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Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976): Clássico do cinema reflete ambiguidades do romance de Jorge Amado para refletir ciclos históricos do Brasil

Dona Flor e Seus Dois Maridos é um filme brasileiro de 1976. Baseado no livro homônimo de Jorge Amado (um clássico da literatura brasileira escrito em 1965-66). O roteiro foi adaptado por Eduardo Coutinho e Leopoldo Serran. Dirigido por Bruno Barreto, o filme foi um sucesso no estrangeiro, onde o diretor do filme chegou a trabalhar no roteiro de uma adaptação estadunidense da obra 


Assista o filme ao final deste artigo ou confira outras opções clicando aqui


Alguns discutem que os anos 1970 foram o auge do cinema trash e da pornô chanchada no Brasil, e da queda da moral no cinema, até mesmo com estimula da ditadura para produzir filmes bobos e sexuais, mas Dona Flor se parece ao olhar leigo ser apenas mais um desses filmes se engana redondamente. Essa queda da moral vem em sintonia com a 'ditabranda', tentativa de tentar atrair as classes médias para uma falsa ideia de renovação dentro do regime que já estava em franca decadência. Outra curiosidade é que o filme teve cenas gravas no salão do clube fluminense.



O filme foi tão impactante, que o diretor Bruno Barreto escreveu o roteiro de um filme inspirado na mesma ideia com James Caan e Sally Fields, chamado "Adorável Fantasma" de 1982 (Kiss Me Goodbye, Mulligan, 1982), e virou uma mini série na Globo depois também. A direção de fotografia do filme é assinada por Murilo Salles.


No início da década de 1940, Dona Flor, sedutora professora de culinária em Salvador, é casada com o malandro Vadinho, que só quer saber de farras e jogatina nas boates da cidade. A vida de abusos e noites em claro acaba por acarretar sua morte precoce num domingo de Carnaval de 1943, deixando Dona Flor viúva. Logo ela se casa de novo, com o recatado e pacífico farmacêutico da cidade. Historicamente, em 1943, o presidente era Getúlio Vargas, isso reflete muito quando a data, pois nesse carnaval foi proibido o uso de máscaras e canções que ofendessem "o decoro público", então a morte de vadinho (vadio) é a morte do liberalismo dos costumes aos poucos sendo substituído por uma intervenção militar que impedia as ações diretas do governo. Assim, foi um ano onde as manifestações das escolas de samba foram proibidas. 


Com saudades do antigo marido que apesar dos defeitos era um ótimo amante, acaba causando o retorno dele em espírito, que só ela vê. Isso deixa a mulher em dúvida sobre o que fazer com os dois maridos que passam a dividir o seu leito.


O início do livro já aborda algumas piadas e ironias interessantes. Quando Vadinho voltou ele disse que deus era gordo, e que confirmou que a terra era azul como disse Gararin. Também começamos a leitura com um "bolo de puba",  que é um tipo bolo de mandioca. O título do capítulo é todo pomposo e explicativo, como um livro didático chato de propósito, até ele troca pela segunda opção de título que é "A espantosa batalha entre o espírito e a matéria", em tom jocoso é claro. 


Mas a frase é muito boa e ilustra bem o sentido da história, o espírito seria a vontade a potência, a libido, o gosto, e a matéria são as expectativas materiais e sociais normalmente irreais que as pessoas tem e que envolvem falsas noções de progresso e ganho material e financeiro e é claro, isso envolve em algum nível a ideia de ascensão pelo casamento, os conselhos de todos só serviram para tornar Dona Flor triste.  




No livro, já começamos pelo velório do finado Vadinho Waldomiro dos Santos, que morreu em um domingo de carnaval e fantasiado de baiana.


História e bastidores do filme


Uma importante diferença do livro para o filme é que a data de publicação do livro é 65/66, e a data de produção do filme 1976. A música (trilha sonora) do filme é de Chico Buarque de Holanda e Francis Hime, com interpretação de Simone. No vídeo abaixo, vemos o making off (extra do DVD) do filme.




Foi por 34 anos recordista de público entre o cinema brasileiro levando mais 10 milhões de espectadores aos cinemas, Um clássico do cinema nacional do diretor Bruno Barreto. Até Tropa de Elite tirar o recorde, era esse o campeão absoluto das bilheterias por aqui. Um filme da Embrafilmes e com distribuição internacional feita pela Warner e pela Paramount. 



Sonia Braga é Flor, esposa de um malandro típico da Bahia e lembra de quando ele morre e aí ela tem que casar com um  boticário social democrata perfeito aos olhos da mãe, mas ela sente falta do segundo marido. 


Tem uma certa animalização exagerada nas partes principais, ao estilo Disney, como quando ele vai fazer a serenata, parece uma cena de desenho em tom quase jocoso, isso quer dizer na sequência, que o ultra romantismo é o que os caras fazem quando já fizeram muita merda. Ou a cena do "sublime cu" tem um rom exagerado para agradar o público, além de soar bem safado para a época. 





O livro maravilhoso de Jorge Amado foi escrito entre 1965-66, já sugerindo essa ideia do povo que se acostumou a social democracia de João Goulart, Getúlio e JK e a diferença disso entrando em plena época de ditadura militar (os anos mais duros), é nesse contexto que Jorge Amado escreve. 




É muito bonita a ambientação da Bahia, a mãe de santo diz que ele Vadinho era de espírito de exu e que precisa descansar. Ela vai e entrega as rosas envolvas na fita vermelha. O texto de Jorge Amado é primoroso.  Esse português antigo, cheio de firulas e romantismo na linguagem. Vemos o frame de Sonia Braga nua ao som da narração do texto impecável de Jorge Amado. Uma moça aparece e está lendo a revista O Cruzeiro (uma revista muito famosa da época, bem moderna). 


Ela se encontra com as amigas que falam que ela parece pálida dizendo enxaqueca de viúva é falta de homem. Elas comenta que uma das viúvas ficou maluca com todo o luto, e depois vemos uma cena das amigas falando mal de uma mulher que namorava vários homens mas em tom de inveja.



Ela recebe uma carta de intenção depois de uma palestra. O marido da farmácia parece a metáfora de como a social democracia imagina que o brasil deveria ser, apaixonado por música clássica e com um emprego estável, ele declara romanticamente suas intenções, com toda a finura. Ela é aconselhada a "conter seus humores", casar com o cara estável que vem pedir de maneira extremamente oficial e ilustrada a mão na família. Esse casamento para "conter" não acarreta na felicidade conjugal comentada pelas amigas. 


São vários detalhes, o licor específico regional da elite que curte importados para selar, feito pela própria moça. Theodoro apenas bebe em ocasiões sociais. A mãe acha que a casa da filha de antes é ruim e ela quer que ela arrume uma casa melhor e que ela quer continuar trabalhando, apesar de todos falarem ao contrário. 


O marido fala que o dinheiro de seu trabalho vai "para suas agulhas, para as suas besteirinhas", nesse nível de machismo. Alguns comentam que o cara da farmácia não é exatamente o sonho, o sonho seria ser médico por conta da estirpe. O comentário dizia 'agora flor, é que você vai ser feliz de verdade". Ela treme de frio de estar gelada e ilustra muito bem a ironia da situação conjugal. Seu marido aparece nas núpcias todo vestido da cabeça aos pés com um pijama. 


A mulher quase que fica para assistir as núpcias desse novo casal, tudo parecia apontar para o progresso com o bom marido que ela agora escolhia. Vadinho representa o populismo, as vicissitudes diversas, o jogo no casino e o prêmio no 17 na parte preta da roleta mostraram o poder de Vadinho, pois é ele quem assopra o número vencedor no ouvido das pessoas. 


Esse filme tem essa coisa dos lances errados e certos, o clima "Mandeville" Theodoro representa o Brasil certinho, os discursos de limpeza e renovação ao estilo varre varre vassourinha, Theodoro é como Jânio Quadros. O Brasil da indústria que vendia nacional misturada com chanchada e quase pornô,  junto com filmes de ação e crime. 


A atuação de Sonia Braga é incrível interpretando Flor, uma mulher baiana que flutua entre a classe média baixa e depois se casa com um boticário e aumenta seu padrão de vida, “fica mais gorda” como evidenciado pelo fantasma de Vadinho,  José Wilker


No fim do filme, Vadinho está andando com mãos dadas com Flor e seu novo marido, ao estilo o cinema novo brasileiro, onde o absurdo é que acompanhamos a imaginação de uma mulher que sente falta de seu marido. 


Ou a cena pode simbolizar para mais além que a social democracia imposta pelos “novos padrões” e pela ideia de renovação até mesmo nos campos de esquerda pode ser apenas pra te afastar do povo. Um exemplo disso é a gatonet, que está atualmente em um processo de “limpeza” pois foram associadas ao bolsonarismo, logo a “missão” da esquerda nesse sentido seria coibir o uso de pirataria virtual (uma pauta historicamente da direita), o que resulta na contradição da milícia bolsonarista fazer uma ação contra o governo de um governador do mesmo partido político de Bolsonaro! Ou quando o jogo no Brasil foi tornado ilegal por conta da influência das mulheres de direita, que fizeram companha pelos jogos


É praticamente bolsonaristas agindo contra um bolsonarista por este ser submisso a qualquer poder instituído e porque o “limpinho” significa direita, significa em algum nível sempre social democracia, mas Bolsonaro simbolizou direita com ilegalismo e por isso ele foi eleito. Da mesma maneira, a cultura do jogo no Brasil passou a ser proibida e reprimida, mas o espírito de Vadinho ainda soprava nos ouvidos dos seus amigos. 

Fazendo uma comparação com essa situação do Rio de Janeiro e o próprio filme e suas metáforas polícias entendemos algo bem grandioso do filme: Flor é o povo brasileiro, aquele povo representado pela maioria de mulheres, 6 milhões a mais que homens hoje em dia.


Em vários sentidos, o filme é sobre as escolhas políticas da nação e enquanto metáfora de produção, uma metáfora da forma de linguagem visual e do que seria essa tradição ou estirpe genuinamente brasileira que se vendia nos filmes e como isso servia como um “cartão postal” negativo ou positivo  sobre as ‘brasilidades’, para entender o quão político é o filme, vamos falar de seu autor, o baiano mais célebre, Jorge Amado, o maior “vendedor” do típico nacional, dos "originais" do Brasil, correspondendo na música ao gênio de nomes como Dorival Caymmi. 


O filme tem essa marca de cultura baiana muito forte, vemos os elementos da espiritualidade, da religião e tudo isso no emaranhado sensual o suficiente para agradar a audiência, e bem feito para os propósitos comerciais.  No fim, pensamos que a cena final mostra o casal pretensamente feliz, acompanhados pelo fantasma de Vadinho. 



Assista aqui:





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