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Os Desajustados (The Misfits, 1961): Um faroeste com Marilyn Monroe e Clark Gable sobre imperfeição da obra do artista e o fim fantasmagórico da Era de Ouro do Cinema Americano


The Misfits é um caso onde a arte imita a vida. Dirigido por John Huston, com roteiro de Arthur Miller, sobre uma recém divorciada, um velho cowboy e um viúvo se encontram em Reno, Nevada, e são levados a um mundo de aventuras pelos rodeios e interior dos Estados Unidos. Apesar do evidente fracasso de todos, tudo estava bem. Até a divorciada Roslyn se chocar com a crueldade com os cavalos em sua captura o que a deixa questionando todo aquele modo de vida. O filme ficou muito tempo desconhecido do grande público, até ser redescoberto nos anos 80 com o relançamento em VHS, tornando-se um clássico cult, inspirando até mesmo o nome da banda punk, The Misfits


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A ideia de "os desajustados" é uma analogia da própria vida dos astros do filme. A mulher, personagem de Marilyn Monroe, que é a principal protagonista e heroína da trama, Gable e os outros são apenas resquícios de modos de vida já perdidos, da Hollywood dos westerns perdidos. A metáfora de caçar cavalos envolve em alguma extensão o paradigma da violência e crueldade com os animais.


Filmado no deserto de Nevada, possui um fotografia única em preto e branco feita por Russell Metty, que ganhou o Oscar de melhor fotografia por Spartacus (1960). Chegam a dizer que a sensação do filme faz parecer que estamos vendo os atores envelhecendo em tempo real. O filme usa suas imperfeições como uma forma de documentário narrativo do fim de um era do cinema. 


Entre algumas opiniões, é falado que o filme é "estranho" e que seu carácter de obra prima foi quase feito por acidente devido ao clima pesado de suas filmagens, onde diversos membros do casting eram conhecidos do público. Havia um apelo de bilheteria que não foi aproveitado devido a falta de divulgação geral do filme. Por exemplo, apenas em agosto de 2018, uma cena de nudez não lançada onde Marilyn Monroe encena fazer amor com Gable, foi descoberta.


O filme foi acusado de utilizar da biografia dos atores, para fazer um cast simulando os mesmos problemas deles na vida real como forma de apelação por parte da audiência. O filme foi baseado em uma peça de teatro do marido na época de Marilyn Monroe, Arthur Miller, seu marido de quem estava se separando, como uma metáfora do real. Marilyn interpreta uma mulher triste, mas que tinha como essência o talento para disfarçar isso e "animar as tropas" apesar de tudo. A mensagem nacionalista de roadie movie e de pessoas perdidas no tempo, demonstram um tipo de réquiem, tanto para o casamento de Marilyn com Arthur que já não se sustentava, como para o fim da carreira de todos que trabalharam no filme.


No livro Cinematographic Imperfection (cinematografia da imperfeição): The Art of Life in Film, é mostrado que os aspectos dos bastidores e da vida real dos atores foram traduzidas e incorporadas como linguagem na estrutura do filme. Várias tragédias também circundam a atmosfera do filme. Como os problemas de saúde de Clark Gable e da própria Marilyn Monroe. 


Isso é traduzido na própria estética do filme, que produz uma reflexão metalinguística de ser um clássico que retrata três famosos atores de Hollywood e dirigido por um diretor que faz sempre grandes épicos de faroeste, sendo um grande ambientador artístico. Possuindo e seu portfólio filmes como O Tesouro da Sierra Madre (1948), The Asphalt Julle (1950), O Falcão Maltes (1941). Sendo conhecido como um diretor da era clássica de Hollywood. NA época da Segunda Guerra, John Huston era capitão e fazia filmes para o exército americano, tendo recebido uma medalha de honra na época. Kate Beetham, por exemplo escreveu que a carreira de Monroe começou com uma reputação não confiável, e por boatos de doenças e problemas pessoais que chamavam a atenção da mídia.



Os três tinham muitos problemas na vida pessoal. Clark Gable que interpreta um pai desonrado pelos filhos e um cowboy que vive de lançar cavalos,  deu sua última aparição, morrendo pouco tempo depois das filmagens terminarem. A profissão de cowboy e a produção de western tipos de filme foi diminuída depois da era de ouro de Hollywood. O que significa que para alguns atores esses tipos de atuação não existiriam mais. Isso que torna o filme tão singular. 


Marilyn Monroe interpreta Roslyn, uma antiga dançarina de um clube do leste. Ela chega em Reno, Nevada para assinar os papeis de seu divórcio. Ela possui uma personalidade melancólica e derrotista, algo que contrasta constantemente com sua juventude e beleza, fazendo com que as pessoas não entendam ao certo o motivo de sua infelicidade com a vida.



Ela explica para Isabelle Steerssua amiga e confidente, como foi desastroso seu casamento. A amiga é interpretada por Thelma Ritter, outra veterana do cinema da Era de Ouro. 





Em Reno, Nevada, Roslyn Tabor, ex dançarina, está de passagem para preencher os documentos de seu divórcio com seu ex marido, que não lhe dava atenção. No filme, sua amiga tenta treiná-la para ser forte e não aceitar reconciliação com ele. O filme brinca que para Roslyn (Marilyn Monroe) as relações eram efêmeras e que todos os homens acabavam por abandoná-la algum dia, por sua alma "triste". 





Sendo uma atriz experiente, ela tenta treinar Roslyn para conseguir ser forte na hora de assinar os papeis, o que é a primeira cena onde vemos a personagem de Marilyn. Ela diz para Thelma que enquanto estava casada com seu último marido, mesmo presente, ele nunca "não estava lá." 





Depois disso, Isabelle leva ela para tomar drinks, depois ela conhece um cowboy chamado Gaylord (Gable) e seu amigo caminhoneiro Guido (Eli Wallach). O grupo parte para a casa antiga de Guido, que era desajustado também por ter perdido sua esposa, e por isso não conseguir mais morar na sua própria casa. 





Depois disso, Roslyn e Gay se mudam para a casa meio pronta, é aí que Gay conta para Roslyn que seus filhos o renegam e que ele não os vê há anos. É nessa hora inicial que Gay cultiva alface em casa, mas que os coelhos estão comendo. 



Nessa hora Gay se prepara para matá-los, o que faz Roslyn ficar desesperada. Ela parece retratar o tipo de ambientalismo cosmopolita democrata, senso comum do politicamente correto, o tipo avesso ao estilo western de Gay, sulista convicto. 




Eventualmente eles acabam morando juntos na antiga casa de Guido. Quando Guido e Isabelle aparecem, Gay fala que eles deveriam vender os cavalos em um rodeo local em Dayton e contratam um terceiro homem, Perce Howland, amigo de Gay que quer competir no rodeo e é ajudado por ele com $10 dólares. 




Temos um plot essencialmente americano, herdeiros do western. No rodeio, o amigo de Gay se machuca muito, mas por orgulho masculino continua no torneio. Todos dizem para Roslyn que é assim mesmo, que não é para se preocupar, mas ela insiste em ser frágil e acaba protestando contra aquele universo masculino e de crueldade com os animais, o que corta a diversão de todos. O filme ainda quer questionar quem está certo, se é a cultura cosmopolita de Roslyn ou os hábitos western americanos do grupo dos homens desajustados da narrativa?




No rodeio, Guido conta para Roslyn que os cavalos são estimulados com um cinto preso para irritá-los de propósito. Perce cai do cavalo e Roslyn implora pra levar ele para um hospital, mas ele insiste em voltar ao touro pois ele já tinha pago sua entrada. Ele cai novamente e fica com a cabeça machucada. Depois ele chora para Roslyn dizendo que nunca tinha chorado perante ninguém antes. Aí que Gay bêbado propõe para Roslyn que ele conhecesse seus filhos, dizendo que eles estavam bem ali. Depois percebemos que ou os filhos dele saíram por vergonha do pai, ou que é apenas obra de sua cabeça por estar bêbado, causando uma cena pública buscando fantasmas de um passado perdido. 





Depois disso, vemos Gay perguntando para Roslyn se ela queria ter um filho com ele, ela evite responder. Em uma parte do roteiro que pode ser uma pista da vida real entre Marilyn e Arthur. Ela havia passado por vários abortos e ele estava traindo ela com uma profissional de fotografia do filme. 


Por isso o clima de "guerra", conflito, acidentes de trabalho e bebedeira que o filme possui. Alguns críticos também apontam o fato da recusa de Clark Gable em utilizar dublê na cena onde ele doma um cavalo quer ajudado a ele ter sofrido um acidente grave no estúdio, sofrendo um infarto dois dias seguintes ao término das filmagens, onde muitos questionam os esforços das filmagens não agravaram seu quadro.   


