Pular para o conteúdo principal

Summer of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada, 2021): O "Woodstock negro" é o tema do documentário vencedor do Oscar que examina o Festival Cultural Harlem de 1969


O documentário apresenta o Festival Cultural Harlem de 1969, que foi realizado no Mount Morris Park (agora Marcus Garvey Park) no Harlem e durou seis semanas. Apesar de ter uma grande presença e artistas como Stevie Wonder, Mahalia Jackson, Nina Simone, The 5th Dimension, The Staple Singers, Gladys Knight & the Pips, Blinky Williams, Sly and the Family Stone e The Chambers Brothers, o festival foi censurado pelos canais de televisão da época e assim sendo considerado perdido na cultura popular durante 52 anos, algo que os documentaristas investigam mostrando pessoas que lembravam do show mas achando estar loucas por não haver nenhum registro dele. Ganhador do Oscar 2022 de Melhor Documentário, o filme ainda conta com participação do humorista Chris Rock




História por trás do filme


Summer of Soul é dirigido por Ahmir "Questlove" Thompson, e é fácil reconhecer que este foi definitivamente um trabalho de amor para o músico e cineasta. Questlove, baterista do Roots, a banda de apoio do The Tonight Show Starring Jimmy Fallon, combina perfeitamente imagens inéditas do Festival Cultural harlem de 1969 com novos comentários, criando uma experiência visual verdadeiramente essencial e divertida.



O Festival Cultural do Harlem foi proposto pela primeira vez em 1964 para dar vida ao bairro do Harlem. Ao mesmo tempo, em meados da década de 1960, o cantor de boates Tony Lawrence começou a trabalhar em iniciativas comunitárias no Harlem, inicialmente para igrejas locais, mas a partir de 1966 trabalhando sob o prefeito de Nova York John Lindsay e o Comissário de Parques, August Heckscher. 



Em 1967, Lawrence ajudou a criar o primeiro Festival Cultural do Harlem, uma série de eventos gratuitos realizados em todo o Harlem que incluía "uma Noite de Harlem Hollywood, demonstrações de boxe, um desfile de moda, gp de kart, o primeiro concurso miss Harlem, e shows com soul, gospel, calipso e música porto-riquenha". Em 1968, o segundo festival anual incluiu uma série de concertos musicais com figuras de alto perfil, incluindo Count Basie, Bobby "Blue" Bland, Tito Puente e Mahalia Jackson. Foi filmado pelo documentarista Hal Tulchin, e trechos foram transmitidos pela WNEW-TV em Nova York.



Tony Lawrence também apresentou e dirigiu o festival de 1969, realizado no Mount Morris Park, aos domingos às 15h de 29 de junho a 24 de agosto de 1969. 


A pedido do organizador e apresentador do festival Tony Lawrence, o produtor de televisão Hal Tulchin gravou cerca de quarenta horas de filmagens do Festival Cultural do Harlem de 1969 em vídeo, trechos dos quais foram originalmente transmitidos em dois especiais de TV de uma hora em julho e setembro de 1969 pela CBS e ABC. As fitas foram posteriormente colocadas em um porão, onde dizem ter ficado sentados por cerca de 50 anos inéditos. Por vários anos, Tulchin tentou interessar as emissoras nas gravações com pouco sucesso, embora algumas das filmagens de Nina Simone tenham sido usadas em documentários sobre o cantor.



Apesar do Festival de Cultura do Harlem ter um grande patrocinador, o café Maxwell House, e uma incrível variedade de talentos negros e pardos, apenas duas horas de filmagem viram a luz do dia no WNEW Channel 5 em Nova York. Não havia interesse em um concerto que fosse "muito negro", especialmente durante o verão daquele festival de música muito badalado a 160 km ao norte do Harlem. Eles fizeram um filme daquele um ano depois. Enquanto isso, 40 horas do tema deste filme sumiu na obscuridade.



