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O Homem Cordial (2018): Filme usa conceito de pai de Chico Buarque para falar sobre os conflitos de um Brasil contemporâneo dividido


Dirigido e escrito por Iberê Carvalho, com o rapper Thaíde e o músico Paulo Miklos, Dandada de Morais, Thalles Cabral e Theo Werneck. Aurélio Sá (Paulo Miklos) é um rockeiro famoso de uma banda de punk rock brasileira famosa. O rockeiro pertence banda de rock nacional, que agora está perdendo sua popularidade. Em meio disso, o vocalista da banda se vê em torno de uma polêmica de internet onde acreditam que ele foi responsável pela morte de alguém por conta de um boato 



Aurélio Sá foi responsabilizado por ter se posicionado politicamente e ser famoso. Por mais que ele quisesse seguir 'uma vida normal', a cobrança e ambos os lados por seu "quinhão" de opinião e pessoa tornou a vida muito difícil para ele. Ele desvia de jornalistas, ele desvia dos milicianos, ele desvia até mesmo da própria social democracia dos amigos "normais" e da ida aos restaurantes finos que faz você encontrar os fascistas por estar no "mesmo ambiente". Tudo é um inferno. Mas algumas nuances são boas de comparação. Claro que vamos comparar a figura do Miklos e do Thaíde, mas também aqui eles não exatamente se interpretam, como pode parecer a primeira impressão. 


Iberê também é o cara do filme O Último Cinema Drive In, no filme também temos a presença de Paulo Miklos praticamente se interpreta (mas não também),  embora eu acredite que o rockeiro do filme é menos de esquerda do que é a figura de Paulo Miklos que está sempre em algum projeto inovador e que mistura os gêneros, no filme o cara é traumatizado com seu próprio nicho cultural e que não consegue sair dele, ou seja, ele toca para pessoas que não entendem ou para um nicho econômico que é abastardo e de classe média demais. 


Recentemente, ele chegou a interpretar o sambista Adoniran Barbosa no filme Saudosa Maloca, em um filme lindo que aborda um pouco da antiga São Paulo e da formação das suas rodas de samba. 


Claro que é sobre ser uma figura pública e tomar uma postura política em relação a questão dos direitos humanos, repressão policial e institucional e é claro, sobre a formação e atualização das novas direitas que tem por aí, o filme retrata esse "stress" de guerra civil do que é viver em um mundo onde tomar posição e não "negar a Jesus" significa admitir uma posição política que te coloca como um alvo do senso comum e da próprio mídia. 


Para ser uma pessoa ética você precisa manter as suas opiniões mas isso significa se estressar por viver no meio da mesma classe média que você odeia, e isso é mostrado muito bem uma das cenas, onde absolutamente tudo acontece antes com nosso protagonista, até mesmo tortura policial, questionamento das "quebradas" que ele tenta visitar sobre o que movia a forma como ele debatia e se expressava, quando ele "perde" em absoluto para uma rapper mulher, é uma cena interessante, pois os heróis costumam querer "ganhar todas", mas estamos falando aqui do mais puro suco de "lugar de fala" e ele não tinha e perdeu o round. 


A cena é seguida por uma sequência de uma jantar entre amigos, onde vemos que por mais que ele tente curtir a tranquilidade, a percepção da injustiça da vida e da perda desses espaços compartilhados era o que ficava (o trauma) da sua percepção como homem branco e também parte do sistema. A ideia de um "mundo cão" convive perfeitamente com o conceito do homem cordial, e o homem cordial também não é sobre ser bonzinho para conseguir as coisas. O conceito na verdade envolve uma recusa a intimidade com táticas de intimidade. 



Queremos cobrar posturas ideológicas dos outros, mas pensamos que nós mesmos não temos nenhum lado sempre, mas ás vezes o lado é entre a civilização e a barbárie, e esse era o clima de 2018 com a eleição do Bolsonaro, vale lembrar como estava o clima da esfera pública naquela época. O filme trouxe esses elementos de stress do cotidiano muito bem, mostrando como que era difícil fugir desse processo todo de perseguição, afinal são "fãs" seus também já que o cantor era muito conhecido. 


Quando uma banda vai para o grande público,  não apenas gente legal vai entender e gostar, a divulgação em massa do produto garante isso. Todos conhecem uma banda e podem nem entender seu significado. Pode-se ouvir Rage Against the Machine ou Audioslave as pessoas mais de direita, ou porque não entendeu, ou por ironia mesmo, o que gera essa contradição enlouquecedora que o filme aborda entre ser conhecido e por isso odiado. 


Por isso o nome é uma provação sociológica de primeira grandeza. O sociólogo Sérgio Buarque de Holanda que na vida fez muita muita pesquisa e escrita desenvolveu o conceito do "homem cordial" como uma forma de explicação que explicaria o Brasil para além das explicações raciais, indo de encontro com a sociologia weberiana dos tipos ideias para expressar a forma de representação do homem médio na nossa sociedade. 


