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O Gabinete do Dr. Caligari (1920): O labirinto mental como metáfora do autoritarismo em filme que é marco do expressionismo




O filme é contado em flashback por Francis, um homem perturbado que narra os eventos ocorridos na pequena cidade de Holstenwall. Ele recorda a chegada do misterioso Dr. Caligari, dono de um espetáculo de feira que exibe um sonâmbulo chamado Cesare, capaz de prever o futuro. Logo após a exibição, uma série de assassinatos começa a acontecer, onde Francis suspeita que Caligari esteja controlando Cesare para cometer os crimes durante o sono. A busca pela verdade culmina em uma reviravolta.

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A Alemanha de 1920 vivia um colapso político, econômico e moral. A derrota na guerra, o Tratado de Versalhes e o caos da República de Weimar criaram um ambiente de ansiedade coletiva, em que a população sentia-se manipulada e impotente.


O expressionismo, tanto nas artes plásticas quanto no cinema, refletia esse sentimento de distorção e alienação: mundos tortos, sombras densas e perspectivas impossíveis representavam não o real, mas o psicológico. 

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Os cenários de Caligari são pintados à mão. Ruas inclinadas, janelas em ângulos impossíveis, sombras desenhadas nas paredes-, tudo remetendo a um mundo mental, não físico. É o primeiro filme a tornar o cenário uma projeção da mente dos personagens, especialmente a de Francis, o narrador.


Dirigido por Robert Wiene e lançado em 1920, Das Cabinet des Dr. Caligari não é apenas um dos primeiros grandes filmes de terror — é uma das primeiras manifestações do cinema como forma de arte simbólica e psicológica. Produzido na Alemanha devastada pela Primeira Guerra Mundial, o filme é frequentemente citado como a origem do expressionismo cinematográfico, movimento que deformava a realidade para revelar verdades internas e subjetivas.


O Dr. Caligari simboliza o poder opressor, o Estado ou o líder autoritário que domina mentes e vontades. Cesare, o sonâmbulo, é a metáfora do povo que age sem consciência, obedecendo ordens sem questionar. Muitos estudiosos interpretam o filme como uma prefiguração do totalitarismo que emergiria na Alemanha nas décadas seguintes. O manicômio, a figura do médico e o tema da insanidade refletem uma crítica à ciência como instrumento de controle. O filme questiona: quem é realmente louco — o internado ou aquele que define a sanidade?


A leitura padrão nos leva a questionar todo o filme dado a sua virada final e a revelação de que Francis era um interno do manicômio. Porém, a leitura que proponho é que tudo está conectado e a visão de Caligari como um hipnotizador é pelo motivo de ele ter as "marionetes sob seus cordões". Ele define quem é locou, possui autoridade para isso. Mas se for ele mesmo um louco? Um sádico que gosta de controlar as pessoas? 

Em outras palavras, apesar do encerramento ser revelador e gerar uma quebra na narrativa, as condições da confabulação de Francis são muito elaboradas, explícitas, para serem pura imaginação. A ideia é que a alucinação nos dá pistas da realidade, afinal no mundo atual manicômios quase não existem mais. Segundo Steven Ray Schneider, no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, o final do filme enfraquece seu tom antiautoritarista, uma vez que "ao revelar que sua perspectiva expressionista é a de um louco, o filme poderia até agradar a conservadores que consideram loucura toda a arte moderna." Para provar que não é exatamente isso é preciso recorrer a um fator importante: a História.


 O Gabinete do Dr. Caligari foi escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer, ambos pacifistas quando se conheceram após a Primeira Guerra Mundial. Janowitz serviu como oficial durante a guerra, mas a experiência o deixou amargurado com os militares, o que afetou sua escrita. Mayer fingiu loucura para evitar o serviço militar durante a guerra, o que o levou a exames intensos de um psiquiatra militar. A experiência o deixou desconfiado da autoridade, e o psiquiatra serviu de modelo para o personagem Caligari. Janowitz e Mayer foram apresentados em junho de 1918 por um amigo em comum, o ator Ernst Deutsch. 

Ambos os escritores estavam sem dinheiro na época. Gilda Langer, uma atriz por quem Mayer estava apaixonado, encorajou Janowitz e Mayer a escreverem um filme juntos. Mais tarde, ela se tornou a base para o personagem Jane. Langer também encorajou Janowitz a visitar uma cartomante, que previu que Janowitz sobreviveria ao serviço militar durante a guerra, mas Langer morreria. Essa previsão se provou verdadeira, pois Langer morreu inesperadamente em 1920, aos 23 anos, e Janowitz disse que inspirou a cena em que Cesare prevê a morte de Alan na feira.

