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Ficção Americana (2023): Vencedor do Oscar satiriza como os estereótipos influenciam a sociedade, o mercado editorial e a mídia


Monk é um escritor e professor brilhante, mas seus livros não são populares pois ele se recusa a retratar negros de forma estereotipada em seu trabalho. Ele é pressionado por seu editor a criar uma obra comercial e escreve uma história carregada de estereótipos raciais como provocação. Só que o livro se torna um best-seller da noite para o dia. Monk passa então a fingir ser um criminoso fugitivo para manter a farsa para a mídia e para uma adaptação cinematográfica de seu livro



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Ficção Americana é antes de tudo filme inteligente. Baseado em uma metalinguagem provocante, vemos a história de um professor universitário de literatura negro (interpretado por Jeffrey Wrigth que está ótimo no filme) que, depois de debater em sala com uma aluna branca sobre o uso da palavra "nigga", decide criar um pseudônimo e publicar um livro de maneira arquetípica sobre uma trama "negra".



Entretanto, para bom entendedor meia palavra basta. Como definido pelo próprio filme algumas vezes, a ideia do livro é vender degeneração, conteúdo de baixo calão, para pessoas brancas frustradas. Se interpretamos que o livro ao qual o protagonista escreve é uma alegoria do próprio filme, então é o filme que foi feito para pessoas brancas acharem graça e pensarem que estão entendendo algo ao rir dos arquétipos propostos pelo personagem escritor da trama.



Reparem nos detalhes: o protagonista é um homem negro, mas é professor universitário. Um cara gentil, educado e totalmente "branco" em seus costumes. De maneira provocante, o personagem e sua vida foram construídos de maneira a ser palatável para pessoas brancas. Ele tem problemas de relacionamento com as mulheres. Seus pais são de um subúrbio totalmente branco, sendo que o pai já morreu e mãe está dando sinais senis. Os vizinhos e conhecidos de infância, são totalmente brancos em seus costumes, sendo um deles um agente de segurança negro e fã de NCIS. O protagonista é próximo da irmã, que revela que descobriu que o pai traia a esposa e provavelmente a mãe sabe de tudo. Aqui mais uma vez uma trama de novela tipicamente branca. 



Ele começa então a trabalhar na trama do livro por puro ódio à "cultura woke", focado subverter programas, entrevista e figuras de influência que usam a causa negra para conseguir mais visibilidade. O livro é um arquétipo de trama de gangsters, só que com sentimentalismo familiar, ao estilo Boys in the Hood encontra Star Wars. Para somar, o autor quer que o livro se chame "Porra". 



O editor acha diferente mas aceita publicar o livro sob um pseudônimo. O problema é que o livro começa a ser um estouro e o protagonista passa a ser chamado para entrevistas. Como ele não quer revelar sua identidade, pois o livro é um pastiche, ele inventa que é um foragido da polícia e por isso não mostrará o seu rosto. Seu nome? "Stagg Leigh".  


Toda essa sequência é uma profunda provocação ao mercado literário, cinematográfico e as publicações da academia atual, onde as pessoas tem que se representar em suas pesquisas. Logo, se uma pessoa é negra, deve escrever de raça, criminalidades, da linguagem das ruas e assim em diante. 



O problema é que o sucesso o livro é tão próximo e implica em tanto trabalho para esconder a identidade, que ele começa a se confundir com sua obra. Ele começa a sair com uma moça e acha legal que ela gosta dos livros dele. Entretanto quando ele lança "Porra", ela lê também, pois afinal a escrita ainda é a dele, o que ela já admirava antes. O problema é que ela não sabe que a "Porra" foi literalmente escrita por ele, e ele não quer que ela saiba para não ver ela como menor. Só que ele é tão arrogante na sua denúncia ao pastiche, que a ofende. Aqui é a típica angústia dos dramas burgueses entre o casal, motivado pela dualidade profissional. 



Aqui está inclusive a essência da trama: toda a vida de Monk (que traduzindo significa monje) é cercada de problemas extremamente "brancos". O esquecimento da mãe, a morte da irmã, o homossexualismo do irmão, discutir com a aluna e tentar se enquadrar para ter sucesso como autor e ser publicado. São típicos problemas de filmes estrelados geralmente por pessoas brancas vivendo suas vidas normais de classe média, como em uma novela. 



Antes de comentar a parte final, preciso destacar quem é o diretor e idealizador do filme. Cord Jefferson além de ter participado na série que adaptou o quadrinhos de Alan Moore, Watchmen, teve passagem pelo Comedy Central e pela série Sucession. Ou seja, ele tem uma vertente de comédia forte e com pegada pulp de quadrinhos, traços notáveis em Ficção Americana. Destaco isso pois deve-se interpretar que o filme não é totalmente sério ou definitivo, mas uma grande provocação. 



No final, o sucesso de "Porra" se torna tão grande que o livro passa a concorrer a melhor livro do ano e ganha, além de já estar sendo adaptado para o cinema. Aqui, o filme subverte e entrega sua metáfora ao apresentar 3 finais diferentes. O protagonista junto com o diretor do filme tentam pensar qual seria o final mais impactante para a adaptação, só que a cena que eles estão elaborando é a do recebimento do prêmio de literatura do livro, em uma metalinguagem bem óbvia sobre como a trama em si é uma brincadeira mas que lida com temas tão sérios que conseguiu chegar até o Oscar.



No primeiro final, na hora da entrega do prêmio, o autor só recebia o prêmio e ia embora. No segundo final, ele fazia a revelação bombástica e ia encontrar a namorada. E no terceiro, e que foi o escolhido pelo diretor que está adaptando "Porra", ele seria morto pelo FBI na hora, uma vez que ele disse que era um foragido, mesmo que isso não fosse verdade. Detalhe para o nome do suposto filme: "Plantation Annihilation" (Aniquilação do Plantation). O plantation é um sistema de produção agrícola que foi implantado pelas nações europeias em suas colônias. Os historiadores entendem o plantation como uma prática que fazia parte do mercantilismo. O plantation se baseava no latifúndio, na monocultura, no trabalho escravo e era voltado para atender o mercado exterior.



O problema é que isso torna o filme de difícil compreensão. Se prestarmos atenção, a intenção da trama não é rir dos arquétipos negros, como do gangster, mas sim dos arquétipos brancos e como eles podem ser projetados através da estrutura até mesmo para pessoas negras. A estrutura do filme é de uma comédia de costumes burguesa, cercada de pessoalismo, psicologia e pensamentos sobre a convivência familiar. Só que, ao mesmo tempo, o filme é uma comédia sobre a visão do que seria ou não a visão identitaria, ele contrapõe os gêneros para problematizar como vemos o teor das tramas através do seu estilo. É anárquico pois dentro da trama, o protagonista ri do arquétipo que nos foi vendido pela música a é pelo cinema do gangsta rap e do Hip Hop. Mas os personagens que riem dessas coisas são ficcionais, dentro da ideia de um autor negro que buscar rir de como o público aceita arquétipos se eles são palatáveis. 



Então, como na polêmica que está percorrendo o livro Avesso da Pele no Brasil, o problema não é a linguagem chula, mas como a ideia de ser considerado inteligente está associado a um autoridade ideológica de quem pode pensar o que. Para falar sobre certas ideias você tem que ter a cara, o perfil, daquela ideia para que ela seja considerada inteligente. Então, uma trama violenta, com personagens que falam errado e de maneira chula, é considerado inteligente se o autor for um gangster, um foragido, ou alguém que viveu aquelas experiências narradas de maneira antropológica. Na hora que se revela que foi um autor acadêmico e professor universitário que escreveu o livro que possui falas chulas, aquilo passa a ser uma ofensa pois é alguém provocando a forma branca como as ideias são filtradas pela sua cara.



Como uma empresa, a pessoa tem que ser a cara daquilo que ele fala. O quanto a inteligência para ser aceita não deve ser uma forma como aderimos a uma casta da aceitação das ideias mais palatáveis para os agentes mais eloquentes para aquelas ideias?


 Acredito que essas são as principais reflexões do filme, em uma provocação diferenciada. Ele não leva a aceitação mas a indignação na forma como as pessoas são julgadas por seus "personagens". Se parece culpado, é culpado. Se parece inteligente é inteligente, se não é burro. Assim o filme questiona toda estrutura midiática e de legitimação do conhecimento, como entrevista, adaptações cinematográficas e prêmios, que funcionam como uma mensagem constante, unilateral e de cima, que não busca ouvir de fato as pessoas, apenas se eximindo da culpa pela desigualdade social. Um filme inteligente, engraçado e criativo, por isso eu recomendo muito.


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