Sérgio foi um dos grande autores e professores em desenvolver uma teoria de sociologia nacional. É óbvio que seu método tem inspiração além de Weber, muito em Fernand Braudel também, Sérgio tinha o gosto pelas inovações tanto pela tradição e sabia nisso ter um conhecimento ímpar para a média dos normais intelectuais brasileiro. Ele realmente parece ter lido quase tudo, de Shakespeare a Tönnies. 


O seu conceito de "homem cordial" foi cunhado em seu livro mais conhecido, Raízes do Brasil, 1936 ao comparar a metáfora do semeador e do ladrilhador, aquele que semeia no litoral de maneira fácil, e o ladrilhador, aquele que como na colonização da América Espanhola buscou colonizar com certa "organização", que aqui veio apenas em locais incomuns de colonização como São Paulo, onde o espaço foi moldado na linha reta e não disperso e pelas montanhas como foi no Rio de Janeiro. 


O livro mais marcante e diferente da tradição da sociologia brasileira. Um livro de fundação mesmo dessa tentativa de descrever o que seria o edifício de civilização e o que seria o tipo ideal do brasileiro média, quais seriam suas inspirações, anseios e modos de vida e sociabilidade. A explicação de Sérgio foi a primeira explicação de Brasil sem os vícios ou do racismo ou do culturalismo exacerbado.  


A ideia aqui é opor trabalho e aventura e dizer que os "lançados" que se lançaram na intentona da colonização na maior parte do território brasileiro não estavam afim de grandes estruturações, deixando sempre o porvir para lá, e isso é uma herança na questão das enchentes, por exemplo. Outra ideia é que essa cultura do abandono é sustentada por falta de visão modernizadora real das classes dirigentes, que acabam por repetir sempre uma mentalidade ignóbil e classes médias abastardas e afastadas da realidade da maioria do povo brasileiro. 


Então, o homem cordial não seria o "cara legal", mas sim alguém que assimilou uma realidade muito mais hobbesiana em si e que usa das técnicas de "cordialidade" para na realidade, fugir da intimidade, e não para "fazer amizade". Aqui está a diferença gritante entre o que falava Sérgio Buarque de Holanda para como foi entendida sua teoria pela maioria que seguiu para falar de "malandragem" com isso e não era exatamente isso. Era uma visão arguta das camadas e máscaras e arquétipos permitidos e estimulados na corrente da sociedade brasileira. O do rockeiro de esquerda, o do fã burro de direita, os fãs de rock classe média padrão. 


A verdade é que o homem cordial estaria muito mais preparado para uma briga do que podemos imaginar. Essa ideia de "ser legal" é como a ideia foi entendida na gringa de maneira simplificada, como uma forma de panfleto de turismo mais do que uma teoria sociológica. Como os brasileiros tem a fama de "legais", é passado uma ideia muito errada de que nós estaríamos sempre aptos a agradar e gostar dos estrangeiros. Mas ás vezes essa "cordialidade" vem junto com uma intenção já de apontar aquele que é diferente de você, como uma espécie de constrangimento proposital. 



A realidade é que não existe isso que "brasileiros são mais simpáticos, ou mais cordiais", até porque essa sensação na pessoa pode mudar com um assalto, golpe, ou qualquer coisa trivial assim de vida urbana. Essa seria a cordialidade vinda da ideia de "tirar vantagem". Ou seja, para o Brasileiro médio, até mesmo o branco vendo o estrangeiro já bate aquele radar de "olha aquela pessoa de fora daqui" e esse destaque está no jogo da cultura do turista. O que está em jogo é algo mais profundo, o ethos normativo ou idealizado do tipo médio brasileiro. 


O legal é que o filme traz esse debate da cordialidade para a vida urbana de pessoas que tem que lidar com a fama, aí já sabe, se você é o filho do Sérgio Buarque e vai em um restaurante caro, vai ter uns 10 coxinhas para "puxar" briga contigo pelo simples fato de você ser o filho do cara que inventou a terminologia "o homem cordial". 




Em uma regime de democracia que sempre foi falha e alheia ao povo, em um país que sempre fora agrário e autoritário a mudança de paradigma também não é uma mudança completa, os ideias de classe média e social democracia estão longe da realidade, como dizemos aqui, esses ideias são para "os ingleses verem" e não para a gente agir assim de verdade. Então, o homem cordial não teria nada de cordial. Ele estaria apto a usar táticas ardis ou não para sobreviver.


Ou seja, nossa moralidade é uma capa, uma máscara como as de carnaval e elas são usadas para obter, dobrar ou atualizar o poder na elite antiga no poder. A falta de uma classe média real e um real mercado financeiro fizeram do Brasil o quintal da especulação no mundo. 


Entender que a importância de Sérgio se coloca em um momento de formação de grandes teorias sobre o povo brasileiro nos anos 1930, estávamos vendo uma teoria correlata com o desenvolvimentismo do governo Getúlio Vargas. É uma teoria que diferente de todas as outras não buscava fatores étnicos como os principais formadores nacionais. Ele tece uma ideia de formação de cultura e esfera pública através dos traços de corrupção e pessoalismo que entravam dentro da máquina burocrática. 


Em nenhum momento, o homem cordial é sobre "ser legal", é exatamente o oposto, como mostrado no filme. Quando ele tenta defender um jovem de linchamento, vemos que o seu desaparecimento tinha a ver com o "Matheus", o garoto do filme, ter ficado sem o pagamento de uma dona rica que pegou a mercadoria com a mãe do menino, ou seja, a moça rica e branca do apartamento rouba o menino utilizando da cerca de proteção e segurança que seu prédio e seu bairro lhe dão. 



A mulher não pagando a criança é um exemplo perfeito da "elite do atraso" que gera a cultura dos linchamentos, ou a verão anterior a isso, a visão de Sérgio da falta de dignidade da classe média brasileira. No exemplo do filme, o garoto fica sem dinheiro para voltar para a casa e isso gera uma série de tragédias em sequência, já que ele não poderia pegar um ônibus de graça ( que custa dinheiro), e também não poderia comer nada deixado em mesas, pois aí seria "atitude suspeita". O filme se dá quando o música tenta defender a criança, em um looping que explica o desaparecimento e a perseguição que veio depois do vídeo viral. 


Da cordialidade da madame que rouba e ninguém liga, do abandono de um garoto na cidade em um bairro de ricos que se vê linchado porque alguém que acha que seu "celular foi roubado". Enfim, é um filme que gera indignação para quem acompanhou e mostra essa intensa desigualdade social e essa cegueira direitista que todos ora embarcam por influência da mídia, do meio, das opiniões mais ouvidas sobre algum tema.   


A ética protestante alemã de Weber vira aqui a ideia tipológica do "homem cordial", mais como uma ideia de 'tiranias da intimidade' do que uma ideia pura e simples de malandragem. O que Sérgio buscava capturar eram as "desculpas públicas" da máquina e a observação original e extremamente precisa de que o vício brasileiro era manter uma ignorância de uma elite rural abastarda e que a solução seria a inserção real do povo no processo de poder. 


Enquanto intelectual, Sérgio Buarque é aquela referência da esquerda mais clássica possível, dos formadores da ala socialista do próprio PT. Apesar de sua teoria querer parar a mania étnica da sociologia, fica ultrapassada por desconfiar demais do culturalismo de Freyre, que hoje em dia, soa muito mais integrador que ele. O engraçado é que ás pessoas do Psol que querem negar Freyre, todas elas, usam de seu método, o culturalismo nostálgico para tecer suas desconstruções. Mas quem falava mesmo em uma teoria que dificilmente fica para traz é Sérgio porque ele define os parâmetros da vida da grande média do povo do povo brasileiro e sua cultura pública e de trabalho. 


O que quero dizer é que ou você é serio para porra como Sérgio Buarque e Guerreiro Ramos e "estuda de verdade", ou você vai lá abraçar a beleza do culturalismo falso. Pode encher as fileiras, falar mal de Oliveira Vianna e sua Plebe Rural, falar mal do Sertanejo Forte de Euclides da Cunha, ou dos mestiços ultra valorosos de Freyre, mas a realidade é que Sérgio conseguiu fugir desses lugares comuns de análise. 


O problema é que isso aproximou o Brasil da Alemanha (no sentido do alto culturalismo e da alta mistura de raças, ao contrário do que se pensa), como também serviu  de um viés protestante que nunca antes tínhamos analisado a vida no nosso país. Falando então sobre esse par dialético entre o trabalhador e o malandro, e o protestante, muito mais íntimos e parecidos no Brasil do que se pode prever ou imaginar.  


Vemos como é interpretado como uma escolha ética muito forte ser de esquerda, você acaba sendo o cara que "acaba com a graça" "briga com todo mundo", e isso se destaca no filme. Não é que ele quer ser o herói que todos gostam, mas como ele é conhecido, ele busca uma paz na postura de guerra, ele realmente vê que cada pessoa aleatória na rua é um potencial inimigo. Até mesmo o fã, duvidamos dele  porque ele pode ser um fã que é de direita. 


Basta lembrar da música "Polícia" do Titãs do Cd, Cabeça Dinossauro, na crítica do site feita pelo Matheus, ele abordou que o álbum previu em décadas a mentalidade bolsonarista, e isso é muito o que vimos no filme. Hoje em dia, "Polícia" entra no rol das músicas que todos conhecem e gostam, considerada uma música que até os policias curtem, apesar do tom super crítico, como foi mostrado no filme Tropa de Elite. A mesma coisa pode ser dita se pensarmos as músicas do The Who, tão questionadores e que foram por anos a trilha-sonora das séries de CSI.


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