Embora nenhum dos dois tivesse qualquer associação com a indústria cinematográfica, Janowitz e Mayer escreveram um roteiro ao longo de seis semanas durante o inverno de 1918-19. Ao descrever seus papéis, Janowitz se autodenominou “o pai que plantou a semente” e Mayer “a mãe que a concebeu e amadureceu”. O cineasta expressionista Paul Wegener estava entre suas influências.


A história foi parcialmente inspirada por um espetáculo de circo que os dois visitaram na Kantstrasse, em Berlim, chamado “Homem ou Máquina?”, no qual um homem realizava feitos de grande força após ser hipnotizado. Eles visualizaram pela primeira vez a história de Caligari na noite daquele show.

Várias experiências passadas de Janowitz influenciaram sua escrita, incluindo memórias de sua cidade natal, Praga, e, como ele disse, uma desconfiança do “poder autoritário de um estado desumano enlouquecido” devido ao seu serviço militar. Janowitz também acreditava ter testemunhado um assassinato em 1913, perto de um parque de diversões na Reeperbahn de Hamburgo, ao lado do Holstenwall, o que serviu como outra inspiração para o roteiro.


De acordo com Janowitz, ele observou uma mulher desaparecer em alguns arbustos, de onde um homem de aparência respeitável emergiu alguns momentos depois. No dia seguinte, Janowitz soube que a garota havia sido assassinada. Holstenwall mais tarde se tornou o nome da cidade no filme Caligari.


Janowitz e Mayer decidiram escrever uma história denunciando a autoridade arbitrária como brutal e insana. Janowitz afirmou que só anos depois do lançamento do filme percebeu que expor o “poder autoritário de um estado desumano” era a “intenção subconsciente” dos escritores. Hermann Warm, que projetou os cenários do filme, disse que Mayer não tinha intenções políticas quando escreveu a história.


O historiador de cinema David Robinson observou que Janowitz não se referiu a intenções antiautoritárias no roteiro até muitas décadas depois do lançamento de Caligari, e sugeriu que sua lembrança pode ter mudado em resposta a interpretações posteriores do filme.


O filme que eles escreveram foi intitulado Das Cabinet des Dr. Caligari, usando a grafia inglesa Cabinet em vez da alemã Kabinett. O roteiro completo continha 141 cenas.


Janowitz afirmou que o nome Caligari — que não foi definido até depois que o roteiro foi concluído — foi inspirado por um livro raro chamado Cartas Desconhecidas de Stendhal, que continha uma carta do romancista francês Stendhal referindo-se a um oficial francês chamado Caligari que ele conheceu no teatro La Scala, em Milão. No entanto, não existe nenhum registro de tal carta, e o historiador de cinema John D. Barlow sugeriu que Janowitz pode ter inventado essa história.


A aparência física de Caligari foi inspirada em retratos do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. O nome do personagem é escrito Calligaris no único roteiro sobrevivente conhecido, embora em alguns casos o “s” final seja removido. Outros nomes de personagens também aparecem de forma diferente do filme final: Cesare surge como Caesare, Alan é Allan ou às vezes Alland, e Dr. Olsen é Dr. Olfens. Da mesma forma, personagens sem nome no filme final têm nomes no roteiro, incluindo o escrivão da cidade (“Dr. Lüders”) e o arrombador de casas (“Jakob Straat”).


Em "De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão” (1947), Siegfried Kracauer interpreta Caligari como um reflexo do inconsciente coletivo alemão após a Primeira Guerra Mundial. Ele via o filme como um prenúncio do autoritarismo que culminaria no nazismo:


“Desde o início, o cinema alemão continha dinamite… O caos se espalhou na Alemanha de 1918 a 1923, e, como consequência, a mente alemã, em pânico, se libertou de todas as convenções que normalmente limitam a vida. Nessas condições, a alma infeliz e sem lar imaginou os loucos, sonâmbulos, vampiros e assassinos que assombravam os cenários expressionistas do filme Caligari e de seus semelhantes.”


“Caligari é uma premonição muito específica… Ele usa o poder hipnótico para impor sua vontade sobre sua ferramenta — uma técnica que antecipa, em contexto e propósito, a manipulação da alma que Hitler foi o primeiro a praticar em larga escala.”


Já no livro “Cinema de Choque: a cultura de Weimar e as feridas da guerra” (2009), Anton Kaes interpreta Caligari como um filme do trauma, uma resposta simbólica ao sofrimento coletivo da Alemanha pós-guerra. Em vez de focar apenas no aspecto político, ele mostra que o expressionismo visual do filme traduz o transtorno psicológico de uma nação traumatizada. O uso de cenários distorcidos e ângulos impossíveis reflete a psicologia de um país que perdeu o senso de realidade, o que torna a narrativa do filme uma representação visual do colapso mental coletivo: “O trauma da guerra assombrava os filmes da República de Weimar… Obras-primas como O Gabinete do Dr. Caligari enfrentaram a guerra e registraram suas trágicas consequências.”


Em resumo, apesar das diferentes visões, a estrutura e a linguagem do filme foram revolucionárias. Um narrador insano que confunde realidade e imaginação. É considerada uma das primeiras representações cinematográficas da mente como labirinto e antecipou o cinema psicológico de Hitchcock, Lynch e Aronofsky.


Entretanto, é consenso que o maior destaque de Dr. Caligari é sua estética. A ideia de usar as sombras e ângulos irrealistas do expressionismo para representar um estado da mente, do animo e das emoções, é único. É um dos primeiros filmes a trazer para o mundo do Cinema a ideia do "ponto de vista" como chave da narrativa. 

Um marco do cinema, que para além de um filme é um documento, uma fonte histórica de como era o mundo entre as duas guerras mundiais.

Curiosidades do filme


Os cenários do filme não foram construídos de forma realista, mas pintados à mão em grandes telas de pano. As ruas, portas e janelas foram desenhadas com linhas angulosas e sombras pintadas, criando uma sensação de distorção e pesadelo. O diretor artístico Hermann Warm e os pintores Walter Röhrig e Walter Reimann, ligados ao movimento expressionista, acreditavam que o mundo de Caligari deveria representar visualmente a loucura — não apenas ilustrá-la. Essa foi uma das primeiras vezes que o espaço fílmico expressava o estado psicológico dos personagens, em vez de apenas contextualizá-los.


Por limitações orçamentárias e também por coerência estética, o filme foi rodado inteiramente em estúdio, no Lichtspielhaus Weissensee, em Berlim. Não há cenas externas reais. Isso acidentalmente ajudou o filme a ter uma atmosfera claustrofóbica e onírica, como se toda a narrativa se passasse dentro da mente de alguém, algo que dialoga com o final ambíguo, onde a sanidade do narrador é posta em dúvida.

Como os estúdios da época tinham iluminação limitada, a equipe resolveu pintar as sombras diretamente nos cenários. Em vez de projetar luz e sombra reais, os artistas criaram a ilusão de profundidade com pinceladas pretas e cinzentas, o que deu ao filme uma aparência teatral e, paradoxalmente, mais intensa. Esse método seria mais tarde visto como precursor da estética expressionista no cinema e influenciaria cineastas como Fritz Lang e Tim Burton.


O personagem Cesare, o sonâmbulo, é interpretado por Conrad Veidt, um ator com enorme controle corporal. Para algumas cenas, ele ficava imóvel por longos períodos, de olhos abertos, respirando de forma quase imperceptível, o que dava ao personagem uma aura hipnótica e inumana. Veidt posteriormente se tornaria famoso em Hollywood, interpretando o major Strasser em Casablanca (1942).

Os roteiristas Carl Mayer e Hans Janowitz queriam que o filme fosse uma crítica direta à autoridade e ao autoritarismo, simbolizados na figura de Caligari. No entanto, o produtor Erich Pommer e a distribuidora Decla-Bioscop temeram a censura e o impacto político, e pediram um final em moldura, no qual se revela que toda a história pode ser apenas um delírio de um paciente de asilo.


Essa mudança transformou a obra de uma crítica política em uma reflexão sobre loucura e percepção da realidade o que, ironicamente, a tornou ainda mais ambígua e influente.


O orçamento era tão baixo que a equipe precisou improvisar quase tudo. As roupas dos personagens foram reutilizadas de outros filmes, os cenários foram feitos com papelão pintado, e as cadeiras de “madeira” eram na verdade pinturas bidimensionais. Mesmo assim, a estética resultante se tornou uma das mais icônicas da história do cinema.


O resultado é um universo visual sem precedentes: não um espaço real, mas um mundo psíquico projetado na tela.


Curiosamente, o título foi escrito como Das Cabinet des Dr. Caligari, usando a palavra inglesa “Cabinet” em vez da alemã “Kabinett”. Ninguém sabe ao certo o motivo, mas acredita-se que tenha sido uma decisão de marketing para facilitar a venda internacional do filme.


O episódio que inspirou o roteiro


Janowitz dizia ter testemunhado um assassinato misterioso em 1913, perto de um parque de diversões em Hamburgo, próximo a uma rua chamada Holstenwall (nome que mais tarde batizaria a cidade fictícia do filme).


Ele afirmou ter visto uma mulher entrar num matagal, seguida por um homem de aparência respeitável e, no dia seguinte, descobriu que a moça havia sido morta. Esse episódio real, segundo ele, foi o germe do enredo: um crime cometido sob aparência de normalidade, como se a loucura e o horror estivessem escondidos sob o cotidiano.

Uma metáfora nascida da desconfiança


Os dois roteiristas decidiram criar uma história sobre autoridade e manipulação, ambientada num mundo distorcido. Janowitz chegou a dizer que “Caligari representa a tirania que governa os homens”, enquanto Cesare encarna a obediência cega.


Curiosamente, eles só perceberam anos depois que estavam antecipando as futuras estruturas de poder da Alemanha — uma intuição inconsciente de seu tempo.


Uma revolução estética nascida da escassez


A Alemanha vivia um momento de colapso econômico após a Primeira Guerra. Faltavam recursos para filmar em locações ou construir cenários realistas.


A solução, de pintar tudo, foi tanto um gesto artístico quanto uma necessidade prática.


Assim, Caligari é também um produto da crise: um filme que fez da falta de dinheiro uma virtude estética, transformando restrição em arte.


O final alterado e a mensagem distorcida


O roteiro original terminava com o Dr. Caligari sendo preso como criminoso, uma clara crítica à autoridade.


Mas os produtores acharam o final “perigoso” e pediram que o diretor acrescentasse uma moldura narrativa, onde o prólogo e o epílogo em que Francis aparece num manicômio, revelando ser ele o louco.


Esse novo final inverte o sentido da história: a denúncia do autoritarismo vira uma alucinação individual.


Janowitz ficou furioso, afirmando que haviam transformado sua alegoria política em uma história sobre a loucura de um homem, e não de um sistema.


O impacto na cultura alemã e no cinema mundial


O Gabinete do Dr. Caligari foi um sucesso de crítica e bilheteria, mesmo sendo estranho e desafiador. Ele inaugurou o cinema expressionista alemão, que influenciaria obras como Nosferatu (1922) e Metrópolis (1927).


Hollywood absorveu rapidamente essa estética: sombras longas, ângulos inclinados e temas de loucura e poder tornaram-se marca registrada do filme noir dos anos 40 e 50.


O nome “Caligari” é um enigma


Janowitz afirmou que o nome veio de uma carta de Stendhal que mencionava um “oficial francês chamado Caligari”, mas nunca se encontrou tal documento.]


Alguns estudiosos acreditam que ele tenha inventado a origem para dar um toque de mistério.


Curiosamente, o nome soa tanto italiano quanto sinistro, evocando a tradição dos mágicos e charlatões de feira — reforçando a ambiguidade entre ciência e feitiçaria.


Loucura, autoridade e o século XX


O filme ecoa a desconfiança crescente diante da psiquiatria e das instituições disciplinares — um tema que seria explorado décadas depois por Michel Foucault em História da Loucura.


O manicômio de Caligari é o embrião cinematográfico do controle social moderno: um lugar onde quem define a loucura é justamente o louco que tem o poder.


O legado


Mais de um século depois, O Gabinete do Dr. Caligari continua sendo uma referência obrigatória. É citado por diretores como Tim Burton, David Lynch, Terry Gilliam e Guillermo del Toro. Seu estilo, ao mesmo tempo teatral e onírico, foi o primeiro a mostrar que o cinema podia representar estados mentais, não apenas realidades externas.


Caligari não é apenas um filme: é um espelho distorcido onde o século XX aprendeu a ver seus próprios fantasmas.


Assista o filme:

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