South Park: Post Covid - O Retorno da Covid (2021): Especial ironiza a hipocrisia do "novo normal" perante a realidade da pandemia
Em 2061, quase quarenta anos após o início da pandemia de Covid-19, Stan Marsh se mudou de South Park e é um consultor de whisky online. Ele mora com uma Alexa que se projeta como uma esposa e que sempre reclama sobre ele. Assim que a notícia de que Covid está finalmente acabando, Stan recebe um telefonema de Kyle Broflovski, agora orientador da Escola de South Park, informando de que o cientista Kenny McCormick morreu, e o grupo terá que se reunir mais uma vez para o velório, onde as mudanças com Cartman surpreendem a todos, além de uma possível nova onda. Explorando que a pandemia de Covid-19 pode durar quase quarenta anos, os especiais satirizam a positividade da ideia de "novo normal" e da previsão de cientistas e pensadores que afirmaram que pandemia iria melhorar a sociedade
Randy Marsh está se escondendo das autoridades. Ele tem o último broto de maconha especial, e precisa levá-lo para fora da cidade para que possa ser replicado e criado. Quando dois enfermeiros de Shady Acres o localizam, ele tenta chamar a atenção dos outros e é salvo por Token, que usa artes marciais para derrotar ambos.
Randy é levado de volta ao laboratório de Kenny para ajudá-los a descobrir quando ele fez sexo com o pangolin na China, iniciando assim a pandemia de Covid.
Stan lembra do início da pandemia COVID-19, quando ele, Kyle Broflovski, Kenny McCormick e Eric Cartman foram mandados para casa da escola antes que pudessem chantagear a colega Heather Wiliams para assistir a um jogo do Denver Nuggets; e os eventos que o levaram a queimar tegridy farms, inadvertidamente matando sua irmã Shelly, levando ao suicídio de sua mãe Sharon.
Análise e crítica
Abdução, sonda anal, evocação do diabo e Saddam Hussein, evocação de Jesus e Papai Noel, fora as incontáveis mortes de Kenny. South Park já passou dos limites várias vezes ao longo de seus 24 anos. Na verdade, muito do humor das primeiras temporadas da série é batido e politicamente incorreto. Várias piadas das primeiras temporadas envelheceram mal, tanto por seu teor explícito como pela referência já ter envelhecido. Entretanto, a animação por diversas vezes se repensou e tentou adaptar o humor da série para tempos mais atuais.
Para se ter noção, quando o filme, "South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes" foi exibido no Brasil a primeira vez, pelo SBT em 2004, houve uma comoção das crianças, que amaram o tom politicamente incorreto do filme, pois não tinha muito internet na época, então aquilo era o máximo de transgressão que dava para se ter. Mas os pais não gostaram, e a reclamação dos espectadores gerou uma menção ao SBT pelo Ministério Público Federal, e um pedido de indenização de R$ 800 milhões por danos morais. South Park era mencionado na notificação junto com outras séries, como Mulher Gato, Smallville, O Vidente, As Espiãs, Witchblade, Fastlane, Aliás e The OC.
Entretanto, por exemplo, quando Trump foi eleito a série criticou muito, tanto o presidente como a "epidemia" de notícias falsas e pós verdade, trazidas pelo republicano. Inclusive, acredito que, como uma série sempre conhecida por ser "politicamente incorreta", quando assumiram o lado correto da política, causou um desconforto nos espectadores, que nos Estados Unidos devem ser em sua maioria republicanos desiludidos. Digo desiludidos, pois seriam "republicanos de ocasião", que só possuem posições conservadoras de maneira cultural por se sentirem excluídos da participação política, dos empregos e do centro da chama "estilo de vida americano". E quando até séries que sempre foram controversas "tomaram lado" perante os absurdos de Trump, gerou um desconforto geral com a audiência e a série meio que foi "cancelada".
A Vigésima Terceira Temporada (23°) estreou em 25 de setembro de 2019 e encerrou no dia 11 de dezembro de 2019. Oficialmente, a série não foi cancelada, saindo inclusive uma notícia de que a série animada foi renovada para mais 3 temporadas, totalizando um total de 26° temporadas. Porém, após a pandemia de Covid-19, a temporada nunca saiu, dando a entender o óbvio: que a série foi cancelada.
Existiu ainda um especial de vacinação, o "South Park: South ParQ Vaccination Special", estimulando a vacinação e com os personagens ainda em seu formato clássico. Porém, além de não ser muito inovador nem engraçado, a tentativa de fazer piadas politicamente incorretas, como dizer que os mais velhos eram os novos jovens já que eles possuem prioridade na vacinação.
Vemos ainda que se forma um grupo infantil inspirado em QAnon chamado "QTies". As crianças fazem parte das famílias conservadoras ligadas ap Sr. White que é um apoiador do Sr. Garrison. Quando o Sr. Garrison estava pensando por que a cidade está evitando ele, ele é abordado pelo Sr. White dizendo: "Eu só quero que você saiba que eu estava sempre do seu lado, na verdade, todos nós brancos estávamos realmente do seu lado". Isso só pode ser considerado um jogo de palavras inteligente, que está indiretamente se referindo à ideologia supremacista branca do QAnon e dos republicanos.
Por isso, o especial "Post Covid", que seria a parte 1, e "Covid Return", a parte 2; são como um "retorno" da série, mas em formato de especial. Obviamente uma tentativa de fazer a série voltar. Mas como falar de bobagens e trivialidades, como ser politicamente incorreto, quando não há cotidiano por causa da pandemia e distanciamento, além de pessoas estarem morrendo?
Entretanto, eles usaram uma carta na manga arriscada: eles envelheceram os personagens. Isso é sempre um recurso arriscado, já que agora a única forma de continuar a série é incorporando a mudança. As mudanças com Cartman também foram severas, podendo desagradar os fãs mais conservadores.
Ao longo dos especiais, eles abrem para um brecha, ao tentarem viajar no tempo para impedir que a pandemia de Covid comece e assim voltando a fórmula antiga. A verdade, é que a série inovou, mas deixou um "backup" caso desagrade muito, podendo voltar com eles jovens. Mas a verdade, é que South Park com os protagonistas adultos ficou sensacional! Além de obter algumas respostas para disputas ontológicas, é fato que depois de 24 anos, quem é fã desde o início, cresceu. Quem não era, pode lidar com mudanças. E que mudanças!
A partir daqui, não tem como, vão ter spoilers. Primeiro, foi confirmado que o Kenny é o cara mais legal do grupo. Além de virar cientista, é o único cara do mundo que consegue ser amado por todos, mesmo falando o mínimo possível e morrendo em quase toda aventura do grupo. O futuro de Stan revelou o que todos sabiam sobre ele: que ele é um babaca! Além de não conseguir um relacionamento real, casando com uma versão 4.0 da Alexa do Amazon, que vive pegando no pé dele (e está certa a maioria das vezes, denotando como ele é babaca).
Kyle não é nem que seja escroto, ou que tenha se tornando fracassado exatamente, mas ele vive dentro do próprio código de ética extremo, que ele cobrou das pessoas ao longo da série, logo ele é obviamente infeliz e não consegue desenvolver bons relacionamentos também. Já Cartman, apesar de toda sua ignorância, se arrependeu, casou, teve filhos e se converteu ao judaísmo, o que é contraditório já que parece cínico e redentor ao mesmo tempo. Cartman é contra, pois afinal agora ele teve sua redenção e se a pandemia nunca acontecer, ele nunca terá sua família judia.
Além deles, Token se tornou um policial fodão, progressista e que ajuda Randy a salvar o último pé de maconha do mundo. Butter, de maneira não surpreendente, se tornou um psicopata. E Randy, um jedi da maconha, que apesar de parecer louco ainda, com a pandemia parece ter ganhado certa legitimidade.
No final, a ideia da viagem no tempo não deixa claro se a pandemia foi impedida ou não, mas ficou claro que o reset impediu Stan de destruir a fazenda de maconha do pai, logo não matando a irmã e mantendo seu negócio lucrativo. Mas isso faz com Stan vire militar, o que diz muito sobre ele. Kyle deu na mesma quase, e o importante é que nessa realidade Kenny sobreviveu e ganhou um Nobel. Mas nesse realidade Cartman virou um mendigo, bêbado e que só fica xingando todos. Uma coisa ambígua pois se isso diz muito da realidade utópica de Stan e Kyle, no fundo temos que lembrar que Cartman sempre foi racista e antissemita. Logo só é difícil sentir pena, ao mesmo tempo que o idealismo parece cruel, mostrando que nunca poderá haver um final feliz para todo grupo.
O problema é que de certa maneira isso fecha todos os plots e encerra as expectativas gerais em torno dos personagens. O que quero dizer é que parece que tivemos um fim, simples assim. O final do especial não tenta engatar uma nova história, apenas encerra a história. É claro, como Kenny volta a vida todo episódio, também é só criar um gancho para retomar a história. É realmente difícil imaginar a série continuando com os personagens adultos, mesmo que eu particularmente considere a ideia bem legal.
Não há muitos detalhes técnicos para analisar na animação. Obviamente, apesar de manter o estilo, eles suavizaram o traço e deixaram elementos mais coloridos e em 3D no cenário, tornando o visual da animação mais vistoso ao longo dos anos. Mas o único aspecto que realmente é técnico e novo do especial é o roteiro, muito bem escrito. É difícil tirar algo novo de uma animação de quase 25 anos, ainda mais quando a série se marcou como politicamente incorreta e inimiga da opinião pública. Por isso, o trabalho de atualização das piadas e do roteiro foi genial.
A piada com a positividade hipócrita do "novo normal", quando os valores capitalistas e de sociedade apontam para o acirramento do individualismo e crise, combinou muito bem com South Park. Isso por um detalhe: em South Park sempre teve neve. Para viver em um centro urbano com essa condição climática, segundo especialistas, você precisa ter um kit neve, composto por gorro, cachecol, luva, bota, capote e lenço de papel. Sem esse kit, você está absolutamente desprotegido e corre sérios riscos de ficar doente constantemente.
Esse kit neve dá desconforto e leva um tempo para se adaptar, parecido com a Covid. Aos poucos, você se acostuma com o kit. Não por ser agradável, mas por te dar segurança. Rapidamente, neste caso, nós, que vivemos em um país tropical, entramos em uma rotina de "novo normal". Mas em South Park, isso sempre foi o "normal", e nunca foi muito agradável.
O que foi proposto em primeiro momento foi um kit Covid. Um kit de segurança, com máscara, álcool em gel, mais contidos, como se estivéssemos no frio. Guardando certa distância, talvez com luvas e, de certa forma, nos primeiros dias, vamos achar tudo muito estranho, mas a garantia da segurança de que não vamos ficar doentes e não transmitiremos doenças fará com que assimilemos esse kit de uma forma indolor. Ou seja, entraremos em um novo padrão de normalidade.
Porém, transformar isso em um processo "feliz", tranquilo e rápido, foi uma falácia construída pela mídia e pelo jornalismo para vender notícias ao longo da pandemia, levando a um padrão questionável de defesa do "científico". Devemos respeitar a pandemia e quarentena, tomar vacina mas ao mesmo tempo estar sempre prontos para a "reabertura" e ter atitudes felizes? Mesmo com pessoas morrendo?! É muita hipocrisia, e isso foi bem capturado por South Park, mas sem pânico moral. Com calma e simples a série só jogou um detalhe: a pandemia pode durar 30 anos e acabou! Ninguém pode fazer nada. E vamos dizer paras as crianças que é mais feliz assim e tudo vai melhorar, mas se elas não estiverem felizes a culpa é delas?
De certa forma, o retorno se South Park dialoga muito com o filme "Não Olhe Para Cima", pois se ao mesmo tempo está claro uma situação de crise, que mata pessoas e pode, na visão do filme, matar toda a sociedade; a atitude histérica de denuncia (ao estilo Kyle) ou a postura pacificadora e neutralidade (ao estilo Cartman) alteram a importância relativa dos fatos? A ciência não é feita nem na mera denúncia do problema ou da crise, e nem mesmo a solução está em ignorar o problema e a crise. A ciência só pode então estar na solução do paradigma em questão, na sua superação até surgirem novas pautas. Mas como fazer isso quando o critério para entrar em uma pós graduação é que o seu orientador saiba sobre aquilo que você quer pesquisar, ou seja, que você se inspire naquilo que já se é estudado pelo sistema e pesquisas vigentes?
Incluir a pandemia de maneira total a narrativa da animação também parece ter sido difícil, pois obviamente a série não poderia ser anticientífica e nem pesar nas piadas para não brincar com a morte de pessoas. Também em brincar com o politicamente correto de uma maneira ofensiva, não o atacando, mas sim mostrando como ser sempre correto, na prática, as vezes é impossível. E eles conseguiram, pois as piadas por serem mais contextualizadas tem mais graça. Ainda há algumas bobagens escatológicas, afinal é uma animação e por isso deve haver alguns elementos juvenis. Mas de maneira geral Post Covid foi uma evolução grande para South Park, assumindo pela primeira vez alguma posição em relação a trama da série. Como disse, pode desagradar a muitos mas na atualidade, considero que todas as mudanças e resultados foram mais do que aceitos: foram necessários!
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