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Dias de Nietzsche em Turim (2001): Filme brasileiro inspirado em livro aborda momento de virada na obra de um dos maiores filósofos de todos os tempos


Dias de Nietzsche em Turim é um filme brasileiro de 2001, do gênero drama biográfico, dirigido por Júlio Bressane. Há uma recriação do período entre abril de 1888 e janeiro de 1889 na vida do filósofo, em que o onde Friedrich Nietzsche (1844-1900) viveu na cidade de Turim, na Itália. Foi lá que Nietzsche escreveu alguns de seus textos mais conhecidos, como "Ecce Homo", "Crepúsculo dos Ídolos" e "Ditirambos de Diónisos" e entregou-se totalmente às suas próprias ideias, envolvendo-se com a arte, a ciência e sua própria vida

Clique aqui para saber onde assistir ao filme 


O filme de Bressane ganhou o festival de Veneza (o prêmio Bastone Bianco),  e o Festival Internacional Rotterdam em 2002. Esse filme do Bressane é muito interessante, reflete o período final da vida do filósofo Friedrich Nietzsche, quando estava doente. Aqui no blog a gente escreveu já recentemente sobre a mais nova adaptação de Dom Casmurro do mesmo diretor.


O filme foi inspirado em um livro biográfico de 1996 "Nietzsche in Turin : the end of the future" de Lesley Chamberlain. O filme de Bressane consegue capturar lindamente essa atmosfera introspectiva dos últimos dias de Nietzsche. 


Vamos nesse texto, de maneira simplificada passear por alguns conceitos da obra de Nietzsche, como o conceito do super-homem na ideia da auto negação na ênfase na negação de si, o complexo de herói presente na sociedade ocidental, ele tinha uma crítica aos valores da moral tradicional judaico-cristã e apontava na sua obra essa ideia do eterno retorno, o conceito de "vontade de poder", que foi muito utilizado por Foucault depois. 


A ideia de perspectivismo de Nietzsche é revolucionária pois entende até mesmo a interpretação dos fenômenos, das "coisas primeiras" e mais simples como subjetivos ao crivo de um ser humano original. Talvez seja um dos autores que ao negar o julgo da metafísica no espírito e na vontade humana, mas tenha "liberdade" os homens de suas amarras intrínsecas. 


Nesses dias, li muito Nietzsche e alguns comentadores (o que já não gosto de fazer), achava que eu tinha lido tudo de Nietzsche, mas que nada, tem vários livros dele que não li, e nem sabia que existia e que fui procurar aqui e achei, como Aurora (um livro que veio depois de Assim Falava Zaratrusta). 


O campo da filosofia é talvez um dos mais interessantes e antigos que exista por aí. Era essencialmente uma atividade de reflexão fechada ao universo das mulheres por exemplo. Apesar de alguns exceções como Safo, por exemplo. Digo isso por achar que isso acaba com os debates, se tornando mais sobre a referência da "autoridade do autor" do que o próprio debate sobre o campo da filosofia, este se tornou na academia um dos mais misóginos do mundo, mais até do que a história. 


Claro que Arthur Schopenhauer era realmente machista e tal e que existe em sua obra O Mundo como Vontade e Representação muito da sua visão de mundo que Nietzsche negava por não entender essa simpatia "instrumental" do ser humano, entendia como uma análise do mais puro egoísmo humano, mas ainda havia em sua obra coisas e detalhes que não são "perdidos" por esse detalhe. Quando passou seus últimos dias na Itália, ele escreveu cartas expressando opiniões, aforistas e outras detalhes de obra final, era como ele soubesse que fosse seus últimos dias mesmo. 

E quem foi Nietszche como pessoa? Talvez uma pergunta difícil, que sempre nos fazemos, por mais que o foco só na obra do autor também tenha muita força para entender a singularidade do filósofo e sua importância,  o criador do moderno, da vida ateia e devota da primeira vez do nada absoluto na condução do eu, por isso sua filosofia que todos usamos de "niilismo" para descrever uma pessoa que nega a ideia atada de existência do ser humano com amarras passadas, e ás vezes parece ser apenas uma negação, ou apenas uma visão pessimista. Lembrando que na filosofia clássica esse lugar era logrado aos céticos. 


Se deus estava morto para ele, era porque somente assim havia a liberdade geral do homem para fazer o que quiser, era o fim dos suplícios e dos sacrifícios, e do destino controlado dos homens e isso refletia em uma vontade coletiva de usos de saberes e gostos para construir imagens coletivas. O trabalho de Nietzsche é muito moderno e ele tem alguns livros que absolutamente abordam contradições do ser humano. 


Mas é interessante que ele mais de uma vez negou o antissemitismo (apesar de hoje em dia Nietzsche ser considerado como próximo ao nazismo ou a direita),  e o conservadorismo, no vocabulário do filósofo, conservadorismo, ignorância e religião eram instrumentos do mesmo dogma da forma de educação e condução da sociedade que se estruturava em torno da religião e ao progresso vinculado com a secularização do mundo. 


A Alemanha e a Itália (apesar de possuírem culturas e línguas milenares), ao se unificarem tardiamente, ficaram por isso também reféns de problemas de um nacionalismo fervoroso e de processos de crises sistemáticas geradas com uma ideia de "populismo" no sentido de crepúsculo do ídolo (de uma ideologia coletiva nacional) e de uma particular mania de legitimidade que pairou a política do século XIX, isso gerou autoritarismo e alta repressão e moralidade em países como a Alemanha.  


Nietzsche  buscava um estado de permanente dúvida em relação aos alicerces morais dessa sociedade. Seria mais ele o cara da ideia do "ópio do povo", mais do que Marx que queria muito era ser aceito pelo partido e espírito social democrata germânico, por isso escreveu tanto sobre economia. Sobre a loucura e a era clássica, Nietzsche comentava que as melhores influências da Grécia chegaram lá por conta da "loucura", acredito que as histórias Ilíadas e Odisseia de Homero simbolizavam isso. 





Nietzsche e sua amizade com o músico Richard Wagner rendeu uma grande influência nos primeiros trabalhos onde aderiu a sua visão romântica,  em obras mais românticas, trabalhos produzidos pelo filósofo como "O Nascimento da Tragédia(1872)" "Genealogia da Moral", "Origem da Tragédia". Nietzsche também expressamente condenou o antissemitismo de Wagner, dizendo que progressivamente este foi se inclinando a tudo que tinha de pior segundo ele.  


No começo, ele era admirador do nacionalismo comprometido da "pauta" de Wagner (um simplificador universal nas palavras do filósofo), e era entusiasta dessas ideias robustas de "necessidade dos clássicos" para entender sobre o próprio legado e sobre seus países. A leitura do carácter grego e de seus dramas musicais. É nesse primeiro livro do autor que ele diferencia os estilos Apolíneo e Dionisíaco de vida na Grécia Antiga, um com um estilo que simbolizava a harmonia e a ordem e o outro a intoxicação, o caos e exatamente o contrário disso. 


Nietzsche passou a ficar desconfortável com o crescente nacionalismo de Wagner e sua associação com o nacionalismo do Império alemão sob a unificação de Bismarck, o berço da política conservadora alemã.


Nietzsche passou a ficar mais pessimista (e mais certo), e mais veemente com o existencialismo com o decorrer dos anos vividos (e de já ter sido professor), depois de alguns anos ele questiona essa metafísica e a ideia romântica ao estilo do "destino manifesto" de uma nação passou a cansar o filósofo que passou a negar com fervor o romantismo dos "dias que ainda acreditava no construtivismo da história", negando a necessidade de afirmação idealista da vida terrena. Nietzsche passou a odiar o ar de "culto a personalidade" das pessoas em relação ao tipo de música feita por Wagner. 



Publicou em 1888, "O Caso Wagner", onde foi o momento de virada na obra dele, onde ele negava Wagner a metafísica de costumes. Criticando o caráter emocional e de rendição das massas em torno de uma forma manipulativa e barata, Nietzsche argumentava que esse estilo de música representava uma transgressão cultural, ele afunilou suas críticas escrevendo também Nietzsche Contra Wagner (1888). Ele ficou obcecado com negar toda a atmosfera de "superioridade" fanfarra em torno da "pauta alemã", parece até que ele previu o futuro nisso!


Nietzsche saudava a opera Carmen (de Georges Bizete) por afirmar e incorporar diversos valores de vida individual. demonstrando um caso prático de orientação filosófica e andou lado a lado com a experiência pessoal dos atores envolvidos nesse debate. 



Nietzsche era genial em analisar o problema da ciência, que é em tese ao contrário, a ciência é feita para solucionar problemas, anomalias e sugerir digressões que possam ir contra a corrente, a corrente do senso comum, por exemplo. Acontece que segundo o filósofo, a ciência estaria preocupada com a reputação e com a "felicidade", um exemplo disso é pensar que Nietzsche estava anos luz na crítica ao liberalismo econômico que fazia da ciência seu capacho moral. O fim da crença genérica em torno da sociedade ocidental é importante também, observamos o nascimento da secularidade religiosa, onde o desencantamento do mundo se torna uma realidade cada vez mais latente. 


O método de Nietzsche seria em analisar as origens, a genealogia daquilo que ele veria como naturalizado, como "formas de metafísica", como a religião, até mesmo a música, que tanto celebrava como garoto, como os "jovens hegelianos (os tetra-avôs do pessoal do Partido Novo ou do Lib Dem)" eram já negados por Marx ou Nietzsche de maneira indireta. Apesar de Nietzsche ser contra qualquer forma de "ismo". Gostos e ideologias, costumes, a língua, como também a arte e fazem parte da forma de representação que temos do mundo também e opiniões fazem parte dessa construção que não estaria longe da percepção da "coisa em si".  Um lado mais sensível de Nietzsche era visto no seu interesse por arte e música em geral. 


Essa procura pela felicidade na forma de fazer ciência está envolvido na percepção de que já naquela época formadora do tino científico, havia já uma confusão eterna, já que a ciência vira exercício de metafísica particular de uma região ou envolvido com alguma prática específica. Os fenômenos seriam também fruto do olhar e a metafísica era adornada também. No século XIX, o século do "tudo que era sólido desmancha no ar", do esfarelamento de impérios e ideologias milenares, de construção das carreiras e carteiras científicas e de suas repartições e compartimentações.


Por exemplo, um dia de 03 de janeiro de 1889 contam um causo sobre ele, que ele estaria andando e viu um cavalo que se recusava a obedecer quando é açoitado, essa cena teria ajudado a enlouquecer o velho filósofo, já que ele interveio em favor do cavalo e foi considerado louco por isso. Isso tem a ver com a recusa de Nietszche de aderir ao estilo de empatia e compaixão expresso no estudo de Schopenhauer. 


Pintura de 2018, Nietzsche defendendo o cavalo da violência do chicote, episódio marcante na vida do filósofo.


Queria aproveitar aqui para falar um pouco da relação com a obra de Nietszche e sua importância como obra reflexiva sobre os temas do século XIX que estavam em alta, como o nacionalismo e o individualismo na época que "Deus estava morto". 


O livro de Lesley é exatamente como é entendido no filme, uma forma de manifesto contra a associação posterior da ideia de Nietsche pelo nazismo, mostrando como isso era anacrônico e errado dado ao fato de que o filósofo no fim de sua vida negou com veemência alguns vícios de juventude de seu pensamento anterior. Essa é uma questão muito interessante. Vemos seu amor pelos hábitos de música e arte,  e a dor que dominava sua existência e o agravamento da ideia de auto conhecimento como auto destruição e a confirmação de suas teses mais pessimistas, mas ao mesmo tempo, escapistas também. 


Vemos uma reconstrução da ideia de um autor amargurado e entender que sua imaginação e criatividade filosófica eram inéditas. Apesar de não ser socialista ou comunista, era extremamente gentil com o ser humano, entendendo a verdade como uma extensão de um julgamento também humano. Isso é mais visto na obra "Humano demasiado humano", muito essa ideia do "espírito livre" (apesar de não realmente existir isso, ser uma forma de "wishful thinking"), e da renúncia posterior na crença romântica da representação da arte como salvação do ser humano. 


Também reflete em seguida que isso pode se estender para a nulidade da da redenção pela arte e a relação disso com a formação de um espírito verdadeiramente alemão. Isso tem a ver com preferências e gostos em literatura. Ás vezes o gosto apurado pode não ser apenas o que define a beleza ou a bondade e força de alguma ideologia ou gosto cultural específicos. Um exemplo aqui que podemos recorrer é em relação ao debate com os adornianianos que viam no nazismo da falta de cultura e o populismo do "populacho", ao estilo de músicas no rádio como a cantora Lili Marleen. Então, para os adornianos, foi através da falta de cultura que a ideologia nazista teria se espalhado.

Nietzsche diria sobre a ciência, que a procura pela felicidade nas pesquisas teria estragado a ciência, vale dizer que ele teria um infarto vendo as pesquisas  científicas de hoje.  

Mas a fonte do estudo de N, principalmente o que ele escreveu mais tarde em vida, veremos que ele é muito mais positivo e humano (apesar de não "humanista"), ele criticava esse poder da taxação, esse "martelo de juiz" da verdade e da moralidade ocidental que se finda na recusa ao novos conhecimentos e se engessa na mais suprema ignorância. 

Basta ver os memes na internet, Nietzsche é facilmente filtrado pelo formato, ele escrevia em forma de aforisma, como obras clássicas antigas ocidentais como Confúcio que eram como se fossem ensinamentos curtos. Ele também surja nesse orientalismo quando ele escreve sobre os ensinamentos do mestre Zaratrusta. 

Esses aforismas dele também formam uma forma de conexão entre suas obras, Humano, Demasiado Humano", "Além do Bem e do Mal" por exemplo, com ideias que analisam por sua vez a própria evolução do autor e o legado de obras mais acadêmicas como "O Nascimento da Tragédia", onde ele aborda a psicologia e o nascimento da forma ocidental de escrita narrativa e do teatro grego como formador de toda uma psique ocidental. Os aforisma são como frases curtas que dão diretivas, são como mensagens de twitter. 

Também tudo está escrito dentro de uma forma de sabedoria ocidental vista na nossa tradição judaico-cristã e de sua relação com a criação de preceitos morais que regem a sociedade e os costumes. Esses costumes teriam sido  incorporados na tradição cristã no século III no neoplatonismo, quando a tradição foi misturada no helenismo.


Nietzsche então é visto em sus cores reais, de dor e de indivíduo, que buscou negar o fanatismo, apesar de se sentir também em certo momento, como alemão criado também no fanatismo religioso, envolvido em crenças metafísicas, que depois veio a negar. Nietzsche seria a favor dessa imaginação criativa e insistiria na necessidade do fim da visão em torno dos escapismos gerais do mundo. Nietzsche foi tratado com uma grave infecção de sífilis que levou a um colapso mental em 1889, e pelo fim de sua vida, viveu em silêncio, apenas anotando suas impressões do mundo em sua volta e preso em si mesmo até 1900, ele chegou a ver o novo século (o futuro) que ele tanto previu e observou. 



Vale lembrar que a utilização de sua obra pelos nazistas foi feito por releitores interessados mais deturpar sua produção de juventude. Nietzsche também sofreu com reedições e influência de uma de suas irmãs, Elisabeth Förster-Nietzsche que se casou com alguém "ruim". 


Isso influenciou em toda uma má leitura da obra profunda e profícua de Nietzsche. Um verdadeiro caso que precisa de uma análise e releitura, pois Nietzsche apesar de alemão, sabia que a solução não era ser antissemitismo. Nessa época, na Europa, era a pauta mais de "esquerda" possível. Já que os judeus eram considerados inimigos da Europa monarquista e cristã, hoje em dia, são praticamente a mesma fonte de poder. 



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