Felizmente, Tulchin guardou todos os 47 rolos que atirou em seu porão. Quase 50 anos depois, foi recuperado, limpo e editado para servir como a espinha dorsal de "Summer of Soul". Os clipes são escolhidos cuidadosamente, não apenas pela familiaridade dos artistas, mas também como contexto para a história que Thompson quer contar. Ele monta o palco musical e historicamente, começando com o principal propósito do Harlem Culture Festival. Através de notícias e entrevistas, somos lembrados dos assassinatos de Kennedys, Malcolm X, e Dr. Martin Luther King Jr., o último dos quais desencadeou tumultos em Newark, Detroit, Atlanta, e Watts em 1968. No ano seguinte, para comemorar o aniversário da morte do Dr. King, foi criado o Festival de Cultura do Harlem.



Em 2004, Joe Lauro, um arquivista de filmes históricos, descobriu a existência da filmagem e entrou em contato com Hal Tulchin. Ele digitalizou e catalogou a filmagem, na esperança de trabalhar em um filme sobre o evento. Em 2006, Lauro fechou um acordo com Robert Gordon e Morgan Neville para contar a história do festival, mas o acordo nunca viu a luz do dia quando Tulchin descontinuou seu acordo com Lauro. O produtor Robert Fyvolent originalmente procurou trabalhar com Lauro, mas quando Tulchin terminou seu relacionamento com Lauro, Fyvolent adquiriu os direitos de cinema e televisão para as filmagens de Tulchin. Fyvolent começou uma colaboração com o produtor David Dinerstein em 2016 e juntos eles contrataram a Radical Media com o editor Josh Pearson e adicionaram seu terceiro produtor Joseph Patel. 



O diretor Ahmir Thompson expressou surpresa que as filmagens ficaram por tanto tempo, pois a música teve um grande impacto em sua vida e desenvolvimento, afirmando "O que teria acontecido se isso fosse permitido um lugar à mesa? Quanta diferença isso teria feito na minha vida? Esse foi o momento que extinguiu qualquer dúvida que eu tinha que eu poderia fazer isso."


O evento é muitas vezes comparado com Woodstock, sendo chamado o "The Black Woodstock". Se pararmos para pensar, o fato de ser dentro da cidade, torna o evento mais peculiar que o Woodstock, que foi em local muito distante e inacessível aos pobres, enquanto o Summer of Soul foi no coração do Harlem negro.



Um álbum oficial da trilha sonora foi lançado em 28 de janeiro de 2022 pela Legacy Records. Em uma entrevista, Questlove disse que eles consideraram incluir músicas que não estavam no filme original que decidiram ficar com a música que já estava liberada para lançamento. O lançamento físico contém 16 músicas, enquanto o lançamento digital inclui uma música extra, Abbey Lincoln e "Africa", de Max Roach.



Listagem de faixas digitais:


The Chambers Brothers – “Uptown”

B.B. King – “Why I Sing The Blues”

The 5th Dimension – “Don’t Cha Hear Me Callin’ To Ya”

The 5th Dimension – “Aquarius/Let The Sunshine In (The Flesh Failures)”

David Ruffin – “My Girl”

The Edwin Hawkins Singers – “Oh Happy Day”

The Staple Singers – “It’s Been A Change”

The Operation Breadbasket Orchestra & Choir Featuring Mahalia Jackson and Mavis Staples – “Precious Lord Take My Hand”

Gladys Knight & The Pips – “I Heard It Through The Grapevine”

Mongo Santamaria – “Watermelon Man”

Ray Barretto – “Together”

Herbie Mann- “Hold On, I’m Comin’”

Sly & The Family Stone – “Sing A Simple Song”

Sly & The Family Stone – “Everyday People”

Abbey Lincoln and Max Roach – “Africa”

Nina Simone – “Backlash Blues”

Nina Simone – “Are You Ready”



Crítica do filme


O filme foi outra das surpresas desse ano. O filme passou despercebido por mim em primeiro momento, mas é o tipo de documentário que mais gosto: o de cunho histórico. Tudo nesse doc é histórico e documental. Primeiro, a forma como ele acabou acontecendo, vindo de uma censura, ao arquivos até a redescoberta e atual lançamento, passando por todo um contexto até ser publicamente visto por todos.