No dia seguinte, Gay, Guido e Perce vão atrás dos cavalos, mesmo Roslyn se sentindo muito mal com isso. Depois de laçar um garanhão e 4 potrinhos, Roslyn fica chateada quando entende que os animais vão ser mortos depois de vendidos, provavelmente para virar ração de cachorro. Fato que é discutido no filme quando Gay fala para Roslyn que aquilo que ela compra para o cachorro deles é de fato a carne de cavalo que estar nas latinhas para qualquer um comprar. Roslyn implica para ele libertar os cavalos, pois não haveria motivo para apenas vender um punhado, o lucro seria muito ponto, como apontado pelos amigos. 



Roslyn, pedindo tanto pela vida dos cavalos, chega querer pagar 200 dólares apenas para não ver aquilo, mostrando que ela tinha mais dinheiro que Gay, o que o deixa chateado. É aí que Guido oferece fugir com Roslyn, ela se recusa, afinal além de ser um falta de caráter do amigo, seria outra prisão para ela. 


Perce quer libertar os cavalos junto com Roslyn. Eles libertam os cavalos por fim, e Gay, apenas para provar que poderiam dominar os cavalos, laça um deles novamente e o domina "na unha", se machucando muito no processo. Mas por fim, ele solta o cavalo, mostrando que na sua visão ninguém queria mais fazer aquilo, eram apenas ossos do ofício. Nessa cena, "laçar o cavalo" parece uma metáfora para o relacionamento de Gay e Roslyn. Ela diz que vai embora no dia seguinte, mas no fim aparecem no caminhão ainda juntos em uma última cena mostrando que eles ainda se gostam e que ficam juntos apesar de suas diferenças e imperfeições, afinal ambos são "desajustados".  



Na cena ela que ela briga com todos os homens por quererem agir como durões o tempo todo, o Roslyn corre no meio deserto e grita: "Vocês estão todos mortos, vocês estão todos mortos". Essa é uma das cenas mais poderosas do filme pelo seu carácter fantasmagórico, um ícone para a história do cinema. Em um momento de protesto puro contra os homens em sua volta, a cena ecoa pela expressividade e por ir direto ao ponto na crítica ao maus-tratos aos animais. 




Não sabemos se ela está falando sobre Gable, Wallach ou para o mundo todo, como uma forma de protesto contra a morte de animais para caça, um dos temas polêmicos que o filme retrata envolvendo essa questão do debate entre Roslyn, uma mulher frágil que não suportava violência e que vivia deprimida, com a vida de um cowboy renegado pelos filhos e que não quer ter um "salário fixo" para não ser "escravo" de ninguém.


Fato referenciado no filme quando ele diz que "qualquer trabalho é melhor que salário fixo" em uma referência ao debate sobre sindicalização e profissionalização. De certa maneira, o filme foi sintomático para o tipo de mudança na perspectiva dos filmes clássicos de western, que passaram de temática mais pesadas e dramáticas, para cada vez mais seguirem em direção ao gênero do "bang-bang".


Alguns dizem que esse filme parecia a vida real pois parecia um filme réquiem em torno do fim do casamento do dramaturgo Arthur Miller e a própria Marilyn, que estava sendo traída por ele, com uma diretora de fotografia. Nos relatos posteriores dos inúmeros livros e explicações em torno do filme, sempre descreveram por isso essa "falta de compromisso" de Marilyn durante as filmagens. Mas na verdade, essa crítica é um pouco invejosa e sexista, sendo uma acusação comum a mulheres atrizes, a acusação de frivolidade descontrole. Mas para quem vê o filme, Marilyn é a que mais brilha na tela.


Por curiosidade, a banda punk, The Misfits, formados em 1977 em Lodi, Nova Jersey, por Glenn Danzig, nomeou seu novo grupo em homenagem ao último filme de atriz Marilyn Monroe.



Sendo o cinema uma ficção, não é incomum a famosa reflexão do ovo e da galinha. Ou seja, a vida imita arte, ou a arte imita a vida? A pergunta fica em algumas obras que possuem uma mágica  adicional por conta da biografia e da vida dos envolvidos. 


As falhas da biografia dos artistas serve como o elemento mais real que facilita o entendimento sobre a eternização e documentação de uma época. A degradação de ter que capturar os cavalos, como a degradação dos próprios animais, é uma metáfora do que os artistas daquele ciclo tinham que aceitar agora para continuarem "vivos" na indústria. O que mais marca Os Desajustados é ele ser o "último dos moicanos", o símbolo do final de uma era de ouro, que estava ruindo dentro de seus próprios dogmas e preconceitos, deixando um ar de despedida de um tempo e um estilo, de se fazer arte e viver, que nunca mais seria o mesmo. 






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