Pular para o conteúdo principal

Inocência (1983): Clássico de Walter Lima Jr. sobre fundamental romance de Taunay representa a entomologia e os viajantes no Brasil


Com Fernanda Torres e Edson Celulari, baseado no livro de Taunay de 1872. No Sertão de Santana do Paranaíba, mora uma jovem de nome Inocência, quase etérea de imagem e utópica de forma. Um dia, o médico Cirino de Campos conhece o pai dela, Pereira, ao longo do caminho de uma estrada para a vila. Pereira fala que tem uma filha doente de maleita (malária) e Cirino se oferece para examiná-la. Em paralelo, o naturalista Meyer, um cientista alemão interessado em coletar borboletas para catalogar a diferente flora brasileira, acha uma borboleta azul que ele batiza com o nome de Inocência, a Papillio Innocentia 



Clique aqui para saber onde assistir ao filme


Esse texto vai ter longo mesmo, tem citações de todos os artigos que encontrei do tema, em inglês (do livro em inglês também do James W. Wells), e de outros artigos de teoria literária, e comparação do próprio filme de 1983, como também outras tentativas de adaptação, a primeira delas por Vittorio Capellaro em 1915-17, o mesmo que dirigiu uma adaptação de O Guarani em 1916.


 A história particular contemplado dá uma influência mística do livro não apenas na literatura brasileira, mas também no mundo afora, na Suíça, no Japão, na Alemanha e no Reino Unido (Inglaterra) e nos Estados Unidos, sendo o livro brasileiro (em português) mais traduzido para outros idiomas.  


O carácter universal e científico do romance é surpreendente e afaga o leitor que está procurando por algo além do romance, aqui o romance é secundário, perde em cores e em respaldo histórico para o fato de que as expedições estavam levantando informações sobre nosso território de "maneira científica", que apenas o sertanejo que se embrenhava em matas sabia também mas da sua própria maneira. Essa divisão entre o empírico e o teórico em termos de ciência está presente no livro inteiro. 


Pessoalmente, eu li Inocência pela primeira vez uns 3 anos atrás quando estava percorrendo livros de literatura brasileira que ainda não tinha lido, uma versão moderna simples, uma edição sofrível mesmo, mas ainda boa por ser sucinta, me encantei com a inovação da estória, pensada como uma metáfora perfeita de tempo e espaço dentro dos costumes de conservadorismo que sempre vigoraram no nosso país. 


O livro emana esse 'instinto de nacionalidade' do romance, mas nos depara com o realismo dos costumes e da moralidade, em contraste com o avanço da ciência e a visão dos outros que o livro já brinca desde o início. Esses dias reli em português e li a tradução do James W. Wells (um geógrafo e engenheiro civil), e que escreveu Three Thousand Miles through Brazil (três mil milhas pelo Brasil), um livro de viagens dele por aqui. Sua tradução de Inocência é muito boa mesmo e veio ainda no século XIX.  Outra tradução, essa para os Estados Unidos foi feita por Henriqueta Chamberlain em 1946.


Ao ler agora Esaú e Jacó, lembrei de Inocência com a personagem da Flora (ambas morreram por ação dos outros que as pressionaram), ainda mais depois de ver Época da Inocência de Scorsese e perceber a semelhança de pauta dos dois romances completamente diversos e parecidos ao mesmo tempo. Um é um faroeste no sertão, outro é igualmente bruto só que com luvas e etiqueta.  


Algumas informações mais gerais do livro e de seu autor,  "Inocência" é um romance regionalista brasileiro, de Alfredo d'Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, publicado em 1872, refletindo uma década anterior. Alfredo Taunay nasceu no Rio de Janeiro, em uma família aristocrática de origem francesa e inglesa. 

Seu pai era Félix Émile Taunay, 2º barão de Taunay, era pintor, professor e diretor da Academia Imperial de Belas Artes, e seu avô paterno, 1º barão de Taunay, foi o também conceituado pintor Nicolas-Antoine Taunay, membro da Missão Artística Francesa. Participou da guerra do Paraguai e escreveu também "A Retirada de Laguna" sobre sua experiência na guerra. 

A tradução de suas obras foi feita quando ainda estava em vida e influenciou diversos países, traduções presentes na Bélgica, Alemanha, Japão, também teve uma ópera suíça com o nome da Papillio Innocentia em 1915. Como também influenciou o ciclo literário através da tradução de James W. Wells (uma obra ilustrada e caríssima hoje em dia).



Capa da edição japonesa de Inocência ao estilo animé



O sertão brasileiro é abordado no livro considerado gigante, um coração infinito de Brasil, é o "coração" geográfico do país, para onde nos é levado para as matas mais densas e de território que leva para qualquer lugar, são a nossa versão da coisa do "todas as estradas levam a Roma", só que no Brasil, essas são as estradas "desbravadoras", da rota dos bandeirantes antigos e do apressamento indígena. Esse sertão se situa entre São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. No livro, tem essa ligação forte com o naturalismo e a botânica, matérias primordiais do campo que mais tarde seria definido como entomologia, análise de insetos (como as borboletas que Meyer caça). 



A primeira tradução de Inocência foi de 1889 (ano da fundação da nossa república) pelo britânico James W. Wells, que fez uma versão de Inocência publicada pela editora Chapman and Hall. O subtítulo que ele adicionou ao livro foi "a story of the prairie regions of Brazil" (uma história das pradarias do Brasil). Taunay publicou seu livro pela primeira vez com um pseudônimo de Sylvio Dinarte, mas depois mudou de ideia com a repercussão que a sua obra gerou. 



Até mesmo um japonês quis traduzir Inocência, em 1893, o literato japonês Kawana Kwandzo, ele mandou uma carta pedindo autorização de Taunay para traduzir a partir da obra de James W. Wells para o japonês. Autores brasileiros aparecem no livro "Complete list of literary books published in Meiji&Taisho Era" (a completa lista de livros de literatura publicados na era Meiji&Taisho). 


Até porque a Idade Média (a estória é típica de fim da Idade Média, ao estilo Romeu e Julieta em estilo literário), e foi muito forte no Japão no período da Restauração Meiji (século XIX) quando a escrita japonesa buscava se firmar como universal, na época, a tradição da literatura japonesa era de provérbios como os raikus que faziam estórias curtas e reflexivas, similares a nossa literatura de cordel e mais tarde o ciclo de literatura infantil que gerou a futura tradição dos animes. 


A obra Inocência influenciou além de Wharton, também o escritor Ushida Roan (também responsável pela primeira tradução de Dostoevsky no Japão), um dos primeiros romancistas, tradutor do Ministério da Educação japonês, e crítico literários de peso e influência no Japão, que fizeram até levantamento de autores brasileiros de renome. Mas foi somente em 1980 que fizeram uma tradução completa por Kobayashi Kazuteru na revista Taiyo (The Sun). 


 Apesar de dois cenários que não poderiam ser mais diferentes (entre Época da Inocência e Inocência), a essência é a mesma, as amarras da estrutura e dos costumes dentro da vida e da escolha pessoal das pessoas, um tema muito psicológico que coloca o livro de Edith dentro de um debate sobre sociedade, costumes e regras exteriores ao indivíduos, que eles não escolhem por si. 


O nome do pai era Martinho dos Santos Pereira, a menina estava com malária, algo que poderia ser curado com uma dose de quinina (sulfato de quinina), produzidas da casca de Cinchona para curar a "maleita" como era chamada a malária da época. No livro tem descrição de tantos detalhes da natureza, capões, pássaros cara-cara (carcará), perdizes (coy) e rapaduras e tudo isso descrito da maneira mais detalhada possível e poética. No filme, a paisagem da mata atlântica carioca serviu como cenário mais bonito e romântico ainda. Com música de Wagner Tiso, que também compôs a música do filme O Guarani (1979). 


Cirino Ferreira de Campos é um personagem interessante (nem bom nem mau, mas também igualmente inocente de querer ficar com Inocência), longe de ser um príncipe ou rico ou pobre, ele flutua no meandro, como não era era das "castas locais da terra", ele possuía até mais escolaridade que a família de Inocência, mas não as terras, ele não podia sonhar com Inocência (por conta do modelo medieval de forma de vida e hábitos).


Inocência aí representa o modelo de mulher pura e bela, naturalmente boa e talentosa, mas inocente pela falta de vida e experiências vividas, por isso é óbvio também que ela goste de Cirino, um carácter "óbvio", biológico, de tragédia anunciada próprio das estórias de romance clássicas. Ele teve que mudar de faculdade pelo que entendi, por conta de uma perseguição que sofreu pois um de seus colegas morreu e acharam livros de Marques de Sade com ele, o livro é cheio de pistas misteriosas de personalidade assim. 


No sertão do Brasil, o costume de "apalavrar" assegurar pela palavra, contrato de boca, era considerado como contrato de papel, até porque havia muito analfabetismo Brasil. Por isso Inocência era casada mesmo sem contrato ainda. acho uma parte interessante da tradução quando ele traduz "dois dedos de prosa" como "a little bit of gossip" . 


Por falar em fofoca, sobre o filho dos nobres e que era militar e meio careta também, o caso é de falar de uma que li aqui que não acredito ser muito factícia, é que ele teria se envolvido com uma indígena e  depois teria que ter que "voltar para a civilização" e teve que abandonar e aí a moça depois morreu, explicando o enredo do livro em tese. Mas essa estória também parece muito com um conto de Machado de Assis que o senhor engravida a escrava, viaja para a Europa e volta casado, e aí a moça tenta se matar. Enfim, aqui é mais ramo da especulação. 


Se comenta no livro sobre a obra de um médico polonês chamado Chernoviz, Vade-mecum citado no livro, como também foi alguém te por lutar contra o império russo, se refugiando no Brasil e lançando livros para competir com a realidade da extrema confiança em curandeiros e farmacêuticos que o Brasil tinha no século XIX. Ele lançou livros no Brasil que lhe renderam popularizada como Formulário ou Guia Médico (1841)“Dicionário de Medicina Popular e das Ciências Acessórias” e morreu na França com seis 6 filhos da sua esposa francobrasileira. 


Esses manuais médicos na época se tornaram muito populares devido a escassez de médicos diplomados para atender a população, principalmente a mais pobre, muitas vezes chamados de charlatões, eram toda a medicina que era acessível para a grande maioria, e por isso que alguns médicos de diplomacia estrangeira resolveram documentar esse tipo de sabedoria homeopática e ganharam dinheiro de editoras para transmitir esses conhecimentos, chamados até hoje de pseudociência por alguns. 


A metáfora científica aqui é óbvia, sendo que Inocência significa o romantismo do lugar idílico como o Brasil e o desperta em termos de afabilidade pela memória afetiva por exemplo, dos estrangeiros que estava documentando o território. Na vida real, realmente houveram muitos, como Johann Baptist von Spix (1781–1826), um biólogo alemão que pesquisou temática s de história natural, em expedições que dataram de 1817-1820, publicou o livro Fauna Brasiliensis. 


Outro viajante naturalista estrangeiro foi Carl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868), focando seu trabalho na parte das plantas, publicando então o Flora Brasiliensis, uma enciclopédia de botânica, houve também um suíço-americano, Louis Agassiz (1807–1873) especialista em ramo da zoologia sobre peixes cartilaginosos em uma expedição de 1860, e outro alemão Fritz Müller (1821–1897) que emigrou para o Brasil em 1852, fazendo contribuições para a biologia e estudos de borboletas e outros organismos.  Meyer do livro era descrito como naturalista, mas essa ciência tomaria outro nome mais específico de zoologia e entomologia depois. 



O doutor que salva a moça (o empírico Cirino) morre "por ir a campo" e o "outro doutor", esse de pesquisas  que não necessariamente salvam a vida de ninguém, mas tem valor para a posteridade, vive intensamente mas com distância, e por isso, é dele que vem a memória de Inocência, içada para a morte como uma as borboletas capturas pelos exploradores, bonita, porém morta, mas em prol da ciência, acho que nos diria Taunay. O olhar de Cirino é romântico ao olhar para Inocência, o olhar estrangeiro admite sua beleza como vê a beleza das coisas da natureza em geral, mas sem o olhar romântico de Cirino, que vai se envolver ao ponto de não ter volta com "Nocência" (como era chamada carinhosamente).

O cientista alemão, alheio a todo resto, conseguiu perceber a força do costume de onde ele estava fazendo suas pesquisas e no fim homenageia Inocência com o nome da borboleta azul que ele acha pela primeira vez no Brasil. 


Filme mostra no início toda a transformação da lava, da crisálida virando estado de pupa, para finalmente virar uma borboleta e perder a casca. 



Taunay era fruto ele mesmo das missões, (neto do pintor francês famoso), ele mesmo, teve experiência militar nos cantos  afora mesmo através da guerra do Paraguai, chegou a escrever o "A Retirada da Laguna" sobre uma das principais batalhas da guerra, vindo de família nobre francesa e muito educado, queria fazer um romance regionalista de tipo mais brasileiro possível, realmente tinha essa intenção fundadora de literatura nacional. 


Uma curiosidade é que ele publicou a primeira versão com um pseudônimo e queria até mesmo modificar seu nome para soar mais brasileiro, se chamando de "Toné", mas foi aconselhado manter seu nome por seu pai que achava que sua fama ia vir de qualquer maneira. No fim, tanto ela morre, quanto o amado, é uma dessas tragédias ao estilo Romeu e Julieta local. Já Edith Wharton fez uma espécie de "mesma ideia de livro" mas em locais, ambientes e sociedades totalmente distantes, ambos os livros terminam sem aquela ideia romanesca clássica. 

Wharton pode ter conhecido a obra de Taunay (já que ela era uma moça que viajou o mundo inteiro), por exemplo, em 1915, uma ópera suíça de Leonardo Kessler (que depois veio morar no Brasil e responsável pela criação da primeira orquestra sinfônica de Curitiba), e citou o livro brasileiro no título Papillio Innocentia, a borboleta brasileira citada no livro. Inocência, apesar de morta pela tradição vira ciência nos museus da Europa, documentada como beleza imortal, é um tanto reflexivo a intenção de Taunay com essa metáfora.



Outra curiosidade para além da possibilidade de inspiração para a obra A Época da Inocência de Edith Wharton, essa é por conta de diversos motivos, o livro de romance brasileiro mais traduzido para outras línguas. Foca nessas regras de etiquetas mortais e por abordar essa "Idade Dourada", cultivou a imaginação dos americanos para temas semelhantes na versão deles, sem o uso das armas e da masculinidade, a coerção era feita com luvas e não com a espadas.  O livro serviu como influência por abordar uma "idade média tardia no Brasil" perdida no século XIX, longe da civilização e das novas regras de etiqueta da burguesia liberal. 

 

Mas a referência e comparação aqui são válidas, já que Edith Wharton escreveu em 1920:"A Época da Inocência", e além de ser também sobre a obrigatoriedade do casamento, é tão bruto quanto Inocência de Taunay e há um plágio de estilo na forma terminada, onde não gostamos em absoluto de nenhum personagem, apenas aqueles que estão ali de passagem, como o próprio leitor. 


As pérolas do filme são muitas, tem o pai de Fernanda, Fernando Torres, como o padre Cesário, temos uma das primeiras aparições de Fernanda Torres como atriz e arrasando muito, que viria a fazer A Guerra de um Homem (One Man's War), com Anthony Hopkins, em 1991, e Terra Estrangeira (1995), de Walter Sales, ela estava sensacional no filme, é absurdo o quanto ela flutuou entre gêneros como atriz, entre os dramas iniciais da carreira, e por fim comédia nas séries, e agora ela escreveu um livro também. O Edson Celulari encaixa também no papel por também não fazer o cara extremamente carismático, mas também por marcar o fatalismo do destino do doutor.


Inocência é uma das obras mais conhecidas do regionalismo brasileiro, abordando as relações peculiares da elite do Mato Grosso antigo. Um romance épico e extremamente metafórico e político, adaptado maravilhosamente bem em cada detalhe, com fotografia, cenário singulares e com diversos atores famosos e de peso.


O médico Cirino cuida de doentes pelo sertão mato-grossense, mas o que ele não contou é que ele era formado em farmacologia e não em medicina propriamente dito, isso significa então que ele é mais pobre mas esconde. Ele se apaixona por Inocência filha de Martinho Pereira e prometida de Manecão Doca.


Quando o Meyer vai embora sem se despedir de inocência, ele diz que o nome dela será lembrado na espécie nova de borboleta que ele nomeou de Inocência. Em certo ponto depois disso, Cirino quer fugir com ela e traça um plano depois de vários encontros escondidos.  Mas ela recusa não querendo abandonar o pai e ser considerada uma 'mulher perdida' por fugir com ele. Interessante essa dimensão dela entender que também fugir não era a solução, já prevendo o carácter de tragédia anunciada do casal. 


Manecão volta e é recebido por Pereira com muito mais ânimo que Inocência que parece muito assustada ao o ver. Ela se tranca no quarto e comenta que ela não quer se casar. Ela fala que sonhou com a mãe e ele diz que matará ela se ela não quiser se casar. ele obriga ela ir para a sala e receber ele e como ela não o tratou bem, resolve dar um tapa na cara e surra na filha. 


Existem vários elementos na narrativa que são ao estilo do romance medieval backtiniano, a ideia do encontro, desencontro dentro de "estradas da vida", como é aleatório o encontro com o pai de Inocência. A ideia também da casualidade e de outras inflexões da vida, como a inevitabilidade dos encontros tristes e tragédias  dramáticas como essas, que lembram como se fosse um "Romeu e Julieta do sertão".  Padre Cesário  é o padre que Cirino tenta pedir ajuda sobre a questão de Inocência e que vê ele morrendo depois. No livro, quem mata no duelo é o Menecão ao médico e não o pai, diferente do livro onde quem vai para o duelo é o noivo prometido da moça. 


Filme com a Fernanda Torres e Edson Celulari de 1983, ano bem próximo do fim efetivo da ditadura militar, o filme é do cineasta Walter Lima Jr. (cineasta aqui do Rio-Niterói e do Cinema Novo), fazendo um cinema ao mesmo tempo apaixonado pelo histórico e pelo contemporâneo. Outro filme no mesmo estilo dele é "A Ostra e o Vento", onde uma moça acaba se apaixonando pelo vento por se sentir presa a realidade de seu pai, como no filme Inocência também dá esse tom. 


Agora Walter Lima Jr volta fazendo um filme cientificista e clássico, alguns dizem o seu melhor filme, sobre as expedições estrangeiros e seu efeito na divulgação não somente do olhar estrangeiro (antropológico), mas também da fauna e da flora brasileiras lá fora, a formação de expedições como também a de Charles Darwin e de outros viajantes catalogaram e visitaram diversos locais do Brasil em busca de espécies desconhecidas, mostraram a particularidade de muitos biomas brasileiros. 


Aparentemente, a lenda é que ele queria fazer um roteiro que teria sido originalmente de Lima Barreto (o grande cineasta de O Cangaceiro, (1954), e que teria tido até indicações de Humberto Mauro (de um roteiro anterior bem mais antropológico e sobre a natureza), e no lugar, escolheu-se pela ideia de Lima Barreto em um roteiro bem fiel ao livro de Taunay, com um "roteiro de ferro" feito depois de sua morte.  Os direitos foram parar com Lulu de Barros e Fernando de Barros que filmariam em 1949, com Maria Della Costa no papel de Inocência.


Em um artigo da USP, de Cesar A. Zamberlan, comenta alguns fatores sobre Walter Lima Jr e uma certa “cinearqueologia de costumes” proposta através do resgate do clássico da literatura para a perspectiva da forma filmada final, em uma forma de cine movimento capaz de esculpir o tempo e dar a ambientação necessária. 


Walter Lima Júnior queria fazer justiça aos dois adaptando o romance de Taunay e, mais do que isso, fazendo-o a partir do roteiro de Lima Barreto e com as indicações que Humberto Mauro passara a este, já que o projeto de adaptação de Mauro não foi em frente e os direitos ao livro acabaram nas mãos de Lulu de Barros e Fernando de Barros que o filmaram, em 1949, com Maria Della Costa fazendo o papel de Inocência. A adaptação de Walter Lima é a terceira para o cinema e baseado no livro de Visconde de Taunay. 


Taunay retrata no Sertão de Santana do Paranaíba, uma mulher tão submissa e utópica que seu único refúgio e o ideal de romance platônico com o Cirino, formado em farmácia (fazia o papel de médico ao receitar os remédios para curar as doenças dos locais que visitava). 




Como o Romantismo estava em decadência (não compatível com um país escravocrata), na época em que a obra foi escrita, pode-se considerá-la de transição entre o Naturalismo e Realismo, devido a uma grande e infalível caracterização do homem como produto do meio, isto é, ele age de acordo com o tipo de vida que leva. 


Detalhe para a figura de Tico, figura que lembra o Quasímodo de Victor Hugo, é um anão Tico mudo que vigia Inocência e dorme (como um cachorro como diz o livro) na porta de seu quarto (algo a ser ponderado, será que o anão tinha sentimentos em relação a Inocência? já que ele ficava tão próximo dela?). Ele que relata a Pereira seu romance com Cirino, enquanto eles se encontram no laranjal eles são flagrados por ele. Esse elemento é extremamente backtiniano e pantomímico (como o anão que tudo vê  e participa da estória em condição de submissão, usando a justificativa que é a metáfora do modo de vida escravocrata que essa família vivia. 


Essa ideia da beleza que nasce do meio de uma perversidade bruta, e que tem destino certo e selado desde do nascimento, sem nenhuma possibilidade de escolha. Pereira convidou Cirino a ficar em sua casa e lhe arranjou alguns pacientes. 


Outro hóspede chega trazendo consigo um servo engraçado e uma carta do irmão de Pereira e permanece em sua casa. É o Dr. Meyer, naturalista alemão que embarcou no Brasil com o objetivo de encontrar novas espécies de insetos e caçar borboletas para documentar e mandar de volta para análises na Alemanha, onde Meyer morava, na Saxônia. 


Embora o anfitrião o tenha recebido normalmente, não compreendeu os elogios que o recém-chegado entregou para sua filha e começou a desconfiar dele, ainda mais depois que ele nomeou a borboleta com o nome da filha, mas depois que ele fez suas pesquisas, ele foi embora e tranquilizou Pereira. Mas quando sua filha diz que não vai se casar, leva uma baita surra do pai, aí o pai depois se encontra com Cirino e o mata a sangue frio, Inocência ao saber que teria mesmo que ser casar com Manecão morre de tristeza. É quase medieval a relação da tragédia aqui. O livro termina com Meyer recebendo uma grande homenagem na Alemanha por sua descoberta fictícia: a borboleta Papilio Innocentia.


Essa ideia parecida da descrição extremamente científica de costumes particulares ao meio natural. Coisas absurdas, como Inocência ser analfabeta por que o pai tinha medo de ensinar ela a ler a e escrever e ela não ser "inocente" mais, esse detalhe é monstro para entender o objetivo trágico que o livro brasileiro provoca, fala sobre a hospitalidade sertaneja, os acordos entre famílias para preservar o poder, a questão da honra antiga, o analfabetismo como tática de dominação das mulheres (descritas como "de meter medo" e frágeis como se feitas de vidro) e a crendice aos juramentos aos santos, a vingança, o duelo, coisas que já tinham caído no mundo ocidental, mas não nesses cantos do Brasil. 


As intenções do médico são dúbias, para um lado ou outro, Inocência era inocente mesmo, como seu pai, era analfabeta e por isso não tinha como argumentar para além de morrer para não casar com Manecão, como tinha prometido o padre Cesário para o médico. Sobre Machado, vale lembrar que Inocência 1872 é do ano posterior de publicação do primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição, de 1873. Mostrando essa cadência de época pós Guerra do Paraguai.


Mesma coisa pensou Machado mais velho, quando foi escrever em "Esaú e Jacó", sobre uma história com tons de drama e romantismo parecida com Inocência (também como metáfora da questão nacional), Esaú e Jacó é de 1904, penúltimo romance de Machado de Assis, nele o personagem mais interessante é o narrador, o conselheiro Aires, quando Flora morreu e não teve que casar com ninguém, era uma sorte pelo menos ninguém a ter. Flora já havia ficado doente antes ao achar que o pai viraria presidente de província de Mato Grosso (mesmo lugar abordado em Inocência). 


O livro Inocência é um marco da literatura e foi "respondido" por Machado de Assis em uma de suas obras, Esaú e Jacó, criando uma personagem parecida com Inocência, Flora que também morre por não querer casar (mesmo tema), em Flora a beleza do feminismo é mais visto, já que o tema é mais sobre a moça não querer casar com ninguém, em Inocência é a impossibilidade de ficar com quem se ama. 


Aqui Flora significa Fauna e Flora (significa uma metáfora do Brasil), o que os cientistas e naturalistas vieram documentar de novo e diferente no Brasil, Inocência é o estado de dúvida dos costumes medievais de uma terra que não teve Idade Média. Fala da mesma coisa, só que com essa brutalidade toda já mastigada nas estruturas de boas maneiras e etiquetas da típica burguesia moderna, contrastando com o relato de Brasil Império. Já no romance regionalista brasileiro "Inocência", de 1872 (mesma época que aborda Edith Wharton), temos a descrição de locais aparentemente "afastados da civilização", mas completamente iguais na sua forma de opressão.  


Talvez o fatalismo do livro de Taunay é que a moça por não se casar como amado (o médico/curandeiro),e que se apaixonou por ela por ver ela febril enquanto cuidada dela representar um lado de idealismo transcendental perdido, que escolhe a mulher inalcançável e portanto, escolhe a tragédia anunciada, acabou indo para o duelo clássico mano a mano com o prometido da moça (isso no livro, diferente do filme), que nada sabia da vida e do mundo e vivia em uma bolha de vigilância constante com o anão aos seus pés e diversos escravos na casa. 


Inocência parece além de Romeu e Julieta do sertão uma referência a personagem Teresa do romance Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, moça sertaneja simples, carinhosa, meiga e bela. Após ter feito 15 a 16 anos, foi prometida para se casar com um homem (Manecão) escolhido pelo pai (Pereira), embora seja apaixonada por Cirino.


O autor de Inocência era da família do famoso pintor da missão francesa (um grupo de cientistas que vieram catalogar e visitar a fauna e a flora brasileira). Isso tudo tem a ver com a história do livro Inocência, já que é sobre uma expedição de um estrangeiro que busca registrar o Brasil, muito como sua família fez e isso encontram práticas que lembram a idade média trovadoresca, digamos assim. Inocência, coitadinha, até mesmo pediu para aprender a ler e lhe foi negado... Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade. 


 O livro de Taunay foi publicado em 1872 e retrata costumes, pessoas e ambientes do leste sul-mato-grossense (sertão), notadamente a cidade de Paranaíba. Meyer é um personagem interessante, o naturalista formado em filosofia, representa a visão ocidental sobre o Brasil vinda dos cientistas, ele era o naturalista alemão que embarca no Brasil para conhecer novas espécies de insetos; hospedando-se na casa de Pereira porque trazia consigo uma carta de Chiquinho, desperta insegurança no anfitrião quando elogia Inocência e lhe dá um vinho do Porto de presente.



Mas a referência e comparação aqui são válidas, já que Edith fala da mesma coisa, só que com essa brutalidade toda já mastigada nas estruturas de boas maneiras e etiquetas da típica burguesia moderna, contrastando com o relato de Brasil Império, o livro de 1872, é sobre eventos que acontecem um década antes, mostrando o registro do cientista que veio registrar a vida da borboleta Inocência.  


A estória acontece entre os dias de  15 de Julho de 1860 e 18 de Agosto de 1863 são as únicas datas do romance. A primeira data diz respeito ao dia em que Pereira se encontrou com Cirino, e a segunda data diz respeito ao dia em que Meyer, já no final do romance, está na Alemanha e apresenta à comunidade científica do país a descoberta da Papilio Innocentia (esse evento nos é noticiado pelo Die Zeit). 


O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, isso está presente em um certo espírito positivista, cadente em alguns militares de descrever as particularidades científicas do Brasil. Depois disso, a tradição seguiu em Guimarães Rosa, ou mesmo em Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902) já possuíam uma influência gigante de Taunay e já eram escritores pré modernos. 



Temos os eternos desencontros de estórias que já enveredariam por esse caminho, tragédias anunciadas, tanto que são consideradas como estória ao estilo de tragédias clássicas e que no Brasil, fundaram uma tradição mista entre o realismo e o romantismo, digo que Taunay embaralhou essas fronteiras mais ainda, usando muito conhecimento tanto científico quanto empírico para fazer como se fosse uma fábula de costumes locais, que por fim, entrega um drama clássico shakespeariano ou medieval de amor inatingível. 


No romance de Taunay, temos vários triângulos amorosos, dependendo dos elementos que o constituem. Os elementos mudam segundo o ponto de vista em questão: do ponto de vista dos namorados: Inocência, Cirino e Manecão; e do ponto de vista de Pereira e do ponto de vista de Cirino: Inocência, Meyer, Manecão. 


A permanência da desilusão na resolução dos romances, o costume se impõe na biologia da vida e sela seu destino. É uma questão de honra: o pai prefere ver sua filha morta a ter seu nome desonrado. Mas qual é o nome, já que não e uma tradição literária ou erudita, é o que podemos nos indagar sobre a resolução da estória. Inocência se livrou da febre (maleitas), mas sucumbiu ao desejo de morrer para não casar com Manecão.


A morte de Cirino é fruto de uma vingança, no filme é o pai que o mata, no livro era em um duelo com o próprio Manecão. A morte salva o amor platônico como o ideal e a inocência de Inocência que estava sendo perdida por causa de Cirino, e  como um clássico mecanismo de literatura, a tragédia demonstra o radicalismo dos dos costumes a obrigatoriedade deles, apesar de toda boa "hospitalidade do sertanejo", isso certamente não incluía as suas mulheres. Cirino garantiu para Pereira que ele sabia dessa barreira, mas mesmo assim caiu do canto de sereia biológico que o chamou para a tragédia. 


Por isso ele se torna um herói fatídico, e por isso Inocência não aguenta e morre. Ambas são mortes românticas, morte que solapou corações apaixonados. É a única forma de conservar o encantamento da paixão através da noção de inocência que a perspectiva puramente romântica pode carregar. 


A parte engraçado do livro está em tentar ler ele como um pedaço de comédia de costumes, já que Meyer, como nós, não entende muito do que é falado e maldado a sua volta, como quando ele diz que a menina é bonita e todos acham isso demais, já que ninguém fala essas coisas para ninguém para "não levantar suspeitas", aí alguém comentava que ele estava "vendo passarinho verde", e ele realmente diz que não viu passarinho verde, mas sim uma moça bonita, mostrando o quanto ele não sabe das expressões locais que significa estar enamorada de alguém e coisas assim. 

No filme, captura isso bem, quando ele é quase morto depois de sair da casa de Pereira, mas aí por fim o anão (por fim) entrega que tinha sido o médico e não ele que estava namorando Inocência escondido, a cena é engraçada mostrando o quanto ele podia ter morrido sem nem perceber o que lhe matou, foi salvo pelo congo.  


É uma tragédia clássica e ao mesmo tempo vibrante e moderna, ao contrastar a experiência dos naturalistas com os costumes e modos de vida dos locais, demonstrando que apesar dos estrangeiros adorarem a atmosfera biológica brasileira, nada sabiam realmente sobre o quão profundo era o conservadorismo daqueles que os receberam, como descreve Pereira no livro, qualquer um poderia querer te ferir ou matar apenas por um irrisória vantagem mínima. 


A questão então é que esse mundo cão do sertão, era um mundo fechado ou aberto aos arautos da civilização por ser tão radical e tradicional? E para qualquer leitor atento, todo o livro parece muito óbvio, então não nos desesperamos e curtimos a "viagem" proposta pelo autor, somos como o naturalista aqui, aproximando-se do romance pelo olhar científico, como um crítico literário. 


Mas isso nos torna um pouco elitista. Apesar disso, os tons do romance apesar de fatídicos, são verdadeiros e inspirados e até esperados. A intensidade desse costume é que vai chocar você no livro, e se fechar os olhos por um segundo, pensará se não estamos em alguma Idade Média perdida.  No filme, desde o início mostra-se atento com as transições na natureza, o biológico e o natural. Uma metáfora perfeita da permanência do conservadorismo no Brasil através da força dos costumes locais frente a modernidade. 


Ainda temos por fim, também a metáfora da borboleta que pousa no túmulo de Cirino sugerindo com a cena da cama onde ela apenas fecha os olhos e se deita, no filme, nem o diretor teve coragem de matar Inocência de tanto dó que dá! Identificando que a biologia supera a tradição em forma de filosofia para gerar o significado que o romance pode continuar como poesia na forma da natureza. Em estado zumbi, de morte em vida, como mostrado mais no filme, Inocência é salva pela ciência, mas morre por amor e renasce enquanto forma de vida simples.




Comentários

Em Alta no Momento:

Os Desajustados (The Misfits, 1961): Um faroeste com Marilyn Monroe e Clark Gable sobre imperfeição da obra do artista e o fim fantasmagórico da Era de Ouro do Cinema Americano

Rastros de Ódio (The Searchers, 1956): Clássico de John Ford é o maior faroeste de todos os tempos e eu posso provar

Cemitério Maldito (Pet Sematary, 1989): Filme suavizou livro de Stephen King mas é a melhor adaptação da obra até hoje. Confira as diferenças do livro para o filme

"1883" (2021): Análise e curiosidades da série histórica de western da Paramount



Curta nossa página: