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Dr. Mabuse (1922): Fritz Lang e o Poder como Hipnose Coletiva




Em meio ao caos econômico e moral da Alemanha pós-Primeira Guerra, o enigmático Dr. Mabuse, um médico, hipnotizador e mestre do disfarce, que manipula a alta sociedade de Berlim, controlando pessoas, jogos e mercados como se fossem peças de um grande experimento. Dividido em duas partes, o épico de Fritz Lang transforma o crime em alegoria da própria desordem de Weimar, onde razão e loucura se confundem e o poder se revela como a mais sofisticada forma de ilusão.


Quando Fritz Lang lançou Dr. Mabuse, der Spieler em 1922, a Alemanha atravessava um dos períodos mais turbulentos de sua história. A Primeira Guerra havia terminado poucos anos antes, deixando o país humilhado pelo Tratado de Versalhes, com a economia em ruínas e uma população desorientada. A República de Weimar, recém-fundada, tentava se consolidar entre extremos políticos, inflação galopante e uma atmosfera de desconfiança generalizada. 


É nesse cenário que Lang e a roteirista Thea von Harbou concebem a figura de Dr. Mabuse, não apenas um vilão de ficção, mas um símbolo do próprio espírito de uma época que perdeu o rumo moral e racional.


Dividido em duas partes, o épico de quase cinco horas acompanha o médico e hipnotizador Dr. Mabuse (interpretado por Rudolf Klein-Rogge), um homem de intelecto genial e moral inexistente, que se aproveita da desordem social para construir um império do crime. Ele atua como falsificador, jogador, manipulador de bolsa de valores e mestre do disfarce, explorando a ganância e a decadência de uma elite que, em meio à crise, tenta se agarrar a qualquer promessa de lucro.

A narrativa alterna entre os círculos aristocráticos, os clubes de jogo e os becos sombrios da cidade, criando um retrato quase sociológico de uma Alemanha entregue ao caos moral. A sequência inicial, em que Mabuse rouba documentos confidenciais e sabota transações financeiras, já demonstra o alcance de seu poder: ele não domina apenas indivíduos, mas os próprios mecanismos econômicos que regem o mundo moderno. Lang, que estudava atentamente o impacto da especulação e da manipulação midiática, faz de Mabuse uma metáfora viva do capitalismo especulativo: um “fantasma do dinheiro” que destrói valores e identidades.


Há um motivo pelo qual Fritz Lang dá a Mabuse o poder da hipnose. Em vez da força bruta, o vilão domina as pessoas pela mente, pela sugestão, pelo controle invisível. Isso transforma Dr. Mabuse em um comentário visionário sobre o poder no século XX. O poder que se exerce por meio da psicologia, da propaganda e da manipulação de massas. Décadas antes da ascensão de Goebbels e da maquinaria ideológica do nazismo, Lang já enxergava a sedução do controle mental e coletivo como um perigo real.

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Cada vítima de Mabuse, jogadores viciados, aristocratas falidos, mulheres atraídas pela promessa de luxo; revela uma faceta de uma sociedade vulnerável à sugestão, desejosa de esquecer a própria ruína. O diretor usa a estética expressionista com sutileza: as sombras, os espelhos e as composições angulosas não apenas criam atmosfera, mas expressam a fragmentação da identidade moderna. A cidade é labiríntica, as faces se multiplicam, e nada é inteiramente o que parece.

A força de Dr. Mabuse, o Jogador está em sua dimensão profética. Quando Lang retrata a elite alemã afundada em jogos de azar, é impossível não ver um comentário sobre a própria economia de Weimar, corroída pela inflação e pela especulação desenfreada. Em 1922, o marco alemão já estava praticamente sem valor, e famílias inteiras viam suas economias desaparecerem de um dia para o outro. O cinema de Lang capta essa insegurança com precisão quase documental, mesmo dentro de uma narrativa de ficção.


Os clubes luxuosos e as casas de jogo filmadas em Mabuse são templos da irracionalidade moderna: lugares onde o destino econômico se decide com o giro de uma roleta. Lang filma essas cenas com um olhar quase clínico, alternando planos longos e detalhes expressionistas para mostrar o transe coletivo que transforma o jogo em ritual. Mabuse é, nesse sentido, o sacerdote de uma nova religião: a religião do acaso, do dinheiro e da dominação psicológica, algo que lembra bastante as teorias do sociólogo Simmel.

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A estrutura narrativa, que mistura o suspense policial com o comentário social, revela a ambição de Lang em transformar o cinema em uma forma de reflexão moral. O inspetor von Wenk (Bernhard Goetzke), que tenta desmascarar Mabuse, representa o último resquício de razão e de ordem num mundo à beira do colapso. Mas mesmo ele parece impotente diante da fluidez do inimigo. Mabuse muda de rosto, de voz, de identidade. Como se o mal não tivesse mais um corpo fixo, mas fosse parte orgânica do próprio sistema social.

A perseguição final, em que Mabuse enlouquece cercado por seus próprios fantasmas, tem um significado simbólico profundo. O manipulador, acostumado a dominar a mente alheia, acaba prisioneiro da própria. Lang sugere que o poder absoluto, quando baseado na manipulação e na ilusão, leva inevitavelmente à autodestruição.


Siegfried Kracauer, em seu clássico De Caligari a Hitler (1947), identifica Mabuse como a continuação direta da linhagem inaugurada por O Gabinete do Dr. Caligari. Para o autor, o personagem representa “a figura do tirano invisível”, um símbolo das forças irracionais e autoritárias latentes na sociedade alemã de Weimar. Kracauer vê em Mabuse um presságio da manipulação coletiva que o nazismo realizaria anos depois, um líder que domina não pela força, mas pela hipnose ideológica. Há ainda “mise-en-scène da manipulação”. O autor observa que Lang organiza cada plano de forma a submeter o espectador ao mesmo tipo de controle que Mabuse exerce sobre suas vítimas. A montagem alterna entre planos lentos e longas sequências de hipnose, criando um ritmo hipnótico que faz o público sentir a presença invisível do poder.


Lotte H. Eisner, em A Tela Demoníaca (1952), observa que Lang transforma o expressionismo em algo mais cerebral e moral. Para ela, Mabuse é o retrato de uma inteligência corrompida, “um homem que encarna a dissolução espiritual de uma época”. Eisner nota que Lang substitui o simbolismo fantástico típico do expressionismo por uma crítica racional da decadência moderna, criando um filme que é ao mesmo tempo policial e filosófico. O autor também destaca a destaca a “precisão quase arquitetônica” do cinema de Lang. Ela nota que, embora o filme pertença ao período expressionista, Lang evita o exagero plástico de Caligari, buscando uma composição mais realista, mas igualmente simbólica. Segundo Eisner, Dr. Mabuse é o ponto em que o expressionismo “abandona o delírio pictórico e se transforma em geometria moral”: as linhas retas, os enquadramentos simétricos e os jogos de espelhos refletem a ideia de um mundo racionalizado e, ao mesmo tempo, aprisionado.


Thomas Elsaesser, um dos principais estudiosos do cinema de Weimar, afirma que Dr. Mabuse marca a passagem do cinema expressionista para um cinema de poder e controle. Em seus ensaios sobre Lang, Elsaesser argumenta que o diretor já intuía a fusão entre psicologia, política e espetáculo de massa, temas que se tornariam centrais no século XX. Para ele, “Mabuse é o primeiro vilão moderno do cinema, porque entende o mundo como um sistema de manipulação.” O autor também observa que Lang introduz aqui uma “narrativa de rede”, em que múltiplas tramas e identidades se entrelaçam — um conceito que influenciaria o cinema moderno. Ele destaca a habilidade de Lang em alternar entre grandes panoramas e detalhes mínimos (como cartas, olhares e gestos de mão), reforçando a noção de um sistema social em que tudo está interligado.


Eric Rentschler, em The Ministry of Illusion (1996), interpreta o filme como uma metáfora da própria indústria cultural alemã do período. Ele observa que Mabuse “opera como um diretor de cinema dentro do enredo”, encenando identidades e controlando o olhar alheio, uma leitura que aproxima o personagem da própria figura de Fritz Lang, um cineasta obcecado por controle e mise-en-scène.


David Kalat, autor de The Strange Case of Dr. Mabuse: A Study of the Twelve Films and Five Novels, considera o personagem um precursor do arquétipo do “gênio do mal” que dominaria a cultura popular. Para Kalat, o fascínio de Lang pelo controle mental antecipa não apenas o totalitarismo, mas também o papel da mídia e da propaganda no século XX.


Jean Tulard, historiador do cinema francês, destaca a dimensão moral do filme: “Mabuse é o espelho deformante da modernidade. Ele não é um monstro isolado, mas o produto lógico de um mundo em que tudo, até a consciência, se tornou moeda de troca.”


Anton Kaes, pesquisador do cinema alemão, descreve Dr. Mabuse como um “filme sobre o olhar”. Ele analisa o uso recorrente de olhos, binóculos, lupas e janelas como motivos visuais, mostrando que Lang constrói uma estética da vigilância muito antes de ela se tornar tema político. Para Kaes, “Mabuse é o primeiro vilão da modernidade a controlar o mundo pela visão — e Lang, o primeiro cineasta a transformar o ato de olhar em forma de poder.”


Raymond Durgnat, crítico britânico, ressalta o domínio técnico de Lang sobre a montagem e a iluminação. Durgnat compara o filme a uma “sinfonia do controle visual”, em que a alternância de luz e sombra funciona como extensão psicológica do enredo. Ele vê em Mabuse o embrião do estilo noir: o jogo de contrastes, a narrativa fragmentada e o protagonista dominado por forças invisíveis.


Dr. Mabuse, o Jogador não é apenas uma narrativa sobre o crime, mas uma parábola sobre a fragilidade da civilização moderna. Quando Lang retomou o personagem em O Testamento do Dr. Mabuse (1933), o mundo já estava à beira do totalitarismo, e a figura do vilão tornou-se explicitamente associada ao nazismo. Hitler e Goebbels chegaram a proibir o filme, percebendo nele uma crítica direta ao regime. Assim, o Mabuse de 1922 antecipa não só a era dos ditadores, mas também o controle midiático e psicológico que marcaria o século XX.


Hoje, o filme pode ser visto como o elo entre o expressionismo e o cinema noir, entre o teatro de sombras e a paranoia moderna. Fritz Lang antecipa toda uma linhagem de anti-heróis e vilões intelectuais, de Blofeld em James Bond a Hannibal Lecter e o Coringa contemporâneo. Mas o seu verdadeiro tema permanece mais profundo: a forma como o poder se disfarça de racionalidade e como a própria sociedade, fascinada pela figura do manipulador, acaba cúmplice do seu domínio.

Curiosidades e bastidores do filme 


Adaptação literária: O filme é baseado no romance Dr. Mabuse, der Spieler (1921), de Norbert Jacques, publicado com enorme sucesso na Alemanha. O autor criou Mabuse inspirado em figuras reais de hipnotizadores e charlatães da época, mas também em especuladores financeiros e políticos que exploravam o caos de Weimar.


Produção monumental: Com quase cinco horas de duração (em duas partes: O Grande Jogador: Retrato de uma Época e Inferno: Um Jogo para o Povo de Nossos Dias), foi uma das produções mais ambiciosas do cinema alemão mudo. Fritz Lang rodou o filme nos estúdios da UFA em Berlim, usando centenas de figurantes, cenários luxuosos e técnicas visuais inovadoras para a época.

Rudolf Klein-Rogge e a parceria com Lang: O ator que interpreta Mabuse foi colaborador constante de Fritz Lang e também marido da roteirista Thea von Harbou. Klein-Rogge se tornaria um rosto emblemático do expressionismo alemão, voltando a trabalhar com Lang em Metrópolis (1927) e O Testamento do Dr. Mabuse (1933).


O olhar sobre Weimar: Vários críticos apontam que o filme funciona quase como um documentário disfarçado da Alemanha dos anos 1920. As cenas de cassinos, clubes e cafés foram inspiradas em locais reais de Berlim frequentados por intelectuais e decadentes aristocratas da época, captando o espírito hedonista e desesperado que precedeu a ascensão do nazismo.

Restauração e redescoberta: Durante décadas, Dr. Mabuse, der Spieler foi exibido em versões cortadas. A restauração completa, conduzida pela Fundação Friedrich Wilhelm Murnau, recuperou o ritmo original e as intertítulos perdidas. Hoje é possível assistir ao filme quase integralmente, em cópias restauradas com trilha musical contemporânea.


Proibição e continuação: O personagem voltaria em O Testamento do Dr. Mabuse (1933), mas o filme foi censurado pelo regime nazista por suas alusões à manipulação e ao autoritarismo. Fritz Lang deixaria a Alemanha logo depois, emigrando para os Estados Unidos. Mabuse, entretanto, atravessaria as décadas em várias continuações e refilmagens, tornando-se um arquétipo do “gênio do mal” moderno.


Influência posterior: A figura de Mabuse inspirou cineastas e escritores do século XX, de Alfred Hitchcock a Claude Chabrol, e antecipou o arquétipo do vilão controlador presente em séries como James Bond e Missão: Impossível. Para muitos historiadores, ele é o elo entre o cientista louco do expressionismo e o cérebro criminoso da cultura pop.


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