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Valentes (Bruiser, 2022): Uma crítica à educação patriarcal que faz um retrato da masculinidade tóxica e suas consequências




A trama acompanha Darious, um adolescente de 14 anos, um garoto negro o qual seus pais enviaram para uma escola particular cheia de crianças relativamente privilegiadas. Seus colegas de classe estão ansiosos pelas férias de verão, enquanto Darious deve retornar à modesta realidade de sua vida, onde ele não pode pagar uma nova bicicleta e tem interações tumultuadas com Malcolm, seu padrasto rigoroso. Isso até ele conhecer Porter, um nômade carismático, que se revela ser seu verdadeiro pai


Disponível no Star+, clique aqui para conferir

Crítica do filme


Na leva dos filmes que saem em proximidade com o Oscar há sempre algumas pérolas para apreciarmos. Isso por serem considerados pelos estúdios de cinema filmes pouco competitivos. Mas, hoje em dia onde todos, principalmente no cinema mainstream, ninguém parece saber o que está fazendo, e vários filmes que saem no início do ano são muito bons, apenas em tramas simples e com pouco orçamento.



Valentes se encaixa perfeitamente nesse caso. O filme é uma joia rara perdida entre catálogos e que eu mesmo só me interessei pela pouca oferta de filmes no início do ano. E o filme é simplesmente um soco no estômago, necessário e inesquecível.


O filme não possui muita gente famosa, a não ser o talentoso Jalyn Hall (que interpretou Emmett Till em “Till” no ano passado), e a produção do filme, que é de Aaron Ryder, produtor de Amnésia (Memento, 2000) e Donnie Darko.


Inicialmente o filme já é interessante, pelo fato que se discute como a meritocracia não e uma solução para pessoas excluídas. Não basta apenas se aplicar, estudar mais, na melhor escola, se o mundo ao redor é preconceituoso. É claro que isso ajuda, mas ao mesmo tempo vemos como o modelo do cidadão modelo, é questionado na figura do padrasto de Darious. Ele é um homem negro empregado, que trabalha como vendedor de carros, e aparentemente bem sucedido, buscando ensinar a meritocracia para Darious. Supostamente foi por isso que ele colocou Darious na escola melhor, mas Darious desconfia que foi para o manter distante. 



Essa falta de familiaridade e sentimento de pertencimento, faz com que os outros garotos façam bullying com Darious e ele não sabe como reagir. É assim que o filme nos chega na sua primeira surpresa. Darious conhece um cara aleatório que mora na beira do rio. Em uma referência que parece brincar um pouco com com Karatê Kid, o homem ensina para ele alguns movimentos de luta para se proteger, mas é praticamente uma cena, apenas para brincar com o gênero de "coming to age", muito comum em gênero de luta. 


Assim, o rapaz começa a desenvolver um forte vínculo e amizade com o homem que é a antítese de seu padrasto. Por certos momentos, o homem parece até mesmo um tropo de Darious, ou seja, aquilo que ele pode se tornar no futuro.



O problema talvez venha no fato de que nada é por acaso no filme, e o cara que mora no rio é apenas o pai biológico de Darious! Apesar dessa conveniência estranha do filme, a surpresa e as consequências que essa reviravolta trarão são o que fazem o filme valer.


Ao saber da volta do pai biológico, o padrasto começa uma competição pela atenção e afeto de Darious, que entende o seu objetivo e fica ainda mais distante dele e próximo a seu pai. 



Isso trás o ódio do padrasto, que por ter o perfil de alguém bem sucedido, mobiliza até mesmo as forças policiais da cidade contra o pai de Darious. Esse ponto faz com que fiquemos de cara do lado do pai de Darious, pois ele sofre muitas injustiças no processo de apenas querer ficar perto do filho. O padrasto é marcado por uma meritocracia obviamente influenciada pela ética protestante, uma vez que eles fazem Darious ir a igreja, o que ele obviamente não gosta. 



Só que, aos poucos, o seu próprio pai biológico vai se provando um cara mais obscuro do que inicialmente mostrado. O sistema dos Estados Unidos de carreiras, educação e trabalho são muito injustos, e na medida que sempre foi injusto o tratamento que a mãe e o padrasto de Darious o deram, nunca vamos saber o quando ele realmente era bom ou mau. Mas a questão é que ele é o pai de verdade e a opção deve ser de Darious. Porém, aos poucos e por causa dos traumas da vida, o pai de Darious vai se tornando um derrotista, sendo exatamente aquilo que dizem de negativo sobre ele. Ele não tem compromisso e esse negativismo não é uma boa mensagem para um jovem. 


O pai diz para ele que nada importa, o padrasto que cada aspecto da vida está cheio de meritocracia e Darious não sabe o que ser. Aqui obviamente o filme está tentando refletir qual o papel que sobra para o homem negro e para as pessoas mais pobres na sociedade. Não há uma opção do meio, seja na vida real ou nas narrativas. Deve se ser sempre um perfeito certinho, mandado do patrão, ou um completo rebelde sem destino, pois quando se tenta conciliar parece que está se sendo iludido e irritando os dois lados. Isso vale para o mundo social e para o mundo político. Atualmente, o mundo exige posições extremadas e duras para sustentar a normalidade, o que é loucura. 


Assim, mais do que uma disputa pela atenção de Darious, temos o confronto dos modelos e possíveis futuros do Darious. De um lado, o modelo certinho, que o que sua mãe quer para ele. Do outro lado, o julgamento negativo que se cai sobre ele, é o espectro do pai e o medo de "seguir-se o mesmo caminho". Mais do que um coming to age qualquer, é um filme profundamente sociológico que reflete como a falta de destino e visão social da mundo faz com que as pessoas sejam julgadas apenas pela imagem que podem ter e as coisas que podem comprar.



Jalyn Hall transmite com naturalidade as emoções conflitantes de seu personagem. A questão de oportunidade e questão profissional no filme é um dos aspectos mais relevantes da trama. Darious tem dificuldade em se encaixar em uma escola que não valoriza sua cultura e sua personalidade, e que o trata como um estranho. O filme também mostra como seu padrasto que quer que ele siga uma carreira tradicional e lucrativa, como advogado ou médico, sem levar em conta seus interesses e suas habilidades. 


O filme revela como Darious se sente frustrado e sem perspectiva de futuro, pois não tem acesso às mesmas oportunidades que seus colegas brancos e ricos. O filme denuncia como a falta de oportunidade e de orientação profissional pode levar os jovens negros a se desviarem do caminho da educação e da cidadania, e a se tornarem vítimas ou autores de atos ilícitos.


O filme dialoga bem com a questão da teoria do racismo estrutural, que afirma que o racismo é um sistema de opressão que se manifesta em todas as esferas da sociedade, como na política, na economia, na cultura e na educação. O filme mostra como Darious é afetado pelo racismo estrutural em sua escola, em seu trabalho, em sua família e em sua comunidade. Um livro que aborda essa teoria bem e possui paralelos com o filme é “Racismo Estrutural”, de Silvio Almeida.


Acho que o filme tem paridade com a teoria da interseccionalidade, que afirma que as formas de opressão não são isoladas, mas se cruzam e se potencializam. O filme mostra como Darious sofre não apenas pelo racismo, mas também pela pobreza, pela violência e pela falta de oportunidades. Um livro que aborda essa teoria é “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis.


O filme também tem paridade com a teoria da resistência cultural, que afirma que os grupos oprimidos usam a cultura como forma de resistir e de se afirmar diante do poder dominante. O filme mostra como Darious usa a música e a cultura pop como forma de expressar sua voz e sua identidade. Um livro que aborda essa teoria é “Rastros de Resistência: Histórias Negras Que Não Aprendemos na Escola”, de Ale Santos.


A crítica que pode ser feita de fato, é que o filme pareceu não saber onde terminar sua peça. Sem estragar, eles parecem compreensivelmente hesitantes em tomar o lado de alguém além de Darious, mostrando no final uma disposição maior do pai e do padrasto em se enfrentarem mais do que cuidar de Darious. Mas o filme é verdadeiro e evita clichês.


Outro problema é pouca participação da mãe na trama. É óbvio que ela é importante como o que "não é", ou seja, aquilo que não é mostrado e logo fica óbvio. Mas deveria se desenvolver melhor a personagem da mãe para fazer mais sentido, para além dela ensinar ele a dirigir. Assim, fica parecendo que tudo que ela ensinou para ele foi a "fuga", algo meio apologético da indústria automotiva, não?! Algo no filme lembra Moonlight, só que melhorado, sendo algo mais próximo de Cidade de Deus, pelo elemento "coming to age" do garoto negro que busca seu lugar no mundo. 


É uma verdadeira surpresa. Um filme memorável e que marca um momento muito interessante do audiovisual americano, que reflete temáticas sociais mais relevantes e próximas aos espectadores. Um direção séria e criativa, com um olhar muito sensível. Uma fotografia sensacional, que ressalta muito bem a estética do filme e da produção, que buscou passar ao máximo a sensação de "vida real" a trama. Um casting muito real e atuações muito boas. É um retrato fiel e atual da sociedade americana, que ainda sofre com o racismo, a desigualdade e a violência. Recomendo e muito o filme. 



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