A proposta cultural do evento em si era genial. Um festival de bairro, com bandas e músicos de topo de linha, comemorando a cultura negra e reivindicando direitos. A proposta era tão cultural que conseguia ser defendida até mesmo por um político republicano, o prefeito John Lindsay, que depois viria a mudar de partido



O ano de 1969 foi extremamente agitado. Além da ida do homem a Lua, o republicano Nixon assumia a presidência da republica, após Kennedy e seu irmão, Robert. Para o Brasil, é o ano da criação do Jornal Nacional, algo que se associa a perspectiva do documentário do aumento da importância da TV. Também os membros do Partido dos Panteras Negras Fred Hampton e Mark Clark são mortos a tiros enquanto dormiam durante um ataque de 14 policiais de Chicago. Há também referência a Martin Luther King e Malcolm X aos 7 de Chicago, um grupo de ativistas e manifestantes acusado pelo governo estadunidense de conspiração e incitação a revolta durante protestos contraculturais e contra a Guerra do Vietnã durante a Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago, Illinois.



Aqui, vemos algumas contradições entre o discurso e a memória que tornam o documento histórico ainda mais interessante enquanto fonte para análise histórica. Por exemplo, o fato de no filme varias pessoas relacionadas com os direitos civis e os panteras negras, falarem contra a Guerra do Vietnã, em uma perspectiva antinacionalista pois afinal não se sentiam membros da nação, e contra a viagem espacial. Para muitos negros, pardos e pessoas pobres, a ida do homem a Lua era inútil, um desperdício de dinheiro que poderia ser utilizado para combater a fome. 



O filme tenta explorar nesse debate a contradição entre o interesse científico e o interesse popular, contradizendo algumas teses materialistas que acreditam que o desenvolvimento científico está associando ao crescimento da nação, se não tiver um sentido social. 



Assim, em termos documentais, Summer of Soul é um documento incrível, um registro raro, de uma época e um costume e organização cultural que nunca mais irão voltar. Imagine você ver Nina Simone, BB King, Steve Wonder e outros em um festival de bairro, no seu bairro por mais pobre que seja? Essa é a essência perdida desse doc, encontrar aquela nostalgia máxima, onde pela raça, pela cultura, você tinha músicas famosíssimos tocando de graça para a população por um princípio pedagógico e educacional de ensinar as massas seus direitos. Mas como qualquer documentário, o que vemos ali não é "a realidade" direta e expressa, mas sim uma construção que busca utilizar de dispositivos tópicos, sensoriais e temporais para construir uma aparência, uma narrativa, de veracidade. É inclusive assim que analisamos a qualidade de um documentário: em como ele vincula todos esses dispositivos para compor sua narrativa para parecer real e convencer. 



Isso é importante para entender que nem tudo que está ali é verdade, e mesmo a verdade pode ser engajada de maneira a passar um certo sentido e sentimento em determinada época. Assim, é interessante perceber o sentido de Summer of Soul, ou seja, refletir o motivo dessa temática ser abordada exatamente agora, onde o filme foi obviamente segurado e muito bem montado e editado para sair no momento correto, e como ele tenta defender através do aspecto cultural uma perspectiva política contraditória. 



O filme faz questão de evocar um momento de despertar cultural, um momento de virada da consciência das pessoas em torno das questões raciais. Mas esse momento, apesar de importante e cultural, ia na contramão daquilo que estava acontecendo na politica mundial e dos Estados Unidos. Apesar do despertar cultural e o sentimento geral de reação e resistência, os Republicanos chegavam ao poder. Além disso, a década de 70 foi a da crise do petróleo, marcando o fim do sonho de liberdade de uma geração. 



Então, o filme objetiva passar a ideia de que é possível revolucionar, pelo menos se revolucionar, mesmo em tempos de conservadorismo. Entretanto, é engraçado a mensagem desse documentário no atual contexto, pois parece querer abrir caminho de volta para a eleição dos republicanos, lembrando de tal período como muito cultural, vivo e em movimento. Há uma mensagem contra o Vietnã e o sistema, mas essa crítica é combinada com certo louvor da resistência, que acaba glamourizando o contexto como a melhor época de todas, algo se não conservador, no mínimo nostálgico. 



Outra coisa é se ater a referência no nome do filme ao documentário "A Revolução Não Será Televisionada" (2003). O filme narra os eventos ocorridos na Venezuela precedentes e durante a tentativa de golpe de Estado de abril de 2002, período no qual o Presidente Hugo Chávez foi removido do cargo por dois dias. Com particular ênfase no papel da mídia privada venezuelana, a película examina diversos incidentes importantes: o protesto e a subsequente violência que impulsionaram o afastamento de Chávez; a formação de um governo interino por parte da oposição, liderada pelo empresário Pedro Carmona; e o colapso da administração de Carmona, que pavimentou o caminho para o retorno de Chávez. A Bartley e Ó Briain, cineastas irlandeses por trás da realização, foi dado acesso direto a Chávez; a intenção dos dois era fazer uma biografia do presidente. Eles passaram diversos meses na Venezuela, seguindo o líder e sua equipe, além de entrevistar cidadãos comuns.



Na proporção do documentário referenciado, por mais que seja um momento cultural muito importante, a ideia de "revolução" aqui está mal empregada. Nada mudou estruturalmente ou em direitos para a população negra devido o Festival do Harlem. Entretanto, o evento representou e sintetizou muito bem uma mudança da mentalidade e consciência na população negra, onde as ideias, principalmente socialistas e comunistas, serviram como incentivos morais para o empoderamento negro. 



Frases como "preto é bonito" representavam essa tentativa de reposicionar o discurso e a própria autoimagem. Mas não foi o show que as fez mudar de ideia, nem que marcou a tomada de consciência e sim todo um contexto. O show é bonito e legal pois é fruto desse contexto, e não ao contrário. Há uma certa forçada por parte ideológica do filme em vender a ideia de empoderamento e revolução para um período tão conservador, onde o Brasil, por exemplo, estava em uma ditadura militar. Aqui existiam os festivais musicais, sendo o Festival de 67 o mais marcante de todos, mas nem por isso dizemos que ele "revolucionou" nem o Brasil, nem a cultura brasileira, apesar de representar um momento e uma fonte da História do Brasil.



Em termos de técnica, o filme é sensacional. Além da edição e montagem perfeitas, há momentos únicos por parte do documentário. Por exemplo, quando o filme começa exibindo uma banda se apresentando, transita para algum depoimento ou imagem de footage histórica, mas continua com parte da música tocando ao fundo, para depois retomar a apresentação do show. Genial. 


Nina Simone além de demonstrar todo seu talento, faz um discurso e engajamento de público, típico de Teatro de Arena do CPC, interessantíssimo a similaridade. BB King dá um show na guitarra, em uma de suas apresentações mais vívidas que já vi. E Mongo junto com Barretto, com sua mistura de soul e música latina, são um gozo auditivo para quem gosta.


Há um grande trabalho de contextualização, uma coisa bem transparente com a História, que tanto esclarece para o espectador o contexto, como orienta por onde se deve pesquisar para saber mais sobre o contexto. O trabalho de tratamento e seleção de imagens, fotos, vídeos e entrevistas é perfeito, maravilhoso. A edição de som também. Mas me respondam, custava colocar o arquivo do show em formato 16:9? O formato 4:3 estraga um pouco a naturalidade da transição do filme, parecendo que o Oscar premiou um filme editado no Movie Maker. Dá esperança para os independentes, né. Mas no geral, um documentário muito bom, divertido, legal e necessário. Vejam. 




























Comentários

Em Alta no Momento:

"1883" (2021): Análise e curiosidades da série histórica de western da Paramount

A Guerra de um Homem (One Man's War, 1991): Um filme com Anthony Hopkins e Fernanda Torres sobre a ditadura Strossner do Paraguai

O Homem que Copiava (2003): Análise e curiosidades do filme nacional de Jorge Furtado com Lázaro Ramos e Leandra Leal, que aborda a pobreza e a desigualdade no Brasil

Ele Vivem (1988): Imagine se a mídia, o marketing e o capitalismo fossem controlados por aliens que buscam roubar recursos naturais da terra



Curta nossa página: