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Medida Provisória (2022): As dimensões mais absurdas, rotineiras e políticas do racismo são o foco de filme brasileiro distópico dirigido por Lázaro Ramos


É 2016. Em uma realidade distópica, o governo brasileiro decreta uma Medida Provisória obrigando que todos os de ‘melanina acentuada’ (pessoas negras) sejam capturados e enviados imediatamente à África, provocando, em pleno século XXI, revertendo a noção diáspora do povo africano do Brasil. A medida é vendida como reparação social aos danos causados pela União. Mas, para não incorrer no crime de “invasão a domicílio”, eles só podem ser capturados na rua. Assim, André (Seu Jorge) e Antônio (Alfred Enoch) passam dias em casa, debatendo as questões sociais e econômicas, enquanto a cirurgiã Capitu (Taís Araújo) tenta voltar de seu trabalho em meio ao caos das ruas


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Imaginem vocês a situação do filme na vida real. Esse talvez é o grande exercício mental que torna o filme provocante: seu flerte entre absurdo e realidade. Nisso há uma primeira contradição inerente ao filme: ele parece muito real e marcante para o período atual e como fatores estruturais estão moldando a vida e a rotina de todos. Mas como afirmou Marc Ferro, todo filme também reflete e representa o contexto histórico da produção.


Vemos aqui uma situação que imediatamente mobiliza que possui um pouco mais de esclarecimento fará um paralelo imediato com a "onda azul", onde os conservadores se sentiram na liberdade de revelarem o que pensam em vários lugares do mundo nos últimos anos. Antes de seu lançamento no Brasil, o filme alvo de diversas críticas por parte de apoiadores do governo do então presidente da república Jair Bolsonaro. Assim, a ideia que flerta com a ficção científica por sua lógica absurda, já não parece tão impossível assim. 


Dessa maneira, o filme se faz muito inteligente em vários pontos para estabelecer sua trama. Primeiro, não temos um personagem apenas, mais um grupo de amigos. O três principais são o jornalista de esquerda que trabalha para um blog independente, interpretado genialmente por Seu Jorge; a médica Capitu e que é esposa do advogado Antônio Gama, interpretado por Alfred Enoch ator conhecido por ser o bruxo Dino Thomas nos filmes da saga Harry Potter. Aqui há uma referência subterrânea e um pouco intelectual, que é o fato do rapaz se chamar Gama, como Luiz Gama, o abolicionista, figura histórica melhor debatida aqui no site na análise de seu filme biográfico mais recente (clique aqui parar ler o texto de Doutor Gama, 2021). 


A cena inicial de Antônio Gama, mas também toda a sequência inicial do filme é extremamente maldosa e ambígua, uma vez que apesar da tragédia anunciada, todos tocaram sua vida normalmente e alguns até mesmo viam a medida provisória como uma oportunidade de conseguir destaque. Porém, essa é a parte mais torta do filme, uma vez que busca ver, até certo ponto, certo equívoco dos protagonistas, no caso a aquilo que ficou conhecido como "identitarismo". Todos buscam marcar suas diferenças de identidade, sem perceber que são questões, na visão do filme, secundárias. Isso furta a visão de todos do que de fato importava. A sequência é um pouco fraca, afinal o roteiro possui conveniências e parece não caminhar para lugar algum. Seria melhor que começasse já da medida provisória em si, pois são premissas e questionamentos aos protagonistas que só enfraquecem a imersão. O lado intelectual gritou mais alto aqui e esqueceu de tornar mais explicativo. 


Acontece então a derrocada, que de cara separa o casal e cria duas núcleos para o filme. De um lado o Seu Jorge e o Antônio Gama ficam presos ao apartamento, tentando resistir no direito da propriedade privada. Isso não faz muito sentido, uma vez que se há uma determinação racista de segregação oficial, eles seriam retirados também. Ainda mais que existia uma vizinha racista que sabia do paradeiro de ambos. Fica assim apenas pela conveniência tal situação, mas tudo bem. 




Por sua vez, Capitu fica presa ao bunker. Essa sequência, desde ela sendo impedida de conduzir sua cirurgia até sua fuga nas ruas até o bunker, o melhor do filme. Sua mistura de estar perdida em uma situação grosseira somado ao fato de seu personagem ser uma pessoa esclarecida, passam certo terror do desconhecido ao espectador realmente convincente. A parte onde ela ajuda uma senhora que possui uma filha albina também, mas um pouco conveniente o policial estar sozinho no meio do mato. 


Porém é no bunker que as coisas se complicam. Primeiro, pelo filme ser meio confuso no ponto da resistência, pois ela já parecia muito consolidada, como se já estivesse meses ali, mas a médica acabou de ser impedida em seu trabalho pela polícia. Mas principalmente pelo debate racial que propõe. Acontece que um dos membros da resistência é gay e possui o relacionamento com um rapaz branco. Aqui o filme quer debater a questão sobre unir-se em torno da pauta apenas da resistência negra, onde assim o espírito de revanche histórica das pessoas negras poderia recair nas pautas secundárias, como gay ou a brancos em geral, fechando-se em si. Não concordo com o ponto e acho que ele contém um germe social-democrático meio perigoso, uma vez que descarta uma utopia por seu teor de realidade. 


Do outro lado, o jornalista fica preso com o advogado. Aqui percebemos que ambos são tropos um do outro que em muito reflete a dupla visão do diretor Lázaro Ramos perante a situação do filme. Por um lado, o jornalista quer ser radical denunciar e lutar contra o sistema. Mas o advogado quer ser pacífico e não se igualar aos seus perseguidores, algo que se nota na cena (muito boa por sinal) onde um louco os intercepta com um fuzil, e ao tomarem a arma o advogado pede para não matar o louco racista. Só que com o tempo eles mudam a posição devido ao isolamento, e o jornalista se mostra na verdade um social-democrata, desesperado por aprovação e mudança, tendo inclusive a impactante cena dele se pintando todo de branco. Aqui seu "white face" tem um duplo sentido: por um lado é um tapa na cara do espectador e do Brasil, mostrando o que parece que o senso comum pede das pessoas, que é uma máscara de branquitude. Mas também revela a face mais obscura do personagem, uma vez que demonstra que ele parecia querer ser branco, uma vez que até mesmo namorava uma branca. 


Esse duplo questionamento é um elemento constante do filme e seu ponto mais alto. Se ele desconfia do sistema, desconfia das formas de resistência atuais, baseadas em retórica e ativismo pseudo. Mas também do nível dos personagens, já que nota a imperfeição de todos anulando o maniqueísmo. 



Entretanto, é essa influência das produções da Globo no filme que o puxam para quase ser uma novela ou uma série, onde as premissas são assumidas de maneira rasteira para serem desenvolvidas ao longo do tempo. Mas como filme, é pouco tempo para uma maior identificação com os personagens, dando uma leve sensação que o filme só passou por conter nele uma crítica que pode ser vista como inerente aos "extremos" ou a "polarização", ou seja, aos próprios protagonistas também, uma vez que podem ser vistos como radicais mais sofisticados. Essa indecisão no caráter dos personagens é confusa e parece inserida para agradar o senso médio, mas onde obviamente esse é o público que não gostará e nem verá mesmo o filme. 


Outro problema é a questão de gênero do filme. O filme quer ser uma ficção científica, mas obviamente não reflete muito outros filmes do gênero por ser caro e por pouco conhecimento do campo. Por sua vez, fica óbvio que a peça contém certo humor satírico que não combina com a linguagem fílmica. Assim, parece que era para o filme ser mais engraçado, satírico, mas o tema é pesado e não tem a menor graça. Logo, as tentativas de humor do filme não soam muito bem, sendo o absurdo levado a sério o que mais combina com o filme. 


O filme foi inteligente em alterar a data da medida provisória, botando para 2016, ano do golpe em Dilma. Assim, cria-se um paralelo na mente do público que a segregação distópica do filme se dá pela deposição da presidente democraticamente eleita. Certo, mas isso não anula o fato que a peça foi pensada originalmente em 2012 e 2013, auge dos governos do PT. Ou seja, algo ali era crítico ao governo da época também, elemento que ficou remanescente nas críticas aos protagonistas ao longo do filme. 


Fora isso, o final do filme parece um pouco confuso e inadequado. O casal saindo do prédio ficou meio aleatório e surreal demais, onde obviamente a linguagem do teatro não combina com o cinema. Eles ainda agridem as autoridades antes de serem presos, mas quando presos é revelado que tudo era um esquema, onde a motorista do caminhão era na verdade a velhinha negra líder do movimento de resistência. Só que aí fica confuso na metáfora, uma vez que parece querer dizer que os heróis estão sendo presos pelo próprio movimento negro, onde o moralismo parece um elo onde tudo se une. Só que será que essa era a melhor solução para um filme com tal temática? É engraçado ou é trágico? Uma mistura, mas uma vez que o final é aberto e não há uma solução para o absurdo proposto pelo roteiro que seja plausível. Assim, o filme se resumo a sua premissa, onde a solução é apenas para os espectadores voltarem calmos para casa no cinema. Mas está longe de uma solução legal. 


Outro problema é a questão da pandemia. Parece que é impossível para todos ficarem confinados no filme, e uma vez que o filme foi produzido durante a pandemia de Covid 19. fica meio estranho né, uma vez que eles são de esquerda por resistirem a medida provisória, mas não conseguem lidar com o isolamento, como os bolsonaristas. Como a peça foi feita antes do contexto da pandemia isso se explica, mas fica meio mal para o contexto atual. Além disso, o filme se pensa pouco para um contexto que seja diferente do contexto do governo Bolsonaro. Se serve fortemente como crítica ao atual momento, pouco reflete os sentimentos positivos que queremos ter em relação ao cinema. Não dá potência, apesar de ser correto e impactante. 


No final das contas, é um filme bom e com uma mensagem impactante. Funciona muito bem para passar uma mensagem direta e imediata. Mas exacerba no seu aspecto de peripécia, típico do teatro, e se torna muito televisivo. Isso atrapalha o aspecto seu aspecto fílmico, uma vez que seus aspectos são muito particulares e pouco duradoura. Entretanto, o filme se legitima por sua grande duração na temática, uma vez que quer dizer que a medida provisória está ativa no Brasil desde o fim da escravidão. Isso inclusive é notável na crítica subterrânea na teoria de pensadores como Abdias do Nascimento, que defendia que a volta a África era uma solução possível para os negros brasileiros. 


A também referências a abolição da escravidão de 1888 no Brasil, e de como esse processo foi inacabado por não pensar em nenhuma reparação. A abolição do trabalho escravo do Brasil foi o resultado final de um processo longo, lento e difícil de muitas lutas. O fim do uso da mão de obra escrava em nosso país não foi resultado do humanismo ou da benevolência da família real brasileira, conforme muitos acreditam, mas aconteceu porque um grande número de pessoas de nossa sociedade mobilizou-se para forçar o Império a pôr fim ao trabalho escravo. A piada macabra do filme é que essa reparação vem como uma punição. 


A trilha sonora é incrível, tendo tanta música e artistas bons ali que daria um disco só da trilha. O problema é a própria ironia da trama nas cenas as quais tais músicas se encaixam, onde tudo entra naquele clima irônico de "zoar" o absurdo da trama, quando originalmente, imagino eu, tais músicas não continham tal ironia e cinismo ao qual elas assumem no sentido do filme. Mas é ponto alto do filme, com certeza.

 

No fim, é um filme fora da caixa, que estimula a pensar e refletir sobre nosso mundo atual através da hipérbole. Nisso o filme de fato diverte, provoca e por trazer ideias novas para o centro do debate nacional. É uma ótima estreia de Ramos na direção, com um trabalho bem criativo e que era difícil desde o início, já que era uma peça adaptada e não um roteiro original para o cinema. O problema está nas soluções, os fechamentos e mensagem final do filme, que apesar de impactar ilustra menos que um filme como Hotel Ruanda, que obviamente inspirou o Medida Provisória, mas é baseado em fatos, trazendo toda uma carga histórica a trama que a ficção não atinge. Em outras palavras, quero dizer me diverti vendo o filme e realmente foi um debate social que me tocou e me divertiu, mas que enquanto filme é pouco épico ou marcante para o gênero, sendo um pouco simples demais no final. Recomendo assistir? Sim, claro pois a proposta me pega de cara. Mas é daquela leva de filmes que merecem ser assistidos, são importantes, mas pouco memoráveis a longo prazo por pecar na sua conclusão e mensagem final para além do momento atual, ao qual por ser muito ruim todos querem esquecer.


Pro final do filme, a situação no apartamento vai ficando caótica, uma vez que a luz e a internet foram cortadas. Se você acompanha o Gambiarra, deve ter notado a ausência de novos textos nos últimos dois meses. Isso porque a OI simplesmente abandonou o serviço na minha região. Puft! Desapareceu em pleno segundo turno das eleições. Ao entrar em contado com Oi eles afirmaram que o serviço só voltaria em janeiro de 2023. Então achei que esse seria o filme ideal para analisar no momento, ainda mais tendo sido exibido na última segunda-feira (28/11/22) na Globo. Marcando assim a volta do nosso site, que resiste apesar da falta de incentivo, patrocínio ou reconhecimento! Além do plágio constante que sofremos de sites independentes e da grande imprensa. Vamos seguir em frente, mas precisamos do apoio de todos vocês para divulgar e tornar o Gambiarra maior e mais conhecido, para então assim nunca deixarmos de produzir conteúdo!

 

História por trás do filme


O filme é uma adaptação do livro Namíbia, Não!, uma tragicomédia escrita por Aldri Anunciação, escrita em 2011 e lançada em 2012. O livro foi um sucesso de crítica e se saiu vencedor do Prêmio Jabuti, maior honraria da literatura brasileira, na categoria Romance para Jovem. Antes de iniciar a adaptação do livro para os cinemas, Lázaro Ramos já havia montado uma peça de teatro também baseada no mesmo texto de Aldri Anunciação. Essa é a primeira ficção cinematográfica dirigida por Lázaro, anteriormente ele havia dirigido apenas o documentário sobre o Bando de Teatro Olodum. Em 2015, Lázaro começou a trabalhar a adaptação do roteiro que contou com o trabalho de Lusa Silvestre e colaboração do próprio Aldri Anunciação e também de Lázaro Ramos. 


É uma produção realizada em parceria entre as produtoras Lereby Produções, Lata Filmes, Globo Filmes e Melanina Acentuada. A produção do filme é assinada por Daniel Filho e Tânia Rocha e a produção executiva é de Mariza Figueiredo. As gravações ocorreram em 2019 com locações em diversos locais do Rio de Janeiro. O filme recebeu R$ 2,7 milhões por meio do por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para apoiar a produção.


O filme teve seu lançamento atrasado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Ao longo de mais de um ano, entre novembro de 2020 e novembro de 2021, foram realizadas diversas tentativas de acertar uma data de estreia para o filme entre a agência distribuidora do filme e a Ancine. Em março de 2020, o então presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, acusou o filme de utilizar recursos públicos para associar a imagem de Jair Bolsonaro a crimes de racismo e pediu boicote ao filme em suas redes sociais. Em suas redes sociais, Camargo publicou: "O filme, bancado com recursos públicos, acusa o governo Bolsonaro de crime de racismo. Temos o dever moral de boicotá-lo nos cinemas. É pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente." O ex-presidente da Fundação Palmares ainda realizou uma série de outros atraques ao filme. Fazendo referência ao enredo do filme, ele sugeriu que todos os afro-brasileiros que se identificam com as ideologias de esquerda fossem mandados para a África.



O filme foi exibido oficialmente pela primeira vez no Festival Internacional de Cinema de Moscou, na Rússia, em 3 de outubro de 2020, onde competiu na mostra de filmes. Em seguida, estreou nos Estados Unidos durante o Indie Memphis Film Fest, sendo exibido pela primeira vez em 27 de outubro de 2021.


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