Pular para o conteúdo principal

O Beijo no Asfalto (1981): Jornalismo, fofoca e o beijo gay mais chocante do cinema nacional em clássica adaptação de Nelson Rodrigues



Depois de ser atropelado por um carro, um homem pede um último beijo a um transeunte antes de morrer. O outro homem, cheio de pena dele, realiza seu desejo. Logo, se torna o assunto da cidade, e a sociedade começa a implicar que os dois homens eram amantes, afetando sua vida e seu casamento.


Clique aqui para ver opções de onde assistir ou assista diretamente na Pluto TV de graça


A peça de Nelson Rodrigues foi escrita especialmente para o Teatro dos Sete, foi encenada pela primeira vez em 1961, dirigida por Gianni Ratto, com Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi, Fernando Torres, Oswaldo Loureiro, Suely Franco, entre outros. 


A peça teve ainda três versões cinematográficas, a primeira em 1964, O Beijo, com direção de Flávio Tambellini (pai), com Reginaldo Faria, Norma Blum, Xandó Batista e Jorge Dória nos papéis centrais.


A segunda em 1981 (esse filme), com direção de Bruno Barreto e elenco composto por Ney Latorraca, Christiane Torloni, Tarcísio Meira, Daniel Filho, Oswaldo Loureiro, Lídia Brondi e Caio Brossa no elenco.


A terceira em 2018, com direção de Murilo Benício e elenco com Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos, Débora Falabella, Stênio Garcia, Otávio Muller, Luiza Tiso, Marcelo Flores, Arlindo Lopes e Amir Haddad. A peça foi adaptada para quadrinho por Arnaldo Branco e Gabriel Góes, editado pela editora Nova Fronteira.


O filme começa com uma sirene. Dois policias chegam a cena onde vemos que um homem aparentemente foi morto por um ônibus. O filme tem sua introdução com um plano de uma menina olhando pelo vidro sujo de sangue. 


Depois pulamos para uma cena de uma delegacia, com um diálogo entre policiais debatendo tortura, onde o que aparenta ser mais mal é, na verdade, quem defende o legalismo, e o bonzinho, a tortura como método. Essa parte dos policiais no filme, só serve para criar um suspense e entregar que, na verdade, as aparências enganam muito mais do que pensamos para além do maniqueísmo diário da mídia.


Vemos uma cena de Tarcísio Meira conversando com sua filha, onde ela afirma que seu pai nunca chamou seu marido pelo nome "Arandir". Ela pede para ele dizer, mas ele se recusa. 


Ele conta a história obscura de Arandir ter se debruçado e beijado o homem acidentado, fazendo questão de reforçar que ele nunca faria aquilo. Eis que a outra filha, Dália, irrompe na sala, com sua camiseta escrita com seu nome, contando que acabou o pó de café, ensejando que elas não tem rotina direito. 


Há a cena onde Dália está vendo um filme do Zé do Caixão na tv, aparentemente  Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), parecendo, não assustada mas sim super excitada. Ela resolve então desligar a televisão, e acaba escutando o gemido da sua irmã no quarto, seguida de som de tapas, acreditando que ela está transando. 


A cena pula então para o quarto e vemos que, na verdade, ela está com falta de ar e seu marido está dando tapas em suas costas, transição bem engraçada por sinal, enquanto conta a história do dia, de ter sido interrogado o dia inteiro e sobre na hora de que o homem atropelado estava morrendo, ele pedia um beijo. "Morreu pedindo um beijo". Provavelmente por isso que o homem se compadeceu e o beijou, uma bobagem. O problema é a moralidade e a repercussão do caso. 


Vemos então um frame de Dália, completamente nua tomando banho ao som de uma trilha dos anos 80. Pelo efeito Kuleshov de transição, vemos que o marido de Selminha parece estar assistindo ela tomando banho, comprovando que ele é hétero. 


Depois, as vizinhas vem trazer a notícia do jornal, onde seu marido se tornou capa do Última Hora, jornal criado por Samuel Wainer, aberto apoiador de Getúlio Vargas e do PTB antigo. Aqui o filme faz uma brincadeira sobre jornalismo, dizendo que o grande jornal Última Hora, que cobriu campanhas nacionais como "O Petróleo é Nosso" e coberturas internacionais, agora vivia de fazer notícias sensacionalistas, de morte e coisas esquisitas. 


Descobrimos que o homem é jornalista e está passando por uma campanha de difamação e fake news. Há uma sequência maravilhosa de uma reportagem de rua perguntando a "opinião pública" das pessoas nas ruas, o que elas acham da situação. Temos conservadores afirmando que aquilo é um absurdo e hippies dizendo que aquilo não tem nada demais, é só um moralismo retrogrado, tudo bem "opinião pública", onde essa técnica só reforça o moralismo do senso comum. 


O debate do filme é bom, pois ao mesmo tempo que consideramos que nunca beijaríamos um homem morrendo, também não condenaríamos o homem. 


Dália supõe que o pai tem desejos incestuosos por Selminha. Vemos que Selminha foi presa pelos policiais que debatiam tortura no início do filme. Eles querem saber onde está o marido dela. Ela diz não saber. 


Nessa cena tem um jogo interessante, já que o polícia que parece bonzinho, era na verdade que torturou uma mulher ao ponto dela abortar. Já o policial que parece mau, era quem estava dando esporro e falando contra a tortura. 


Eles torturam ela, parecendo inclusive abusar dela. Depois vemos os policiais na redação do jornal, pegando as primeiras publicações do dia e comemorando as notícias a favor da polícia, fazendo a gente perceber que não tem como, naquela rotina, o jornalista ser neutro. 


Vemos então um diálogo do pai de Selminha falando com o policial torturador durante um jantar. Nessa cena, o policial diz que podia publicar que o seu genro teria empurrado o amante na frente do coletivo, mas em contraposição, o homem diz que o policial só quer vender jornal.


Selminha, já solta, agora afirma para irmã que talvez não consiga mais beijar seu marido. Arandir então confessa para Dália que ele a viu tomando banho e ficou excitado, buscando assim provar que é hetero e não beijou o homem. Dália então se despe para ele e confessa seu amor.


Aí então que o sogro bate na porta e vê a cena, julgando ele como muito mal, um "depravado comedor". Ele sai pela porta do Hotel e o sogro o segue. Nesse momento, a grande virada acontece e ficamos sabendo que o sogro escondia na verdade uma paixão gay por Arandir mal correspondida, e que ele era moralista com ele pois ele sempre quis seu beijo e ele o deu a um morto. Em seguida, o sogro saca um arma e atira nele, mas depois beijando-o, no meio do asfalto. 


De uma maneira sutil e teatral, esse filme explora a moralidade brasileira e suas noções de aparência e fachada. Através de um jogo de arquétipos simplificados e quase naturais dentro daquilo que observamos sempre de maneira familiar em nossa cultura, o filme propõe uma virada, um plot twist, uma inversão que nos tira do local comum. O personagem que agiu como agente da moralização era ele próprio o maior imoral de todos. 


A grande questão aqui, entretanto, é o fato de toda essa trama de amor bizarra, ao estilo Hitchcock, e impossível pela própria moralidade e julgamento sobre as aparências, está associada a uma trama sobre o jornalismo. O sogro era um homem padrão, leitor dos jornais e atualizado nas notícias, mas extremamente julgador do comportamento de todos e da moral. 


Ele parecia ter um relacionamento controlador e um tanto quanto incestuoso pelas filhas e a primeira vez que assisti, sempre achei que fosse esse o mote final. Na verdade, escondia um profundo desprezo por ambas, principalmente a mais velha, afinal queria ficar com seu marido. E a mais nova, faz coisas para chamar a atenção do pai. Tudo girava ao seu redor, menos Arandir. 


O fato dele ter simpatia pelo homem que estava morrendo e o dar um beijo, não significa apenas uma metáfora gay, já que ele reitera não ser, mas sim sobre o fato de de Arandir ser jornalista. Seu lado profissional, relacionado ao seu ato que se tornou a notícia, entregam que obviamente ele era de esquerda, afinal também escrevia para o Última Hora. Mas como o PTB, o jornal e a figura do pai de família mudaram muito seu valor e sentido, obviamente o leitor desse jornal vai mudar, se pautando apenas em uma imagem moral do conservadorismo do que era antes no passado histórico. 


Essa reflexão do filme é muito interessante em torno da perspectiva do jornalismo e da política nacional, mas um aspecto talvez notado e apreciado só por alguns. A genialidade do filme está realmente de uma maneira bem verossímil, já que o filme utiliza de uma boa técnica teatral para o elenco de atuação e diálogos internos, uma boa produção e principalmente uma ótima direção, que soube construir o efeito da trama ao logo do jogo de cenas e proporção moral que a trama vai assumindo. Ficamos todos bestificados, e até mesmo rimos e nos divertimos, com o desnudar das aparências que entrega que por trás de todo moralista existe, na falta de melhores palavras, um "gay encubado". 


A cena final é mortal, bestificante, esplêndida. Uma das melhores cenas do cinema nacional já feitas. O sentido dela pode ser analisado passo a passo, desde o congelamento no beijo, a chegada da filha mais velha, que vê a cena e também congela e na outra irmã, que surge ao fundo e com a cena também congela. Sobe a trilha de saxofone, bem similar a Taxi Driver, que tem um tom blasé mordaz, criando um final épico e trágico, ao mesmo tempo que profundamente urbano e tocante. O congelamento, a composição, parece ensejar toda uma sociologia por trás da cena, do frame, do quadro, onde o julgamento muitas vezes não vê nada além de um jogo de cena, quase como manequins. 


Ali, eles que julgavam a notícia viram a notícia, são "enquadrados" na visão geral e no drama ordinário da vida cotidiana explorada pelos jornais. São os leitores conservadores que tornam um jornal conservador, ou são posturas erradas do jornal que estimulam morais estranhas de seus leitores?. A fofoca é um valor popular que permeia o jornalismo e alimenta as notícias, objetivando mais cliques e leitores, mas ao mesmo tempo os meios noticiosos podem fabricar e estimular fofocas para que o público tenha certa percepção sobre algo ou alguém.


Arandir era um cara legal, mas tinha perdido o compasso da história da visão de mundo do que era aceito para ele em sentido social e profissional. Ele queria ser um jornalista profissional, que falava de coisas sérias, mas ainda era ditadura militar, e a fofoca e difamação vende bem mais quando as pessoas são oprimidas. É difícil dizer, e entre essa relação de causa e efeito o filme se afasta, buscando explorar mais essa "troca" entre morais, que mistura discursos pessoais e noticiosos, pensamentos e falas, com vivência e costumes culturais e sociais, na constante busca por notícias que deem lucro. Que tipo de sociedade espelham as notícias que mais gostamos de consumir?


No sentido da linguagem e forma do filme, o final ainda marca a contradição do vilão e assassino do filme (o sogro) ter um amor secreto e admiração pelo herói. Esse elemento, meio noir, dá o toque de filmes de investigação e suspense, fazendo do sogro um dos assassinos mais sinistros que já vi, justamente por ser tipicamente brasileiro em seu arquétipo, interpretação (uma das mais geniais de Tarcísio Meira) e principalmente sua moral, que busca preservar mais a aparência que realizar seu amor. 


Fica claro ao final do filme sua ideia: que o modelo sensacionalista do jornalismo ortodoxo e tradicional, aquele feito nas redações, com a ideia de "dar o que o público quer" é um modelo suicida, insustentável. Só que isso é suavizado dentro de um drama onde a moral final do filme, é uma mensagem contra o moralismo geral da sociedade brasileira da época. É um filme genial, bruto, sujo. É pouco conhecido e deve ser visto por quem quer conhecer mais o cinema nacional menos mainstreaming. Um pouco triste e trágico, chegando quase no cômico no final, mas necessário principalmente para quem quiser entender mais um pouco sobre jornalismo brasileiro, ética, moral e escolhas de vida. 


Comentários

Em Alta no Momento:

Os Desajustados (The Misfits, 1961): Um faroeste com Marilyn Monroe e Clark Gable sobre imperfeição da obra do artista e o fim fantasmagórico da Era de Ouro do Cinema Americano

Rastros de Ódio (The Searchers, 1956): Clássico de John Ford é o maior faroeste de todos os tempos e eu posso provar

"1883" (2021): Análise e curiosidades da série histórica de western da Paramount

Um Morto Muito Louco (1989): O problema de querer sempre "se dar bem" em uma crítica feroz à meritocracia e ao individualismo no mundo do trabalho



Curta nossa página: