À Meia-Luz (Gaslight, 1944): Você sabe o que é "gaslighting"? Análise e interpretações do thriller psicológico clássico de George Cukor

 

Em 1875, a jovem cantora de ópera, Paula, se vê manipulada pouco a pouco por seu marido Gregory Anton (Charles Boyer), que faz ela acreditar que está ficando insana para esconder um segredo do passado. Um filme de suspense e thriller psicológico, Gaslight foi produzido pela MGM e dirigido pelo mestre George Cukor. Com Ingrid Bergman, Joseph Cotten, e Angela Lansbury. Teve uma aclamação, e recebeu 7 nomeações ao Oscar, incluindo de Melhor Filme, ganhando por Melhor Atriz para Ingrid Bergman e Melhor Design de Produção. Filme foi inspirado na peça Gas Light (de 1938), adaptação da peça homônima de Hamilton

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A famosa atriz  e cantora de opera, Alice Alquista tinha acabado de ser assassinada em seu casa, no número 9, da Thornton Square, em Londres. O assassino deixa para trás as joias de Alice, que tinham sido a principal motivação do crime. 

Paula, a sobrinha de 14 anos de Alice entra no recinto e impede sem querer o roubo das joias. A própria Paula, foi depois mandada para Itália para treinar ser também uma cantora de opera, como sua tia que foi assassinada. 

Alguns anos depois, uma adulta Paula casa com Gregory Anton, depois de apenas duas semanas de romance Devido também a insistência de Gregory. Paula volta para Londres, onde ela não tem nenhum amigo, para viver na casa que era de sua tia falecida. Para controlar a ansiedade da volta em conviver na casa da tia, ela descobre nas coisas de sua tia,  uma carta assinada no nome de Sergis Bauer. 

Gregory fica irritado ao ver Paulo lendo a carta, depois ele muda a narrativa, e diz que apenas ficou irritado de ver que ela ficava afetada pelas memórias da tia falecida.

Depois que os pertences de Alice foram trancados no sótão. Na Torre de Londres, Paula perde seu brochê que tinha ganho de Gregory, apesar de estar guardado em uma bolsa. Uma foto desaparece de seu lugar na parede e Gregory diz que Paula pegou outros objetos e depois devolveu. Paula não tem nenhuma memória de ter feito isso e fica confusa. 

Paula escuta passos acima de sua cabeça (na direção do sótão), ela acha que é apenas sua imaginação, e começa a notar que o sótão estava trancado e que a luz brilhava sem razão aparente (que já não era para ninguém estar ali aquela hora). 

Gregory aproveita a fragilidade de sua esposa e progressivamente a isola do mundo, dizendo que vai ser para o benefício de suas faculdades mentais. Ele também fica irritado com as pessoas que se interessavam pelas teorias e especulações de sua esposa. Quando Gregory leva sua esposa para a festa, ele mostra seu relógio para Paula, e depois fala que ele desapareceu, e depois acham o relógio dentro da bolsa de Paula. 

Paula começa a desconfiar da própria sanidade na frente dos convidados e Gregoru leva ela para casa. Paula acredita que ela não deve mais sair em público. A empregada Nancy piora a situação por Paula acreditar que ela a odeia. Gregory fala para Paula que ela está paranoica e imaginando isso da empregada, mas secretamente ele flerta com Nancy para ter apoio dentro de casa. 

Mas o que ela não pode imaginar é que Sergis Bauer, o homem das cartas, é na verdade, o verdadeiro assassino de sua tia. Ele procurou na Itália por Paula para achar as joias pelas quais havia matado a tia de Paula. 

Os passos que ela escutava no sótão eram de Gregory que tentava achar as joias no sótão, e a luz que ele disse que ela apenas imaginava eram reais. 

Gregory que é Sergis, mas se disfarça muito bem e fez uma estratégia para todos acreditarem que sua esposa estaria perdendo a cabeça e quer interná-la em uma instituição. Paula conhece o Inspetor Brian Cameron da Scotland Yard (polícia especializada do Reino Unido), que era admirador da de Alice Alquist desde a infância. Ele reconheceu Paula pela semelhança com a tia, o que faz com que ele se interesse pelo caso da morte de Alice que ficou sem resolução. 

As peças de joias de Alice, alguns delas eram presente da família real, o que explica o interesse e o plano por detrás da ação do marido. Gregory vai até uma casa ao lado e entra em seu próprio sótão através de uma claraboia. Cameron visita Paula e confirma que a luz do lado de fora está picotando. Eles descobrem uma carta de Bauer que Gregory insistia ser apenas uma imaginação de Paula e confirma a questão. Cameron segue Sergis e o confronta e depois o prende.

 Paula os segue e depois aparentemente convencida da própria insanidade, quer se vingar com uma faca apontada para o marido, mesmo descobrindo tudo, o marido tenta mais uma vez convencer a esposa de que é ela que está entendendo as coisas errado, ela "brinca" dizendo que a faca também não poderia ser real. Cameron entra na hora e prende Sergis (Gregory). 

Enquanto Sergis vai embora, parece que vemos Cameron expressando interesse amoroso em "cuidar" de Paula, sugerindo um futuro romance entre os dois. 

História por trás do filme

Encorajado pelo sucesso da peça houve um filme britânico de 1940, a MGM ganhou os direitos para fazer um remake, mas exigiu que o primeiro filme fosse extinto em suas cópias.  Mas o filme não foi destruído, só ficou mais difícil de ser achado.  O filme possui também uma estética noir que influenciou muitos filmes posteriores do gênero de suspense. 

Na versão de George Cukor, ele acabou com maior financiamento e condições de produção, fazendo um filme que ficou mais famoso que o original britânico. O filme foi considerado em 2019 apenas como um filme a ser preservado pela Biblioteca do Congresso americano por seu valor histórico e cultural. Cukor queria colocar o nome de "The Murder in Thornton Square". O filme deu lucro de $4.6 milhões, de um orçamento que foi a metade do lucro $2 milhões. Ainda não foi nem o primeiro a abordar a pela clássica de Hamilton, um filme britânico de 1940 tinha o mesmo nome e foi dirigido por Thorold Dickinson. 

Crítica do filme

Esse filme fez história de várias maneiras. Incluindo ainda polêmicas específicas quanto a sua produção. 

Além de ser estrelado por Ingrid Bergman, o filme praticamente criou um verbo (ação), "gaslighling" é o termo para alguém que manipula um outro alguém. Dentro dos estudos de gênero, a questão é um termo acadêmico muito utilizado para abordar formas psicológicas de violência doméstica. 

Seria como se fosse assim, o marido esconde um objeto dele, e pergunta para a mulher onde está, ela não sabe, e ele em resposta acha o que estava procurando nas coisas da esposa (mas acontece que ele colocou lá de propósito apenas para ter razão e gerar uma briga onde a mulher peça desculpas), seria esse o exemplo maior de gaslighling, um termo da psicologia que pode sugerir esse poder de manipulação. Tem uma obra de Michel Foucault A História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Ele aborda a questão da "hipótese repressiva" que a sexualidade desde do século XVII passou por um processo crescente de repressão, que alcançou o seu auge no século XIX vitoriano com certo puritanismo exacerbado. 

O filme ajudou a criar um termo que é bem comum nos estudos de gênero, o ator de gaslightling seria usar o poder da sugestão, da normalidade e da rotina para sutilmente manipular a opiniões da pessoa e de outras em redor. Sendo um termo muito usado na psicologia comportamental para falar sobre abuso psicológico em geral. 

 Historicamente, o filme se passa na Inglaterra vitoriana, em pleno 1870, na época, homens tinham todo o poder sobre mulheres, assim como o protagonista do filme, que armou do início ao fim para dar um golpe, usando dos estereótipos sobre o feminino para dominar a situação. 

O filme ganhou de acordo com o estúdio, $2,263,000 nos EUA e no Canadá, e $2,350,000 em outros países, resultando em um lucro de $941,000. A resposta crítica ao filme foi positiva. A atuação de Ingrid é considerada uma das melhores, e a atuação de Boyer como Gregory/Sergis foi também indicada a um Oscar. Também é um dos primeiros filmes que são realmente thrillers psicológicos, ao estilo "O Bebê de Rosemary", usando elementos de fora da tela para dentro da narrativa.

O filme é ambientado na Londres governada pela Rainha Vitória, uma mulher. Mas isso não mudou a relação de machismo que os homens ingleses tinham no período. Muitos dizem que o escritor Charles Dickers, apesar de ser um grande defensor dos pobres e oprimidos, colocou sua esposa em uma instituição, por exemplo. 

Basta pensar que o filme é de 1944, um ano antes do fim da Segunda Guerra, os americanos estavam mirando a ideia de revelação por trás da descoberta do nazismo (que precisava ser diferente da democracia americana, por isso eles entraram na guerra),apesar disso, o racismo nos Estados Unidos era absurdo com segregação formal em diversos territórios, o que significa que os direitos da mulheres e dos negros não eram respeitados, enquanto os Estados Unidos lutava contra a Alemanha nazista por algum motivo, qual era esse motivo, já que não era pela "igualdade dos povos, das etnias e dos gêneros?" que era o que o nazismo combatia com sua guerra ideológica. 

O problema estrutural disso é que a gente fica pensando sobre era o valor da Segunda Guerra para as pessoas comuns, para os americanos, ou brasileiros. Um pensamento bem crítica derrotista que pensa os horrores da guerra da confiança no humanismo em geral, como no filme "O Resgate do Soldado Ryan".  

O clima de ironia no filme é simbolizado  pelo fim, quando é Paula que rende Sergis com uma faca e finge que é maluca, brincando com o discurso de histeria, quando ela abre a porta para o inspetor prender Sergis, parece que ela vai ficar com ele, mostrando que o discurso de dominação patriarcal muda, apenas olhamos para a estória sob um ângulo de de romance e pessoalismo substitui a verdadeira reflexão psicológica e social que o filme aborda sobre a permanência da tradição, aqui apenas mudaria o patriarca por trás disso, uma crítica pesada. 

As mulheres da época, apesar de ganhar poder por ter uma rainha, eram submetidas aos códigos morais da época, toda a corte tinha um bem definido, onde os homens mandavam completamente, como mostrado no filme, onde o golpista consegue controlar sua esposa utilizando desse poder vindo de um código moral e mental também. 

Os asilos e casas de alienados em geral surgiram no século XIX, como forma de "saberes auxiliares" da medicina e do direito, que produziam junto a sociedade uma normalização e docicalização, nada mais presente do que no período vitoriano.  Em todo momento do filme, o marido tenta convencer que a loucura vinha da esposa, Paula. Também o discurso sobre histeria e loucura foi a forma de produzir os indivíduos "normais" para com a sociedade. A loucura aqui é a normalidade era a repulsa ao prazer, dele reservado ao esconderijo, ao armário, uma completa distância esse idealização e práticas. 

Em livros clássicos como "O Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde, existe uma atmosfera que lembra o filme de "repressão sexual" e social também, a cultura das aparências e das salas de jantar influenciavam em um comportamento que abominava tudo aquilo que era visto como fora da normalidade (como homosexualidade) ou mesmo as mulheres, que precisavam da autorização do marido para tudo. Existia um verdadeiro "culto da domesticidade" que impregnava toda a sociedade, e dentro disso, não é difícil imaginar casos como o do filme, onde o homem usa dos costumes sociais padrão para aplicar um golpe e cometer crimes. 

A primeira lei contra violência doméstica veio na época do reino de outra rainha Inglesa, era uma mistura de uma forma de lei do silêncio, com lei de agressão contra mulher. A lei era que você não podia estar batendo na sua mulher depois de 10:00 da noite (porque atrapalha a vizinhança), isso no período Elizabetano. 

Mulheres não possuíam a oportunidade de votar (no caso para o parlamento), quando a mulher casava nessa época, os direitos e as propriedades e riquezas iam direto para a responsabilidade do marido. Também não era dado aos mulheres o direito de estudar (nem mesmo nas classes superiores), já que se elas se casassem "não era mais necessário estudar". 

O que era estimulado era tocar piano, cantar (como Paula que é uma cantora de ópera como a tia), arrumar flores e outros extras, mas não o estudo. Para Paula, o problema nunca foi o machismo da época ou do marido, o problema se torna pessoal, principalmente porque muda o gênero da estória. 

Quando o marido é revelado como uma outra personalidade, a desculpa para de ser o machismo e a manipulação e passa a ser um fator específico (o marido não era Gregory Anton, era Sergis), e quando ela toma conhecimento disso, ela não fica sozinha, o filme sugere que ela vai se envolver com o policial (o que sugere que ela vai manter a dependência do machismo, apenas trocando o homem que era um golpista), isso no fim do filme, já no início mostra seu professor de canto dando um esporro nela (antes dela se casar), dela estar dispersa e não estar a altura de sua tia. Ela diz para ele que duvida de si mesmo e que apenas quer se apaixonar. 

Pensando em uma comparação com os eventos políticos atuais, Donald Trump e Bolsonaro estão sendo observados e investigados por segurar informação e manter segredos do Estado fora da consulta pública, sendo como no filme, mantido com a desculpa de "briga de marido e mulher ninguém mete a colher" ou apenas  como no último debate, discurso de proteção a propriedade privada, e tudo isso tem seu expoente e desenvolvimento maior em períodos históricos como o da Era Vitoriana. 

Segredo é a chave aqui, a principal estratégia para Anton no filme para manter Paula de fora de suas intenções reais e suas atividades secretas. Entretanto, ele tem o poder do sistema legal, como da própria sociedade vitoriana para mandar e e eventualmente matar sua esposa, é amedrontador, e podemos dizer, que é um dos filmes mais assustadores de todos os tempos, como todo bom thriller psicológico. Alguns críticos mais de esquerda, veem uma metáfora de de que o filme estimula uma ideia de polícia de vizinhança, ou de intervenção de bairro, uma ideia de "descortinar". 

Assista o filme aqui: