À Espera de um Milagre (1999): O racismo e o espetáculo da pena de morte como falências da justiça dos Estados Unidos
Baseado no romance de Stephen King, o filme foi dirigido por Frank Darabont (Um Sonho de Liberdade e da série The Walking Dead). Se passando em 1935, em uma prisão do sul dos Estados Unidos, mais precisamente no corredor da morte — a chamada “Green Mile” (Milha Verde), nome dado ao piso esverdeado que leva até a cadeira elétrica. O protagonista é Paul Edgecomb (Tom Hanks), chefe dos guardas, que narra em flashback os acontecimentos marcantes de sua vida no presídio
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O ponto de virada ocorre com a chegada de John Coffey (Michael Clarke Duncan), um homem negro, gigantesco e aparentemente ameaçador, acusado de ter assassinado duas meninas. Logo, no entanto, fica evidente que sua natureza é oposta ao crime: John é ingênuo, infantil, profundamente bondoso e, acima de tudo, possui um dom sobrenatural de cura.
Notem os detalhes: as iniciais “J.C.”, dons taumatúrgicos, a absorção do mal alheio e a decisão de “ser levado” pelo sistema que o condena: O protagonista parece ser uma reencarnação de Jesus. Ao racializar essa figura, o filme se aproxima de uma linha de reflexão teológica negra (James H. Cone) que vê na história dos linchamentos e das execuções de inocentes negros um espelho da crucifixão a vítima inocente como imagem do Cristo na América.
Essa chave não precisa ser “intenção oficial” para ser produtiva: ela ilumina a colisão entre milagre e estrutura racista que a história dramatiza. Como não li esse livro do Stephen King ainda, não sei dizer se esse elemento é do filme ou do livro.
Isso nos leva a questão do "Cristo negro". Essa teoria é simples, seria uma releitura da imagem de cristo como sendo alguém negro, já que viria do território da África/Oriente médio. O filme não é o primeiro a propor isso, já que existem também figuras como o Cristo Negro de Portobelo, Panamá, ou o de Esquipulas, Guatemala; ou a pintura de Harmonia Rosales, que usa a figura de um Jesus negro para refletir sobre raça, cultura e representação religiosa, muitas vezes contestando a imagem branca eurocêntrica tradicional e disseminada de Jesus. Também pode ser um título de obras artísticas, eventos culturais e espetáculos, como a peça "Paixão do Cristo Negro" no Brasil. Lembrando que o filme brasileiro O Auto da Compadecida (2000) também trazia um Jesus negro e saiu apenas um ano depois, sendo uma ideia popular na época e já bastante disseminada e aceita.
O filme encena, então, uma execução que é espetáculo — com plateia, protocolo, liturgia — e trauma.
O filme se passa em 1935; no livro, a história principal ocorre em 1932, e é contada em memórias escritas por um Paul idoso, diferença que a adaptação simplifica ao transformá-la num relato oral ao fim.
O filme levanta questões morais cruciais, como justiça e preconceito. John é condenado não por provas irrefutáveis, mas porque sua aparência e cor de pele encaixavam-se no estereótipo do culpado na sociedade racista da época.
O peso da pena de morte – o trabalho dos guardas no corredor da morte não é retratado de forma fria: Paul e seus colegas enfrentam a carga emocional de levar homens à morte, questionando se a lei sempre é justa ou apenas cumpre seu papel burocrático.
O sagrado e o profano John Coffey surge como uma figura messiânica, capaz de absorver o sofrimento alheio e curar doenças, simbolizando o bem absoluto em contraste com a brutalidade humana. Sua execução, mesmo após inocentar-se por meio de seus dons, é usada para criticar o sistema de justiça dos Estados Unidos, onde King está comparando a justiça de seu país com a justiça romana que condenou Jesus. Tudo aquilo que é mal compreendido, confuso, é visto como um perigo. Não atoa os Estados Unidos tem tanto estranhamento com culturas da América Latina, como do Brasil: é cultural.
A narrativa alterna o realismo cru e burocrático do ritual da morte com aparições do fantástico: Coffey tem poderes de cura. Ele cura a infecção de Paul, ressuscita o rato de estimação de outro preso: Delacroix, que parece ser referência a Eugène Delacroix, pintor francês que pintou o famoso quadro da revolução francesa, já que na revolução francesa, apesar dos belos quadros, a pena de morte era utilizada via guilhotina.
Ele também drena o tumor da esposa do diretor do presídio. Aqui é meio engraçado, pois na cena onde John vai curar a mulher, ela reage a sua presença proferindo todo tipo de racismo possível, algo que fica justificado pelo fato de ela ter um câncer no cérebro, e o a dor faz com que ela fique com raiva, gritando e ofendendo o tempo todo. Mas aqui o fato de ser justamente as palavras de cunho racista que ela usa na cena nos fazendo pensar que ao falar se referir a doença esse seria seu câncer: ser racista.
Assim, o diretor do presídio, por mais que quisesse ser um cara legal, ele convivia com aquela rotina de ofensas e racismo, e na cadeia executa em sua maioria pessoas negras e etnicamente doente. Ou seja, ele sabe mais do que ninguém que aquela estrutura está doente e viciada. Não atoa, todos os guardas estavam em crise também e Paul também ja estava "doente". E aí vêm uma das cenas mais ambíguas do filme, pois John cura a mulher através de um beijo, na cama dela, na frente do marido, que já nem liga mais pois está sem potência perante a situação. E essa cena ela é estranha pelo fato de ser profundamente íntima porém extremamente assexual. Como se sentíssemos: tem um erro aqui.
Quando Paul descobre (tarde) que o verdadeiro assassino das meninas era “Wild Bill” Wharton, temos um flashback que revela a verdade para o público e para Paul. Mas Coffey já decidiu aceitar a execução: está cansado de “sentir a dor do mundo”. E esse era o erro que eu estava falando, pois desde que John aceitou curar a mulher racista do diretor de uma instituição racista, ele passou a já não se sentir mais tão bem. A sua ideia pessoal de bondade estava entrando em confronto com a ideia do que é ser "bom" em sentido ético.
Ele queria ajudar aquelas pessoas, mas me pareceu estranho o fato de nem John aparentar usar os seus poderes antes da prisão, e o fato da indiferença do processo. Apesar dos guardas serem amigos dele no final, eles continuam a rotina de maneira obrigatória, como se as práticas fossem tão rotineiras e burocráticas que fossem exteriores a eles. Eles veem a injustiça acontecendo o tempo todo e não fazem nada. E esse e o caráter mais "filme de terror" de Espera de Um Milagre.
A alegoria não paira no vazio. Fora a absurda aplicação da lei Magnitsky com o Ministro do Supremo do Brasil, Alexandre de Moraes, o sistema de justiça dos Estados Unidos, além de preservar a cultura da pena de morte, tem se mostrado cada vez mais conservador, com a Suprema corte americana dando ampla margem para decisões republicanas e de Donald Trump.
Dados recentes mostram que o sistema de pena de morte nos EUA segue marcado por erro, sofrimento administrado e desigualdade racial. De 1973 à 2025, ao menos 201 pessoas foram condenadas à morte por engano. Em um estudo realizado em 2014, estimou-se que mais de 4% dos condenados. Relatórios apontam que muito mais pessoas negras são condenadas a morte do que pessoas brancas.
Em janeiro de 2024, o Alabama fez a primeira execução por “hipóxia de nitrogênio” em Kenneth Smith (após uma tentativa falha por injeção letal em 2022). Observadores relataram convulsões e respiração ofegante por minutos; o Alto Comissariado da ONU pediu que se abandonasse o método por possível violação à proibição de tortura.
A cena do filme em que a esponja é mal usada ecoa a história americana: estudos mostram execuções “malogradas” recorrentes; na cadeira elétrica, por exemplo, o caso de Jesse Tafero (1990) ficou famoso quando chamas saíram de sua cabeça por uso inadequado de esponja, caso em que o filme provavelmente estava se inspirando.
Apesar de abolir-se em vários estados, 27 estados ainda mantêm a pena capital em seus códigos (alguns sob moratórias). Em outras palavras: À Espera de um Milagre dramatiza nos anos 1930 um impasse que permanece atual.
As cenas principais são carregadas de emoção: a cura da infecção de Paul, o milagre com o ratinho Mr. Jingles, o “castigo” dado ao guarda cruel Percy, e a própria execução de John, um dos momentos mais dolorosos do cinema contemporâneo, pois ali o público já sabe que um inocente (e mais do que isso, um ser quase divino) será morto em nome da lei.
No final, ainda temos a questão do protagonista, Paul. Ele está narrando toda a história para sua colega do que aparenta ser um asilo para velhinhos. Ou seja, ele agora é um dos presos, onde essa metáfora de institucionalização se repete de propósito na trama. Aí, descobrimos que Paul está vivo a mais tempo do que deveria pois ao ser curado por John, supostamente ele passou parte de seu poder para ele. Notem o detalhe: seu nome é Paul, assim como o apóstolo Paulo e como ele ele passou toda a sua vida em prisões.
Por último ele revela que Mr. Jingles ainda estava vivo também, algo que busca dar um tom leve aquilo tudo no final, mas é o elemento que nós dá a dúvida se aquilo que John fez foi uma dádiva ou um castigo. Ele o deu o mesmo destino que um rato, e fez ele ver todos que gostava morrer antes que ele, para ele pagar por ter permitido que tal injustiça tenha sido feita com tanta indiferença. Algo que pode servir para pensar o próprio Estados Unidos: um país que está envelhecido, doente e fadado a viver para ver sua derrocada.
No Brasil, pelo menos tentamos fazer a justiça. Não há pena de morte e quem atenta contra a democracia é punido. Já nos Estados Unidos existe pena de morte, mas Trump não foi punido pela invasão do capitólio que incentivou em discurso.
Estética, direção e feitos técnicos
Frank Darabont, já experiente na adaptação de Stephen King (após Um Sonho de Liberdade), conduz a narrativa com ritmo lento e contemplativo, permitindo que o espectador crie empatia pelos personagens.
O filme simplifica subtramas periféricas e atenua algumas crueldades do texto de King. King é mais ácido com a burocracia penal; Darabont abraça uma fábula moral mais luminosa, que aposta na empatia.
Visualmente, o filme trabalha cores quentes e ambientes claustrofóbicos, contrastando o espaço sombrio da prisão com a luz que acompanha John Coffey sempre que realiza seus milagres. Esse contraste reforça a metáfora entre a podridão humana e a possibilidade de transcendência.
A direção de fotografia valoriza planos longos e íntimos, muitas vezes focando em expressões faciais que transmitem dor, compaixão e injustiça. O uso de efeitos visuais para os poderes de Coffey, embora simples para os padrões atuais, ainda é eficiente e simbólico, evitando exageros e mantendo a atmosfera realista.
A atuação é outro pilar: Tom Hanks entrega um personagem humano e compassivo, enquanto Michael Clarke Duncan, em um de seus papéis mais marcantes, equilibra fragilidade e força de forma comovente.
É longo e melodramático, mas raros filmes mainstream encenam com tanta clareza a ligação entre técnica, rito e violência de Estado. Como peça de cinema popular pensante, continua exemplar.
Envelhecimento e relevância hoje
Mais de 20 anos depois, À Espera de um Milagre continua sendo um clássico moderno. Seu ritmo lento pode não agradar a todos os públicos atuais, mas sua mensagem permanece atual e necessária. A crítica ao racismo estrutural, à pena de morte e à incapacidade humana de reconhecer o verdadeiro “milagre” está longe de perder relevância.
É um filme que envelheceu bem, tanto técnica quanto narrativamente, porque aposta no humano, na emoção e nos dilemas morais universais. É longo (mais de 3 horas), mas cada minuto contribui para o impacto final. Vale muito a pena assistir — não só como entretenimento, mas como reflexão.
Curiosidades dos bastidores
O papel de John Coffey foi oferecido a outros atores, mas Michael Clarke Duncan conquistou a vaga graças à indicação de Bruce Willis, que havia trabalhado com ele em Armageddon.
Duncan foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por sua atuação.
Stephen King declarou que a adaptação de Darabont foi extremamente fiel ao espírito do livro, uma das suas favoritas.
O filme recebeu quatro indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme.
O ratinho Mr. Jingles foi interpretado por mais de 15 ratos diferentes, treinados especialmente para cada tipo de cena.
O título original, The Green Mile, refere-se ao corredor da morte, cujo piso era pintado de verde, mas em português foi adaptado para um tom mais religioso e esperançoso: À Espera de um Milagre.
Frank Darabont e Stephen King formaram uma parceria rara em Hollywood, já que King cedeu os direitos por apenas 1 dólar (prática comum dele quando acreditava no diretor).
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