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A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971): Uma distopia capitalista que reflete como a sociedade industrial modifica as tradições culturais


Um garoto pobre ganha o direito de visitar a fábrica de chocolates do excêntrico Willy Wonka, acompanhado por seu avô e quatro crianças mimadas. Adaptação do livro de 1964, de Roald Dahl


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A Fantástica Fábrica de Chocolate pode não parecer, mas é um filme extremamente político. Vamos pensar, por exemplo, na questão da Páscoa e da relação do chocolate com a data. Todos querem comemorar e claro comer um chocolate, pois é um costume associado a data. Entretanto, diferente do contexto histórico em que a Páscoa se originou, hoje vivemos em uma sociedade industrial, onde quase todo chocolate é fabricado, afinal ninguém vai extrair o cacau e o processar até o transformar em chocolate.


Entretanto, alguém aí já se perguntou dentro da História da Páscoa, por qual motivo a gente se presenteia com chocolate? De certa maneira, isso quebra a atmosfera cristã ou mágica da data, uma vez que para manter a produção operante alguém está lá trabalhando para outro comer chocolate: é um negócio para o patrão e um trabalho para os funcionários. Comerciantes no século XX passaram a fabricar coelhos de chocolate para a Páscoa para não diminuir suas vendas nessa época, e assim o habito se associou a data.


Os astecas e maias já consumiam o cacau em uma bebida amarga, muito diferente do chocolate que conhecemos hoje, e associavam o cacau a rituais religiosos. No entanto, a conexão entre chocolate e a Páscoa como a conhecemos hoje foi fortalecida na Europa, onde o consumo de chocolate se tornou popular durante a Quaresma, período que culmina com a celebração da Páscoa.


O crédito pela popularização do chocolate durante a Páscoa é frequentemente dado aos confeiteiros e fabricantes de chocolate europeus, que começaram a produzir ovos de chocolate decorados para a Páscoa no século XIX. Esses ovos de chocolate logo se tornaram um símbolo da celebração da Páscoa, representando renovação e fertilidade. Desde então, a tradição dos ovos de chocolate e outros doces relacionados ao chocolate tornou-se uma parte integral das celebrações da Páscoa em muitas partes do mundo.


Essa ideia inicial do filme já busca em si decantar um pouco a magia cristã e colocar a realidade, a estrutura no lugar.


Vamos começar pela questão do bilhete premiado. Se fosse uma questão de mérito ou de lucro, Wonka convidaria a fábrica aqueles que mais consumissem seu chocolate, ou até mesmo venderia os bilhetes. Wonka já fez com que fosse sorte para ver a caçada histérica em torno do bilhete premiado. A ideia era ser pura sorte, mas obviamente desenvolvem alguns métodos para burlar o sistema. 


Antes de destacar os personagens, suas personalidades e as metáfora por trás delas, falar da inspiração do autor do livro que gerou o filme é necessário. 


A história do livro foi originalmente inspirada na experiência do autor Roald Dahl (também autor de Matilda, As Bruxas, O Bom Gigante Amigoe) com empresas de chocolate durante seus tempos de escola na Repton School em Derbyshire. A Cadbury costumava enviar pacotes de testes aos alunos em troca de suas opiniões sobre os novos produtos. 


O problema foi a competição. Cadbury e Rowntree's eram os dois maiores fabricantes de chocolate da Inglaterra e cada um deles frequentemente tentava roubar segredos comerciais enviando espiões. Isso fez com que o comportamento aberto, familiar com as crianças fosse deixado para trás, acontecendo um "cercamento dos chocolates", similar ao cercamento dos campos, em uma postura empresarial que pouco tem haver com a felicidade das crianças. 


O contexto do filme de 71 é esse, da fábrica fechada. Por isso o bilhete dourado, que parece um bilhete para o céu, é cobiçado, por ser a volta da possibilidade de alguém visitar a fábrica depois de anos.


Os primeiros quatro ingressos são encontrados pelo guloso Augustus Gloop, pela mimada e rica Veruca Salt, pela mascadora de chicletes Violet Beauregarde e pelo viciado em televisão Mike Teavee. Um dia, Charlie compra um Wonka Bar com algum dinheiro que encontrou na neve; a barra contém o quinto e último ingresso. Ao saber da notícia, Vovô Joe recupera a mobilidade e se voluntaria para acompanhar Charlie até a fábrica. 


Gloop consegue pois é guloso. Nenhum problema nisso, mas ele em si não liga para a fábrica, apenas para comer e o próprio chocolate em si. De novo, não está tão errado mas isso o torna um elo mais fraco, alguém que não entende que se a fábrica está fechada para o público e é reaberta para um grupo, obviamente há uma competição subjetiva e um prêmio final secreto. Tanto o livro como os filmes da fantástica fábrica possuem um olhar gordofóbico com seu personagem uma vez que sua gula o torna tonto, como se gordos não pudessem se controlar perante comida. Ao mesmo tempo, ser eliminado primeiro da competição que ninguém quer ganhar não é tão ruim.


Entretanto, um detalhe sobre ele justifica sua má cobertura. Gloop é descrito como nascido na cidade fictícia de Dusselheim, na Alemanha Ocidental, no filme de 1971, e em Düsseldorf , na Alemanha, no filme de 2005. Se interpretamos como uma metáfora da competição e relações internacionais no contexto do pós-guerra, Gloop seria a Alemanha logo após o nazismo.


Violet é engraçada pois ela é representada como uma esportista mas de máscar chiclete, uma piada interessante de que ela considera tudo uma competição. Ela tem cabelos castanhos no filme de 1971, enquanto no filme de 2005 ela tem cabelos loiros. No filme de 1971, ela é de Miles City , Montana, enquanto no filme de 2005, ela é de Atlanta, Geórgia. Ou seja, em ambos os filmes ela representa os Estados Unidos.


Já o Mike Teavee é descrito como adornado com 18 pistolas de brinquedo que ele "dispara" enquanto assistia gangsters na TV. Ele é mal-humorado e preguiçoso, mas também inteligente, e faz várias perguntas a Wonka (que ficam sem resposta) durante o passeio. Como ele encontrou seu Bilhete Dourado nunca é explicado no livro ou no filme de 1971, já que ele está muito absorto assistindo televisão para falar com a imprensa sobre isso. 


No filme de 2005, ele dá uma explicação sobre como encontrou o Bilhete Dourado: ele usou um algoritmo para encontrá-lo. No livro, os pais de Mike visitam a fábrica com ele. Durante uma exibição de tecnologia de miniaturização, usada para transportar chocolate, Mike se encolhe até um tamanho minúsculo, e Willy Wonka faz um Oompa-Loompa cuidar dele. Seu sobrenome lembra a palavra TV em conexão com seu amor pela eletrônica. Ele é da cidade fictícia de Marble Falls, Arizona, gosta de filmes de faroeste e usa trajes de cowboy. Ou seja, também americano, mas republicano.


Veruca Salt (e não é a banda) é talvez a pior das personagens pois ela é rica e usou seu poder financeiro para estar ali. Veruca Salt é uma criança mimada. Ela exige tudo o que quer e quer tudo o que vê. Veruca é a segunda pessoa a encontrar o Golden Ticket e a terceira eliminada do tour pela fábrica por ser uma "noz ruim".


Ao contrário dos outros vencedores, Veruca não encontrou ela mesma um bilhete dourado; em vez disso, seu pai instruiu os trabalhadores de sua fábrica de cascas de amendoim a desembrulhar milhares de barras Wonka que ele havia comprado até encontrarem um bilhete dourado. Sem mostrar piedade a seus pais ricos e sem consideração pelas propriedades de outras pessoas, Veruca frequentemente incomoda seus pais para que comprem qualquer coisa que lhe interesse.


A nacionalidade de Veruca nunca foi especificada no romance de Dahl, mas ela vem de uma família de classe alta do Reino Unido em ambos os filmes, e no filme de 2005 ela mora em Buckinghamshire, o que explica inclusive a forma colonialista como ela é seu pai tratam os empresários.


Já Charlie, segundo a viúva de Dahl, era  originalmente concebido para ser negro, algo censurado pela editora. A ideia final de seu personagem é que como alguém de origem pobre e humilde, que não busca passar por cima das pessoas, ele é honrado para herdar a fábrica. Assim ele ganha algo pelo merecimento de não acreditar na meritocracia. Por ser um "bom garoto". 


O problema é que ele assim vai herdar o cargo de Wonka, o personagem mais contraditório e ambíguo da trama. No filme de 1971, ele é interpretado por Gene Wilder. Embora sua personalidade permaneça geralmente a mesma do original, mas às vezes sinistra e louca, ele é mais melancólico aqui e frequentemente cita livros e poemas, incluindo Romeu e Julieta de William Shakespeare ("É minha alma que invoca minha alma?" nome?") ou " Sea-Fever " de John Masefield ("Tudo o que peço é um navio alto e uma estrela para guiá-lo"), e o famoso "Doce é elegante, mas o licor é mais rápido" de "Reflexões sobre Ice-Breaking" de Ogden Nash.


Ele é melancólico pois sabe que seu trabalho é ruim. Apesar disso, em vez de um conhecedor de chocolate carismático e peculiar, o Wonka de Dahl é semelhante a um CEO faminto por dinheiro de uma empresa transnacional.


Ele é um industrial que explora os Oompa Loompa, seres fantásticos, para atividades meramente laborais, e uma vez que originalmente os Oompa Loompas eram descritos como africanos, isso fica ainda pior. Sabemos também Wonka é um pouco sádico, pois elimina as outras crianças sem dó, e por serem irritantes nos acabamos por gostar disso. Além disso, a seleção por meio do bilhete dourado, só corrobora o fechamento da fábrica e logo a meritocracia de quem pode entrar.


Perto do final do filme, ele testa a consciência de Charlie, repreendendo-o e fingindo negar-lhe qualquer recompensa, mas assume um papel quase paternal quando Charlie, afinal, prova ser honesto. Isso soa bipolar para que não Charlie não perceba que, como pobre, essa será  melhor oportunidade da sua vida, mas justamente o afastará da pureza e honestidade que o levaram até a sua posição. 


Eu sempre pensei nos aspectos capitalistas que estavam por trás do filme e que contraditoriamente tornavam o final completamente vazio, como um falso prêmio. Corroborando essa minha visão, eu encontrei um artigo chamado "Charlie and the Chocolate Factory: A Capitalist Dystopia" que corrobora quase tudo que sempre pensei sobre essa trama: uma sociedade distópica, uma vez que a desigualdade é extremamente justaposta, e um universo extremamente capitalista.


Um destaque é colocado no status socioeconômico do protagonista. Os primeiros doze capítulos, que compreendem quase metade do livro, detalham as lutas enfrentadas pelo pequeno Charlie Bucket e sua família. Bucket é o único membro da família que trabalha. Ele trabalha em uma fábrica. O seu papel é menor, mas vital; ele enrosca tampas em recipientes de pasta de dente. Embora ele não seja funcionário da fábrica de Wonka, suas condições de trabalho seriam semelhantes às dos trabalhadores empregados pelo Sr. Wonka. Assim, paralelos podem ser traçados entre os dois.


Este trabalho na fábrica nunca é suficiente para garantir que a família Bucket tenha acesso às suas necessidades humanas básicas. Alimentação adequada, abrigo e cuidados de saúde devem ser renunciados pela família. O narrador observa:


“Por mais que ele trabalhasse e por mais rápido que aparafusasse as tampas, nunca foi capaz de ganhar o suficiente para comprar metade das coisas que uma família tão grande precisava.”


A situação de moradia da família é uma complicação significativa. Charlie, seus dois pais e quatro avós moram juntos na mesma pequena casa composta por apenas dois quartos e uma cama. Os quatro avós dividem a cama, enquanto Charlie e seus pais dormem em colchões no chão. Este é um arranjo aceitável no verão, mas durante os invernos com neve a família realmente sofre.


A família também só pode pagar as refeições mais pequenas e simples. Grande parte da família beira a desnutrição. Sua dieta consiste quase inteiramente de repolho e eles passam dias inteiros “com uma horrível sensação de vazio na barriga”. Um capítulo do livro de Dahl é intitulado 'A família começa a morrer de fome'. Neste capítulo, é afirmado que Charlie fica tão magro que começa a se parecer com um esqueleto. Ele teve que fazer mudanças, como caminhar lentamente para a escola ou sentar-se dentro de casa durante as brincadeiras, simplesmente para evitar a exaustão.


A família também não consegue fornecer cuidados de saúde suficientes aos avós. Por outro lado, a família mal consegue cuidar dos quatro idosos. Assim, perde-se qualquer qualidade de vida dos avós. Eles são forçados a passar todas as horas do dia amontoados na cama.


Comparar o estilo de vida luxuoso dos Wonka e as condições de vida empobrecidas dos Buckets cria uma justaposição desconfortável. Estas duas vidas, que se desenrolam no mesmo bairro, demonstram quão dramática é a divisão salarial. Apesar da riqueza dos Wonka e de outros proprietários de fábricas, seus trabalhadores recebem relativamente poucos salários. No caso dos Buckets, esse pagamento é extremamente escasso. Os trabalhadores mais esforçados, como o Sr. Bucket, são os que mais perdem neste mundo capitalista dirigido por pessoas como Wonka.


Wonka escolhe Charlie pois sua visão foi manipulada pela mídia e propaganda, ao ponto das classes operárias que deveriam o odiar, sejam aqueles que mais os admiram. Ele é bom e puro, logo uma chance para mudar essa sociedade, ao mesmo tempo ingênuo por não notar essas diferenças. 


A solução do Sr. Wonka para o problema da espionagem é demitir todos os seus funcionários e trazer trabalhadores estrangeiros para o país para trabalhar para ele. Os Oompa-Loompas, segundo Wonka, são “importados diretamente da Loompaland”. Durante uma visita a este país, o Sr. Wonka observa as lutas dos seus cidadãos. Assim, ele propõe os Oompa-Loompas e faz a seguinte oferta:


“Olha aqui, se você e todo o seu pessoal voltarem para o meu país e morarem na minha fábrica, vocês podem ter todos os grãos de cacau que quiserem! Tenho montanhas deles em meus armazéns! Você pode comer grãos de cacau em todas as refeições! Você pode se empanturrar deles! Até pagarei seu salário em grãos de cacau, se desejar!”


O carisma de Willy Wonka ou de seus Oompa-Loompas atrai as crianças. Mas para o leitor que gostou dessa história quando criança e retornar a ela já adulto pode ser surpreendente. A representação descarada de um mundo injusto, alimentado por ideais capitalistas.



O filme original é interessante pois como seus efeitos soam ultrapassados e datados, o filme ganha uma conotação mais sombria, imperfeita que dá um tom interessante para os dias de hoje. Esse lado mais sombrio do Wonka desse filme está inclusive evidenciado no título do filme original que tirou Charlie do título, como está no livro, e colocou "Willy Wonka and the Chocolate Factory", focando em sua personalidade e dando frases shakespirianas para marcar a profundidade e obscuridade do personagem. É um filme nostálgico e atemporal, possuindo uma estética marcante até os dias de hoje. Entretanto, é sombrio, depressivo, como no livro de Dahl, por querer expor de maneira direta as verdades da vida em uma sociedade capitalista para as crianças. Isso pode ser duro demais com as crianças e as vezes desnecessário, pois todos uma hora crescem. Muitas crianças acreditavam que as crianças morriam na competição do filme. 


Então, ainda que o filme pode passar uma importante mensagem sobre a Páscoa e o consumismo tanto para crianças ricas como para crianças pobres, ele pode ser traumático e tedioso para as crianças das gerações mais recentes, tornando-o um perfeito filme de época: representa seu tempo e as mazelas de uma sociedade que tentamos aos poucos superar, como tentando reduzir ou pelo menos conscientizar sobre o problema do consumismo, do trabalho e exploração infantil e de como as datas só são interessantes de serem comemoradas se forem em harmonia. 


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