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No Calor da Noite (1967): Estrelando Sidney Poitier, filme insta a lidar com as diferenças raciais no auge das Leis dos Direitos Civis



O rico industrial Phillip Colbert muda-se para Esparta, Mississippi, para construir uma fábrica lá. Uma noite, o policial Sam Wood descobriu o corpo assassinado de Colbert caído na rua. Wood encontra Virgil Tibbs (Poitier), um homem negro com uma carteira cheia de dinheiro, na estação de trem e o prende. O chefe de polícia Gillespie o acusa de assassinato e roubo, mas logo descobre que Tibbs é um inspetor de homicídios da Filadélfia. Tibbs quer deixar a cidade no próximo trem, mas seu chefe sugere que ele fique em Esparta para ajudar na investigação do assassinato. Embora o policial local, Gillespie, como muitos dos residentes brancos de Esparta, seja racista, ele e Tibbs relutantemente concordam em trabalhar juntos. No Calor da Noite levou cinco estatuetas do Oscar: de melhor filme, melhor ator, melhor som, melhor roteiro adaptado e melhor montagem. O filme teve duas continuações, They Call Me Mister Tibbs! (1970) e The Organization (1971). Em 1988, o filme serviria de base a uma série de mesmo nome





História por trás do filme 


Embora o filme tenha sido ambientado em Esparta, Mississippi, a maior parte do filme foi filmado em Esparta, Illinois, onde muitos dos marcos do filme ainda podem ser vistos.


Jewison, Poitier e Steiger trabalharam juntos e se deram bem durante as filmagens, mas Jewison teve problemas com as autoridades do sul, e Poitier tinha reservas sobre vir ao sul da linha Mason-Dixon para filmar. Apesar de suas reservas, Jewison decidiu filmar parte do filme em Dyersburg e Union City, Tennessee, de qualquer maneira, enquanto o resto foi filmado em Esparta, Chester, e Freeburg (restaurante de Compton), Illinois.




A cena de Tibbs batendo Endicott não está presente no romance. Segundo Poitier, a cena quase não estava no filme. Poitier afirma: "Eu disse: 'Vou te dizer uma coisa, vou fazer este filme para você se você me der sua garantia absoluta quando ele me bater eu esbofeteá-lo de volta e você garante que em todas as versões deste filme. Eu tento não fazer coisas que são contra a natureza." 


Tibbs instando o mordomo a orar por Endicott fazia parte da adaptação de Silliphant de In the Heat of the Night como uma alegoria cristã subversiva, apresentando Tibbs como o estranho messiânico que confronta o estabelecimento racista de Esparta. 




O filme também é importante por ser o primeiro grande filme de Hollywood em cores que foi iluminado com a devida consideração para uma pessoa negra. Haskell Wexler reconheceu que a iluminação padrão forte usada nas filmagens tendia a produzir muito brilho em peles escuras e tornava as características indistintas. Assim, Wexler ajustou a iluminação para apresentar Poitier com melhores resultados fotográficos.




A trilha sonora do filme foi composta, arranjada e conduzida por Quincy Jones, e o álbum da trilha sonora foi lançado pela gravadora United Artists em 1967. A canção título interpretada por Ray Charles, composta por Quincy Jones, com letras de Alan e Marilyn Bergman foi lançada como single pela ABC Records e alcançou o 33º lugar na Billboard Hot 100 e #21 na parada Hot Rhythm & Blues Singles. 



Steven McDonald, da AllMusic, disse que a trilha sonora tinha "um tom de fúria justa tecida por toda parte" e que "a intenção por trás de In the Heat of the Night era obter uma atmosfera sulista, blues-inflexionada para apoiar a abordagem raivosa e antirracista da imagem ... embora as pistas de In the Heat of the Night mostram sua idade". A música e o álbum são simplesmente geniais, com atmosfera sulista, com toques de blues e funk, vale conferir:





Leitura e Crítica do Filme


No calor da Noite deve ser um dos filmes mais impressionantes tecnicamente já feitos da história do cinema mundial. Tudo parece trabalhar em conjunto para criar uma obra de arte. Começando pela música de Quincy Jones, que combina perfeitamente com a direção, fotografia e edição do filme. E não é só a música: cada ruído e elemento sonoro do filme é marcante. 


A atuação de Poitier é genial, tanto pela temática do policial negro que deve lidar com as adversidades do contexto sulista, como pela sua linguagem corporal e mimética, que constroem perfeitamente a personalidade de um cara certinho, perfeccionista e científico. 




O filme é uma trama sobre investigação criminal, lançando princípios de perícia que muitos filmes e séries passaram a utilizar, como por exemplo analisar o cadáver para saber a quanto tempo está morto, algo que os policiais locais ouvem como se fosse magia. 



Sobre o enredo, obviamente a cidade sulista atrasada em seus costumes é uma metáfora dos Estados Unidos. A dinâmica entre um policial racista, meio miliciano e negacionista, e o policial negro certinho, são metáforas perfeita do que os Estados Unidos estava tendo que fazer nos anos 60: conviver com as diferenças para poder vender a imagem de melhor país do mundo, e não dá para fazer isso quando seu país tem fama de ser racista. O policial racista é uma ótima representação do americano médio, que se vê obrigado a aceitar o policial negro para manter o funcionamento das instituições, ou seja, porque funciona. Mas ele faz questão de mostrar em vários momentos do filme como a presença do policial forasteiro o incomoda em sua cidade. 



Há uma mensagem totalmente política de que, em contexto de Guerra Fria, se os Estados Unidos gostaria de superar a União Soviética, deveria acabar com a sua imagem de país racista, aceitando as diferenças. O problema é que não há o outro lado da moeda aqui. Não existe essa de racismo reverso, não tem como o personagem de Poitier aprender a superar suas diferenças com o branco. 


É o branco que não gosta dele e julgou pela primeira vez pelas aparências, criando uma rusga irreparável na relação dos dois. Mas mesmo assim, o policial forasteiro se predispõe a ajudar, com humildade, algo questionável da proposta do filme, mas que pela lógica do profissionalismo, passa a mensagem que é importante relevar os personalismos e focar no caso a ser resolvido, tendo objetividade na resolução dos conflitos. E a cena do tapa na cara do racista é genial.




O filme entrega melhor sua mensagem quando é mostrado que o contexto histórico da cidade é de plantações de algodão. As plantações de algodão dos Estados Unidos são conhecidas na História do país por empregar na produção a escravidão, majoritariamente de pessoas negras. É jogado que o personagem de Poitier também vêm desse contexto, e é ensejado uma interpretação antropológica do motivo dele ser certinho e ter perícia: vem da herança das colheitas de algodão e o cuidado que tem que se ter para remover as favas sem cortar as mãos em espinhos, típicos da planta. Aqui, o sentido narrativo associa a herança histórica enquanto benefício cultural, ou seja, pelo fato dos brancos terem obrigado os negros aos trabalhos forçados, eles desenvolveram dons e habilidades superiores aos brancos, algo típico na teoria de Gilberto Freyre. 




Em 1964, as Leis dos Direitos Civis sepultaram o sistema estatal de segregação racial dos Estados Unidos e decretaram o fim oficial das leis Jim Crow. Um marco na história da luta pelos direitos dos negros norte-americanos, durante a gestão Lyndon Johnson. Entretanto, há fortes indícios de que Johnson apoiou a ditadura militar no Brasil, e era do Partido Democrata. 


Assinou a Lei dos Direitos de Voto de 1965, e da Lei dos Direitos Civis de 1968, mas priorizou a interrupção da expansão dos governos marxistas-leninistas, principalmente soviético. Antes de 1964, os EUA já tinham uma presença notável no Vietnã, fornecendo armas, treinamento e ajuda ao Vietnã do Sul, a fim de conter o movimento comunista na região. Em 1964, após uma escaramuça naval, o Congresso aprovou a Resolução do Golfo de Tonkin, que concedeu a Johnson o poder de lançar uma campanha militar completa no sudeste da Ásia, marcando a escalada do envolvimento americano na Guerra do Vietnã. O número de militares americanos no Vietnã aumentou dramaticamente, e à medida que a guerra progredia, as baixas americanas aumentaram junto com as mortes de civis vietnamitas.




Essa mensagem de pacificação obviamente foi reconhecida pela academia, afinal era uma narrativa que vendia a maneira certa de pensar, mas mantinha o status quo, dentro de uma narrativa policial, onde o policial além de tudo era ultra certinho. Isso faz de No Calor da Noite, por um lado temos um filme revolucionário e instigante em termos de estética e proposta técnica. 


Por outro, sua narrativa sustenta estereótipos e naturaliza o racismo estrutural, focando em substituir essa perspectiva por uma mensagem pacificadora e que obviamente não era verossímil para a realidade, sendo por isso em muitos aspectos um filme utópico ou idealista. Os dois policiais se unem temporariamente por apenas um motivo: o assassino era um racista confederado, obviamente de um grupo extremista local. Mas apenas por essa excepcionalidade e nada mais. Entretanto, estupendo em termos de técnica. Com direção, fotografia perfeita, com técnicas de foco e luz genialmente articuladas, a atuação magistral do elenco e tudo mais, desviamos para mergulhar na situação da trama, provando a capacidade do convencimento do cinema de vender narrativas através de técnicas formais do audiovisual. 


Segundo o Justwatch, não está disponível em nenhum serviço de streaming brasileiro. Mas fica como minha homenagem ao grande Sidney Poitier, como um dos seus melhores filmes e com certeza um dos meus favoritos dele.






 

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