em sua luxuosa mansão. Ria percebe que a festa foi arranjada para encontrar um par adequado para o filho de Raheela, Salim, um geneticista de sucesso, mas não consegue impedir Lena de concordar com um encontro.


Para horror de Ria, Lena fica encantada com Salim e, após algumas semanas turbulentas de namoro, concorda em se casar com ele e se mudar para Cingapura. Apesar do apoio dos pais, a recusa de Ria em aceitar as escolhas de Lena, incluindo o abandono de sua carreira artística, separa as irmãs. Convencida de que deve haver uma explicação mais sinistra, Ria pede a ajuda de Clara e Alba para espionar Salim. Eles tramam um plano elaborado para roubar seu laptop, e Ria o distrai enquanto seus amigos invadem seu computador, mas não encontram nada incriminador. Em desacordo com a irmã e ignorada pelos amigos, Ria desiste das artes marciais. 


Ela visita Raheela para se desculpar e é arrastada para participar de seu dia no spa, onde Raheela revela suas verdadeiras cores e tortura Ria com cera. Lutando contra a equipe de Raheela, Ria tropeça no laboratório secreto da mansão e descobre que todas as mulheres elegíveis na festa do Eid foram escaneadas e testadas secretamente, e Lena foi selecionada por sua fertilidade. O filme mexe tanto com sua concepção normativa, que faz em certo momento a própria família da protagonista querer internar ela, aqui é quando o filme deixa de ser cômico e somos lembrados o tempo todo que se sairmos muito da linha normativa, logo tem "gente pra corrigir". O detalhe da sogra de Lena é incrível, já que a mulher é muito má, chega a dar medo real.



Fugindo de volta para casa, Ria percebe que não pode convencer sua família da verdade. Ela conta a Clara e Alba, e juntas traçam um plano, persuadindo Kovacs a levá-los ao casamento para resgatar Lena. Ria distrai os convidados com uma dança enquanto Clara e Alba, disfarçadas de garçons, passam furtivamente pelo guarda armado na porta de Lena. No fim, Ria recebe um e-mail de Eunice, sua dublê favorita e as irmãs comemoram comendo fast-food enquanto fogem da tradição. Sim, um dos filmes mais emocionantes, reais, cômicos e perfeitos que eu vi nos últimos tempos. Um filme para questionar, uma sátira política moderna que nos dá potência ao falar sobre o poder dos sonhos e da própria vontade. 



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